Terça-feira, 26 de Abril de 2011

eneida de virgílio:obra completa(12)


 

LIVRO XII

 

Turno, lendo nos olhos dos Latinos,
Lassos do adverso marte e esmorecidos,
Que exigem-lhe a promessa, ignito e fero,
Mais se exaspera e mais. Qual, de afras brenhas
5 Ferido o leão no peito, encrespa as garras,
Do colo folga a sacudir a juba,
Do caçador estala o fixo dardo,
Ruge-lhe impávido a cruenta boca;
Tal cresce a fúria do abrasado moço,
10 Que embravecido ao rei dest’arte fala:
“Turno é prestes; não há por que o recuse,
Nem retrate a palavra o Troa ignavo.
Já marcho: imola, ó padre, o ajuste assela.
Ou d’Ásia o desertor eu só na Estige
15 Despenho (assista o exército em repouso)
E a querela comum vinga este braço;
Ou vencido me entrego, e mais Lavínia.”

Tranqüilo então Latino: “Ó bravo jovem,
Quanto em brio te excelsas, mais me cumpre
20 Temer por ti, pesar-te os casos todos.
Muito hás valente a herança acrescentado;
Nem ouro falta e ânimo a Latino:
Possui Laurento e o Lácio outras donzelas
Não somenos. Verdades sem rebuço
25 Desabridas me escuta, e não te enojes.
A filha (homens e deuses mo cantavam)
A nenhum proco antigo unir cabia:
Mas por nossa amizade e parentesco,
Pelo choro da esposa o nó desfeito,
30 Ao genro a fé quebrei com ímpias armas.
D’então vês quantos males hei sofrido;
Que transes tu mormente. Já perdidas
Ações duas, de Itália nestes muros
Jaz a esperança; o campo alveja de ossos,
35 Mana do sangue nosso o Tibre quente.
Que indecisão! que insânia me transtorna!
Se, Turno extinto, associá-los devo,
Por que, ele salvo, a guerra não termino?
Os consangüíneos Rútulos, a Itália
40 Que não dirá, se à morte (longe o agouro!),
Quando a filha me pedes, eu te exponho?
O lance é dúbio; o velho pai condoas,
Que em Ardea lá te aguarda e lá te chora.”
Turno impaciente não se dobra: o achaque
45 Mais se agrava ao remédio. Apenas pôde:
“Por quem és, brada, ó pai, de mim não cures;
Deixa-me a escolha de acabar com honra.
Eu também sei jogar a espada e a lança,
E aos golpes deste pulso escorre o sangue.
50 Não tem cá deusa mãe que em névoa o encubra
Femínea, ou sombras vãs em que se esconda.”

Treme a rainha à condição da justa,
Retém desfalecida o ardente genro:
“Turno, por este pranto, se hás de Amata
55 O pundonor a peito (pois coluna
Me és na velhice, e de Latino o império
E inclinada esta casa em ti se esteia),
Desse duelo desiste: eis quanto peço.
Dele, Turno, o teu fado e o meu depende;
60 A luz odiosa deporei contigo,
Nem genro o salteador verei cativa.”
À voz materna, em lágrimas Lavínia
Incende as faces, de rubor corando;
Fogo instantâneo o vulto lhe escandece:
65 Tal fica o índio marfim na grã sangüínea,
Ou purpureia a rosa entre alvos lírios.
Pregando olhos de amor na casta virgem,
Turno em marte flameja: “Ó mãe, em suma,
Com tal choro e presságio não me aflijas,
70 Quando ao cru prélio desço: Turno alçada
Não tem na morte. Núncio, Idmon, não grato
Leva ao tirano frígio esta messagem:
Da Aurora crástina em puníceo coche
Ao roxear, os batalhões não mova;
75 Armas descanse o Rútulo e o Troiano;
Decida o sangue nosso; em liça aberta
Disputemos Lavínia; e cesse a guerra.”

Disse, e parte; os frisões demanda, e os mira
Dos relinchos alegre: de Orítia
80 Prenda honrosa a Pilumno, sobrepujam
No curso os ventos, no candor a neve;
De aurigas a mão cova os peitos logo
Fagueira trata, as crinas lhes penteiam.
De alvo oricalco e ouro a crespa cota
85 Ele aos ombros circunda, a espada ajeita,
O elmo rubri-cornuto, a enorme adarga:
Fez-lhe a espada ao pai Dauno o rei do fogo,
E a temperou candente n’água estígia.
Do Aurunco Actor espólio, hasta robusta
90 Pega, ao maior pilar do meio fixa.
E a brande a blasonar: “Ó tu, que nunca
Falhaste, lança, é tempo: Actor pojante
Manejou-te, ora Turno; dá que eu prostre
Válido, e arranque ao semiviro Frígio
95 E lhe espedace a malha, em pó lhe suje
O frisado cabelo ungido em mirra.”
Furente e em sanha, o vulto lhe cintila,
Em brasa ardem-lhe os olhos: como o touro,
Que a luta ensaia horrífico mugindo,
100 Tentando irar-se, aos troncos remetendo,
A cornadas os ventos desafia,
A areia escarva, e à briga se aparelha.

Não menos fero nas maternas armas,
Enéias embravece e o marte afila,
105 Folga do ajuste que dirime a guerra.
Lembrando o fado, Iulo e os seus consola
Do susto; ao rei deputa, e lhe assegura
Que aceita a paz e as condições confirma.

Assim que doura o Sol os altos cumes,
110 Quando, ao surgir do pélago, os Etontes
Luz de amplas ventas sopram; campo à justa
Medindo aprestam Rútulos e Teucros
Sob a grande muralha, e em meios focos
E aras gramíneas às comuns deidades;
115 Parte, água e lume trazem, de verbena
E véus de linho as fontes coroando.
Pilos na destra, a legião d’Ausônia
Rui de atulhadas portas; frígia e tusca
D’além instrutas variamente as hostes:
120 Como se Marte os chame a duro prélio.
Mnesteu ramo de Assáraco, fulgindo
Em ostro e ouro, entre milhares corre,
E o Neptúnio Messapo e o forte Asilas.
Ao sinal, tomam posto, as hastas plantam,
125 Encostam seus broquéis. O inerme vulgo,
Ávidas mães, enfraquecidos velhos,
Por cumieiras derramam-se e por torres,
De janelas e eirados se debruçam.

Do monte, agora Albano, já sem nome,
130 Lustre nem glória, atenta Juno a liça
E os exércitos ambos e Laurento.
Eis fala a deusa à diva irmã de Turno,
A qual, em paga do pudor virgíneo
Que o pai sumo roubou-lhe, os ressonantes
135 Rios preside e lagos: “Sabes, ninfa,
Das ribeiras adorno, entre as Latinas
Que entraram do meu Jove o leito ingrato,
Só me és cara, e no Olimpo coloquei-te.
Teu mal, Juturna, aprende, e não mo imputes:
140 O Lácio, enquanto aprouve à sorte e às Parcas,
Hei protegido e a Turno; mas conheço
Que o moço lida com funesto auspício,
E que o termo fatal se lhe aproxima.
A briga, o ajuste os olhos meus não sofrem.
145 Se algo ousas pelo irmão, convém que o faças:
Talvez melhore o fado.” Aqui Juturna
Se lava em pranto, e vezes três e quatro
A punhadas maltrata o seio lindo.
“Não é tempo de lágrimas, diz Juno;
150 Eia, o irmão de algum modo esquiva à morte,
Ou desmancha tal pacto e a guerra incita:
Esta empresa, eu t’a ordeno.” E a ninfa deixa,
A quem tituba o coração dorido.

Com toda a pompa entanto os reis saíram:
155 Em quadriga Latino, em cuja fronte
Brilha em dourado sol de raios doze,
Do avô debuxo; em alva biga Turno,
Que dois hastis sopesa de ancho ferro.
Dos Romúleos o pai do arraial marcha,
160 Fulgurando no escudo e arnês sidéreo,
E Ascânio ao pé, de Roma outra esperança;
Em veste pura, de uma cerda o feto
E intonsa o fecial aduz cordeira
Para as flagrantes aras. Ao nascente
165 Eles virados, salso farro espargem,
Com faca marcam na moleira as hóstias,
Libam taças no altar. O pio Enéias
Despindo o alfanje, orou: “Testemunhai-me,
Sol, terra por quem tanto hei padecido,
170 Onipotente soberano padre,
E tu Satúrnea déia, já mais branda;
Eu vos depreco; invoco a ti, Mavorte,
Árbitro das batalhas; fontes, rios;
E a vós do mar cerúleo e etéreos numes.
175 Se acaso triunfar o ausônio Turno,
Os vencidos, convenho, a Evandro passem,
Daqui se aparte Iulo; nem com armas
Contra este reino os meus, revéis conspirem:
Se a vitória coroa o marte nosso
180 (Como antes cuido, e os deuses mo concedam),
Eu não pretendo o império, e ao Teucro menos
O ítalo sujeitar: em laço eterno
Lei justa invictos una os povos ambos.
No culto intervirei; na guerra o sogro:
185 Tenha o solene mando. A nova Tróia
Funde-se, e o nome seu lhe dê Lavínia.”

Enéias finda; e começou Latino,
Seu olhar para cima e a destra alçando:
“À terra, Enéias, juro, ao pego, aos astros,
190 E aos gêmeos de Latona e ao deus bifronte,
E às potências do abismo e a Dite sevo;
Juro ao pai que a troar sanciona os pactos,
D’ara às chamas que toco, aos numes todos,
Que, suceda o que for, jamais a Itália
195 A paz há de romper, nem força alguma
Dela me desligar; bem que um dilúvio
Nas ondas solva o mundo, o céu no inferno:
Como este cetro (e o cetro aqui sacode)
Nunca enverdecerá com sombra e folhas,
200 Pois extirpado, sem ter mãe que o nutra,
Depôs no bosque a ferro a coma e os galhos;
Árvore já, que industre mão de engastes
Éreos ornara aos régios pais latinos.”
Dest’arte as alianças confirmavam,
205 Em presença dos próceres; e as reses
Degolam para o fogo, e sobre altares
As entranhas em pratos lhes palpitam.

Muito há que o duelo desigual parece;
E de mais perto os Rútulos em susto
210 Observam como Turno a passo lento,
Lívido e mudo o juvenil semblante,
Submissa a vista, as aras acatava.
Ao ver a irmã Juturna que o murmúrio
Cresce, e desvaira o vacilante vulgo;
215 Fingindo-se Camerte (por avoengos
E paterno valor, por si preclaro),
Semeando rumores corre as filas.
Destra aos Rútulos clama: “Não vos peja
Que por tantos se arrisque uma só vida?
220 Em número e denodo iguais não somos?
Ei-los presentes Árcades e Troas,
Da Etrúria a fatal hoste infensa a Turno:
Cada qual seu contrário apenas temos.
Ele que aos divos se ale, aos quais se imole,
225 Vivo na voz da fama; e em ócio quedos,
Nós cá, perdida a pátria, ao jugo estranho
De soberbos senhores nos rendamos!”

Isto afogueia os moços; e um sussurro
Pelas turmas serpeia. Já mudados
230 Laurentes e Latinos, que esperavam
Em seguro, a paz rota e pugnar querem;
Do infortúnio de Turno se amiseram.
Mais Juturna os instiga, e um sinal mostra
Que a propósito os ânimos conturba,
235 Do prodígio embaídos: águia fulva
No rubro éter caçava um sonoroso
Leve marinho bando; e a vôo às águas
Presto resvala, e empolga um cisne belo
Na ávida garra. Os Ítalos se alentam;
240 E as aves todas, ó portento! a fuga
Ruidosas convertendo, em nuvem densa
Tapando os ares, o inimigo atacam;
Té que, cedendo à força e à mesma carga,
Esmorece, e no rio a grave presa
245 Das unhas larga, e some-se nas auras.
Todos, prestes à lide, o auspício aclamam;
E brada o áugur Tolúmnio: “Isto, isto, ó numes,
Tanto roguei-vos; o favor aceito.
Comigo, arma, arma, ó gente amedrontada,
250 Quais fracas aves, pelo atroz vindiço
Que estas praias devasta: ele não tarda
Velas a dar corrido ao ponto fundo:
Cerrando as filas, defendei comigo
O rei vosso e da justa arrebatai-o.”

255 Disse, e logo um zarguncho infesto arroja;
Os ares frecha o estrídulo corniso:
Soa o alarido; horrífico tumulto
Os cúneos turba, os corações escalda.
A hasta, a voar por entre nove esbeltos
260 Irmãos, que de fiel tirrena esposa
Houve o Arcádio Gilipo, alcança um deles,
De relumbrante arnês gentil mancebo,
Onde o cosido bálteo o ventre pisa,
E a mordente fivela une as charneiras;
265 Traspassa as costas e na arena o estira.
Acres, cegos do nojo, os irmãos rompem,
Remesso ou gládio em punho; os de Laurento
Contra avançam: de novo inundam Frígios,
E arreados Arcádios e Agilinos.
270 Um só do ferro o amor domina em todos.
Saqueiam-se(83) aras; tolda os pólos torva
De rojões tempestade e chuva de aço;
Copas tiram, tições: Latino foge,
Da injúria aos deuses, da traição queixoso.
275 Qual emparelha o coche, qual de um salto
Cavalga lesto, qual desnuda a espada.

Messapo, que anular deseja as pazes,
Ao Tusco Auletes em reais insígnias
Remete o bruto: a recuar de espanto,
280 Atrás o triste rei de encontro às aras,
Cai de ombros e cabeça. Eis que Messapo
Do alto corcel malfere ao suplicante
Com trabal chuça, e férvido vozeia:
“Morre, esta é melhor vítima aos supremos.”
285 Acode a chusma, e os quentes membros despe.

Corineu, de um tição do altar pegando,
A Ebuso, que despede e um golpe acena,
Chameia o rosto: luz comprida a barba,
O chamusco a cheirar. De chofre às grenhas
290 Deita-lhe a esquerda, mete-lhe o joelho,
Prostra-o sem tino, corre-lhe a estocada.
A Also pastor, que em frente arrosta e campa,
De alfanje nu seguindo Poladírio,
O assoberba; Also, erguendo a machadinha,
295 Lhe escacha a testa e o queixo, as armas rega
Dos esparsos miolos; férreo sono
O urge, e os lumes em noite fecha eterna.

Mas, patente a cabeça, a destra inerme
Leva, e aos seus brada Enéias: “Suspendei-vos:
300 Que furor, que discórdia vos despenha?
Ferido o ajuste, as condições compostas,
Devo eu só pelejar, deixai-me; os pactos,
Não receeis, confirmará meu braço:
Já destinam-me Turno os sacrifícios.”
305 Nisto, seta a zunir no herói se encrava:
Que mão, que impulso a disparou, se ignora;
Se aos Rútulos um deus, se o mero acaso
Tal glória permitiu: supressa a fama,
Do golpe e arrojo tal ninguém jactou-se.

310 Turno, ao partir Enéias, vendo os chefes
Consternados, fervente e esperançoso
Pede armas e corcéis, no carro salta,
Meneia altivo as rédeas. Voa, imola
Muitos varões de prol, ou semimortos
315 Os roda, ou sob o coche esmaga imensos,
De hastas se apossa que aos fugidos vibra.
Se o truculento Marte no Ebro frio
Pulsa o broquel e incita os corredores,
Eles, bufando pelo plaino livre,
320 Zéfiro e Noto excedem; geme inteira
Ao seu tropel a Trácia; ao nume escoltam
A Ira, a Traição, do Susto o aspecto baço:
Tal em suor fumantes os cavalos
Braceja alegre Turno, e insulta os mortos;
325 Sangüíneo orvalho esparge e verte a roda,
Na lenta areia a unha o cruor calca.
Mata a Folo e Tamíris à mão tente;
A Sténelo de longe, e a Glauco e Lades
Irmãos, que em Lícia Imbraso pai criara,
330 E igualmente os armou, que a pé combatam,
Ou na eqüestre corrida as auras vençam.
Lá, do antigo Dolon guerreira prole,
Pompeia Eumedes, imitando em nome
O avô, no esforço o pai; que ousara, em paga
335 De ir espiar o acampamento graio,
De Aquiles para si pedir o coche:
Mas de outro modo lho pagou Tidides;
Ele aos frisões do herói nem mais aspira.
Turno, avistando na planície o filho,
340 Joga-lhe um dardo pelos vácuos ares,
Pára, da biga pula, e ao semivivo
Que descai sobrevém, no colo a planta
Lhe imprime, esbulha-o do punhal fulgente,
Na garganta lho tinge, e assim blasona:
345 “Mede jazendo, ó Teucro, o solo hespério
Que vinhas conquistar: dos que me afrontam
Eis o prêmio; dest’arte os muros fundem.”

A botes lhe ajuntou Síbaris, Bustes,
Cloreu, Dares, Tersíloco, e Timetes
350 Que aos trancos o animal da cerviz lança.
Qual, se do Egeu no pego o Edônio Bóreas
Sopra sonoro e as ondas rola às praias,
Do céu, por onde vara, espanca as nuvens;
Tal ao fogoso Turno as alas cedem,
355 E fogem batalhões: o ímpeto o leva,
Batem-lhe o carro as flutuantes plumas.
Fegeu não lhe suporta o orgulho e sanha;
Ao coche avança, aos rápidos ginetes
Retorce os freios e espumantes queixos.
360 De rojo e às bridas preso, em descoberto
O apanha larga chuça, e a coira dobre
Rota, a cútis lhe prova o golpe leve.
Ele se adarga, e já de estoque em riste,
Volto para o inimigo, auxílio pede:
365 Mas o eixo despedido e a roda o impele,
Cai por terra; e entre a cota e o casco Turno
Decepa-lhe a cabeça, e troncho o prostra.

Enquanto ufano tudo arrasa e estraga,
Mnesteu e Acates fido e Iulo às tendas
370 A Enéias acompanham, que sangüento
No conto abordoava os tardos passos.
Raiva a lutar, e o meio quer mais pronto
Com que da haste quebrada a farpa arranque:
Abram de espada, e o golpe dilatando
375 Catem-lhe o ferro, por que à pugna torne.
Era presente o Iasidis Iapis,
Dileto amigo do extremoso Apolo;
Que ledo as artes suas lhe doara,
O augúrio, a música, as ligeiras setas.
380 Ele, a fim que a seu pai retarde os fados,
Antes inglório conhecer as ervas
E exercer quis a muda medicina.
N’hasta a bramir Enéias se estribava,
Cercado imóvel de tristonhos jovens
385 E de Ascânio a chorar. Peônia a loba
O hábil velho traçando, em vão tenteia
E usa as de Febo virtuosas plantas,
Em vão sonda com jeito e prende o ferro
Com tenaz pinça: nem fortuna o serve,
390 Nem seu mestre o socorre; e mais no campo
Mais cruel medra o horror, mais perto avulta.
Já se enovela o pó, já se ouvem rinchos,
No arraial chovem dardos; grita imensa
Dos combatentes soa e dos que morrem.
395 Vênus, a quem do filho as dores pungem,
No créssio Ida colheu de flor purpúrea
Dictamo(84), caule de pubentes folhas;
Não da corça ignorado, se expedita
Frecha ao dorso lhe adere. Em névoa escura
400 Vênus o traz envolta: em vaso terso
De água turva o infundindo, oculta o misto
Ela tempera, e esparge-lhe os salubres
Sucos de ambrosia(85) e odora panacéia.
Ínscio o longevo Iapis à ferida
405 O banho aplica: logo a dor se extingue,
O sangue estanca; a seta por si mesma
Já segue a mão; restauram-se-lhe as forças.
“Presto, armas ao varão; tardais? primeiro
Grita Iapis e os ânimos inflama:
410 Não foi perícia minha ou arte humana
Que, Enéias, te curou; foi celso nume,
Que a façanhas grandiosas te reserva.”

Ávido o Frígio as caneleiras calça,
E as demoras detesta e brande a lança.
415 Depois que enfia o escudo e a cota enverga,
De ponto em branco armado abraça o filho,
Ergue a viseira e o beija: “O vero esforço
De mim, Ascânio, aprende e o sofrimento;
De outros, a dita. Agora a destra minha
420 Vai segurar-te, o que reputo um prêmio:
Lá na idade madura não te esqueças
Do exemplo dos avós, nem de que houveste
Enéias por teu pai e Heitor por tio.”

Disse, e hasta ingente balançando parte;
425 Das portas após ele turba infinda,
Anteu sai e Mnesteu; largando os valos
Flui toda a gente: cego pó se enrola,
E ao pulsar do tropel treme a campanha.
De adverso marachão distingue-os Turno:
430 Gelo aos d’Ausônia pelos ossos côa.
Primeira entre eles percebeu Juturna
O ruído, e vai-se trépida. Ele a vôo
Traz a atra nuvem pelo aberto plaino.
Quando, em sidérea conjunção, borrasca
435 Do mar ronca, os agrícolas pressagos
Ai! se arrepiam, que ela estrago e dano
Aos pomares prepara e às sementeiras;
Sopra o vento, e um sonido às praias chega:
Tal o chefe reteu move as esquadras,
440 E em cúneo as cerra e densa. Ao grave Osiris
Fere e trunca Timbreu, Mnesteu a Arquécio,
Acates a Epulon, a Ufente Gias;
Tomba o áugur Tolúmnio, o que o primeiro
Vibrou dardo infrator. Os céus atroa
445 Amplo alarido, e aos Rútulos agora
Fuga pulverulenta as costas volta.
A nenhum dos que fogem, dos que atiram
Distante, ou perto o investem, não se digna
De derribar o herói: só busca a Turno,
450 Por Turno clama, entre a caligem basta.

A virago Juturna, apavorada,
Por entre os loros a Metisco, auriga
De Turno, ao longe do timão sacode:
Monta, e maneja e dobra undantes bridas;
455 Finge a voz de Metisco e a forma e as armas.
Qual de rico senhor por tetos e átrios
Fusca andorinha adeja, cata e indaga
Para os gárrulos ninhos o cibato,
E ora por vácuos pórticos, chilreira,
460 Ora por tanques úmidos revoa;
Tal a trote Juturna, entre inimigos
Percorre tudo no ligeiro carro,
Do irmão fazendo alardo: à luta o esquiva,
Por desvios o aparta. Enéias óbvio
465 Lesto os rodeios corta, e à pista a vozes
De hostes esparsas pelo meio o chama:
Sempre que a Turno olhos desfere e emula
O curso dos alípedes cavalos,
Juturna o evade retorcendo o coche.
470 Ah! que obrará? flutua em vários estos,
E diferentes cuidos o arrebatam.
Leve armado, Messapo dois virotes
Na sestra acaso tinha; um vibra e acerta:
Pára, escuda-se o Teucro, e a perna encurva;
475 Mas levou-lhe o farpão cimeira e plumas.
Surgem-lhe as iras; da traição coacto,
Mal sentiu que os frisões e o coche o evitam,
A Jove atesta e as aras violentadas,
Acerbo invade com propício marte,
480 E, sem descrime na fatal matança,
As rédeas solta à cólera terrível.

Qual deus, quem há, que em verso me declare
Que estragos na campina e mortos cabos
Derramou Turno agora, agora Enéias?
485 E permitis, ó céus, que entre si lutem
Povos que têm de unir-se em laço eterno?

Ao Rútulo Sacron não tardo o Anquíseo
(Pugna que em seu furor deteve os Teucros)
De lado, onde é mais pronta a morte, o ferro
490 Mete, e a caixa do peito e as costas vara.
A Diores e Amico irmãos desmonta
A pé Turno, um de espada aguda vindo,
Um de hasta longa; e de ambos as cabeças
Talha, e sangue estilando ao coche as prende.
495 O Dardânio a Talon, Cetego, Tánais,
Que investem juntos, mata, e o pobre Onites,
Nome equiônio, de Perídia nado:
Turno, uns irmãos da Lícia, a Febo cara,
E a Menetes Arcádio, à guerra avesso;
500 Moço em Lerna piscosa afeito(86) às redes,
Sem dos grandes saber do pai na choça,
Que de renda um campinho semeava.
Como dá solto o incêndio em seca mata
E crepitantes louros; como espúmeos
505 Estrepitosos rios despenhados
Com vastadora queda ao mar caminham:
Tais os dois campeões rútulo e teucro
Se precipitam; já flutua interna
Raiva; já corações que o não cuidavam
510 Rasgam-se; os golpes desmedidos fervem.
Enéias a Murrano, que arrotava
Lácios avoengos de real prosápia,
Com seixo enorme em turbilhão derriba:
As rodas volvem-no entre o jugo e os loros,
515 E ingratos brutos com patada crebra
Conculcam seu senhor. De Hilo, que imano
Fremente ameaça, às têmporas douradas
Contorce Turno um dardo, que pelo elmo
No cérebro se encaixa. Não o evitas,
520 Creteu, valente Graio. Nem de Enéias
A Cupenco seus deuses resguardaram:
De encontro o peito ao ferro, ah! nada embarga
O éreo broquel. Também laurentes agros
Viram-te, Eolo, vasto chão cobrindo:
525 Morres tu, que as falanges não puderam
Grajugenas prostrar, nem do priâmeo
Reino o eversor Aquiles: no Ida excelsas,
Excelsas casas em Lirnesso tinhas;
Tens a meta em Laurento e a sepultura.
530 Tudo é baralha, os Teucros, os Latinos,
Briga tudo; Mnesteu, Seresto bravo,
E o picador Messapo e o duro Asilas,
Alas de Evandro e batalhões toscanos:
Com sumo esforço cada qual porfia;
535 Larga, incessante, encrua-se a batalha.

Aqui Vênus formosa inspira ao filho
Que assalte os muros, e a Laurento opressa
Com mortandade súbita consterne.
Ele, que, a Turno investigando, os lumes
540 Deita em redor, quieta e impune avista
A pérfida muralha; e em marte aceso
Traça plano maior. Mnesteu, Sergesto,
Seresto forte chama; e num outeiro,
Onde reúne os seus de escudo e lança,
545 Do alto brada: “Obedeçam-me de pronto;
Júpiter é por nós, executai-me
Não frouxos o repente. Hoje a cidade,
Causa do mal, e de Latino os reinos,
Se o freio me refusam não submissos,
550 Destruo, assolo os tetos fumegantes.
Esperarei que a Turno já vencido
A justa apraza? Da nefanda guerra
Eis, cidadãos, a suma, eis o remate:
Sus, reclame-se o pacto a ferro e fogo.”

555 Disse; e, formando em cúneo a densa mole,
Ataca os muros. A escalada, o incêndio
Cresce: uns às portas, retalhando os guardas,
A discorrer; o alfanje a esgrimir outros;
O ar de tiros se obumbra. Entre os primeiros
560 No muro Enéias mesmo a destra ferra;
Grita e acusa a Latino; os céus atesta
Que à batalha é forçado, que hostilmente
Os de Itália o agrediram duas vezes,
Duas também às convenções faltaram.
565 Dentro lavra a discórdia: esparvoridos
Uns abrir ao Troiano as portas querem,
E ao muro o mesmo rei consigo arrastam;
Armam-se outros e insistem na defensa.
Tal, se na cresta o latebroso pomes
570 O rústico enche de vapor amargo,
Trépido errando o enxame em céreos valos
Zumbe, a cólera aguça: olor nos tetos
Forte rescende, um murmurinho cego
No ouco soa, e no ar se engloba o fumo.

575 Mais quebranta os Latinos um desastre,
Que a cidade revolve e um luto abala:
Vendo a rainha do inimigo a entrada,
Pelas casas o incêndio, e que nem Turno
Comparece nem rútula falange,
580 Morto o mancebo no conflito julga,
E em túrbida agonia a triste clama
Que de mal tanto e crime é fonte e causa;
Vocifera sem tento, e furibunda
Rasga o manto purpúreo, e atando um laço,
585 De alta viga pendeu com morte informe.
Corre a fatal notícia; as róseas faces
A filha dilacera e as flavas tranças;
Mestas em torno as damas esbravejam;
O pranto a régia estruge. Divulgada
590 A cruel fama, os corações prosterna:
A cidade em ruína, a esposa extinta,
Latino atônito espedaça as vestes,
E as cãs em pó denigre enxovalhadas;
Muito se acusa de não ter a Enéias
595 De grado recebido e aceito genro.

Remoto o belaz Turno, menos lesto,
Já dos frouxos cavalos descontente,
Persegue uns trasmalhados: eis que as auras
Trazem-lhe terror cego e vozeria
600 E os ouvidos atentos lá percebem
Murmuro desalegre e som confuso:
“Ai! que rumor tamanho, luto quanto
Rui dos opostos perturbados muros?”
Disse, e as bridas retém, sem tino estaca.
605 Mas a irmã, que em Metisco disfarçada
Regia o coche, lhe tornou: “Sigamos
A via, Turno, que a vitória indica;
Braços há na cidade que a defendam.
Se ataca Enéias e atropela os nossos,
610 Com fero estrago os seus também rendamos:
Não te irás inferior na glória e feitos.”
Turno: “Irmã, respondeu, muito há conheço;
És tu que arteira, desmanchando o ajuste,
Na ação te ingeres: não me enganas, deusa.
615 Quem te enviou do Olimpo a tantas lidas?
Vens do irmão assistir ao cru trespasso?
Que resta? que inda espero da fortuna?
Ante os meus olhos, só por mim chamando,
Murrano acaba, o meu melhor amigo,
620 De atroz ferida; o caro Ufente expira,
Por não testemunhar a afronta nossa:
Possui-lhe o corpo e as armas o inimigo.
Sofrerei, duro transe! os tetos rasos,
Sem que a Drances refute a destra minha?
625 Ver-me o Lácio dar costas! fugir Turno!
Pois morrer tanto custa? Vós, ó manes,
Já que os céus me aborrecem, protegei-me:
Alma insonte e sem mancha, à Estige baixo,
Dos meus grandes avós não terei pejo.”
630 Nisto, Saces no espúmeo alado bruto
Entre as filas hostis, frechada a cara
Mostrando, implora a Turno: “És nosso amparo,
Turno; dos teus há dó. Fulgúreo Enéias
De exício ameaça as fortalezas nossas;
635 Já voam fachos. Em ti só fitamos
Os olhos, Turno, em ti: na escolha mesmo
De genro ou de aliança el-rei tituba;
E a rainha fiel, desesperada,
Suicidou-se a final(87). Messapo e Atinas
640 Sustentam sós às portas o conflito;
Férrea hirta messe, densa turba os cerca:
Tu no deserto prado o coche rodas!”

Turno, ao se afigurar tão vários casos,
Tácito e quedo embaça; luto, insânia,
645 Vergonha, amor, estuam-lhe no peito,
Fúrias e o cônscio brio. Assim que as trevas
Dissipa e a mente acalma, conturbado
A vista em brasa revirando aos muros,
Do seu carro contempla a grã cidade.
650 Eis que um vórtice flâmeo, ao céu montando,
Ondeia entre os soalhos de uma torre,
Que ele erguera de traves bem compactas
Com rodas e altas pontes. “Não me estorves;
O fado vence, irmã: já já corramos
655 Onde ele e um deus nos chama. Com Enéias
Braço a braço, a tragar a morte acerba
Disposto, irmã, não me verás sem honra:
Ah! deixa-me antes em furor cevar-me.”
Disse, e do carro apeia: entre armas e hostes,
660 Largando a irmã chorosa, pelo meio
Dos Teucros rompe com veloz carreira.
Qual, se por furacão do monte a penha
Rola avulsa, ou das chuvas aluída,
Ou por vetustos anos solapada,
665 De princípio em princípio aos tombos,
Selvas no ímpeto arrasta, armentos, homens;
Tal, com vasta ruína, aos muros Turno
Se despenha, onde o sangue alaga a terra
E de espessos farpões os ares zunem.
670 Acena e grita: “Ao ferro dai, Latinos,
Tréguas, e ao dardo ó Rútulos: a sorte
Qualquer que for, é justo que o tratado
Eu por vós desempenhe e só peleje.”
Todos se arredam, largo espaço abrindo.
675 Seu nome ouvido, acelerado Enéias
As fortalezas desampara; as obras
Interrompe de chofre, alegre exulta,
E horrendo em armas toa: o Atos, o Erix,
Mesmo o Apenino padre, assim bramindo
680 Folga, e azinhos balança coruscantes,
E alteia às auras o nivoso cume.
Frígios, Latinos, quantos as muralhas
Frangiam com vaivéns ou propugnavam,
Os olhos convergindo, o arnês dos ombros
685 Lassos depõem. Do encontro o rei pasmava
De heróis que, nados em distantes plagas,
Entre si valorosos combatiam.

Vazio o campo, à desfilada, lanças
De longe eles vibrando, o marte encetam,
690 E éreos broquéis ressoam, geme a terra:
Crebros talhos de espadas já redobram;
Ardil, valor, fortuna, se confundem.
Se no celso Taburno ou Cila imensa
Dois touros fronte a fronte hostis concorrem,
695 Os maiorais se assustam; mudo o gado,
Surdo as novilhas tugem, sem que atinem
Qual, dono da manada, ao bosque sigam;
Lutam renhidos enganchando os cornos,
Mesclam-se os golpes; muito sangue inunda
700 Colos e espáduas; brama a selva e muge:
Dos heróis Teucro e Dáunio assim retinem
Broquéis e cotas, e o fragor ribomba.

Ouro e fio a balança, os fados de ambos
Jove nas conchas libra, examinando
705 Quem na lide sucumba e vergue ao peso.
Turno então, ferir crendo impune, esgrime,
Com todo o corpo sobre o gládio cresce;
De susto um e outro campo exclama atento:
Mas a pérfida folha estala e falha;
710 E ao ver, sem mais recurso o moço ardente,
Ignota empunhadura e a destra inerme,
Como Euro foge. É voz que, ao primo assalto
Montando o coche, em vez do pátrio ferro,
Do auriga arrebatou sem tino a espada:
715 Ela bastara a dispersar os Teucros;
Mas, à prova das armas de Vulcano,
Se desfez como gelo o mortal gume,
E em pedaços brilhou na fulva areia.
Turno deita veloz pela campina,
720 E mentecapto aqui e ali volteia:
Lá fecham-no em coroa os Frígios densos,
Árduos muros além, cá vasto lago.
Acre Enéias o acossa, e bem que às vezes
Lhe impeça e agrave os joelhos a frechada,
725 Urge ao medroso o pé com pé fervente:
Qual, se em rio o sabujo encontra o cervo
Incluso, ou do espantalho de punícea
Pena acuado, late e o corre e caça;
Da ribanceira e insídia espavorido,
730 Safa-se ele, anda e vira; o vívido umbro
Hiante o alcança, quase quase o aferra,
E, como se o pegara, os queixos range,
E a vã dentada o ilude; a grita e os ladros
Retumbam na lagoa e em torno às ribas,
735 Toa ao tumulto o céu. Na fuga Turno
Exprobra e os seus nomeia, exige e pede
A nota lâmina. O rival comina
Morte, se alguém lhe acode, o estrago e exício
Da cidade, e ferido insta, amedronta.
740 Cinco vezes girando e regirando,
Leves prêmios de jogos não pleiteiam;
Da vida e sangue trata-se de Turno.

Sacro a Fauno, um zambujo havia acaso
De amara folha, aos nautas venerável;
745 Onde o náufrago os dons pregar soía
Ao deus, e as vestes suspender votivas:
Por que em plano combatam, sem descrime
A árvore santa os Frígios extirparam.
A hasta Enéias impele, que às raízes
750 Se lhe apega tenaz: quis arrancá-la,
Com sumo afinco e despedi-la a Turno,
A quem chegar a curso não podia.
Este louco de medo: “Há mágoa, ó Fauno;
Retém a lança, eu te oro, amiga Telus:
755 Sempre honrei vosso culto, e a guerra enéia
Profanado vos tem.” Não foi baldia
Sua oração; que sobre o tronco o Frígio
Curvo labuta, e não lhe vale o esforço
Do lenho a desfechar o morso rijo.
760 Enquanto mais se estriba e insiste, a diva
Dáunia, em forma do auriga, o irmão socorre,
Dá-lhe a espada. A ousadia irrita a Vênus,
Que baixa e da raiz despega a lança.
Refeitos de armas, de ânimo sublimes,
765 Este afoito no gládio, aquele n’hasta,
Do anelo Marte no lidar prosseguem.

Entanto o rei supremo a Juno fala,
Que de uma nuvem roxa observa a pugna:
“Que resta, esposa, e traças? Tu confessas,
770 Deve indígite Enéias, manda o fado,
Sede no Olimpo ter, subir aos astros.
Que urdes? que esperas em geladas nuvens?
A um deus violar convém com mortal golpe?
Render a Turno a espada (o que ousaria
775 Sem ti Juturna?) e acorçoar vencidos!
Basta, cede ao meu rogo: não te roa
Tácito enfado; a revelar-me o peito
A tua doce boca se acostume.
Veio o termo: agitaste o mar e a terra,
780 A discórdia incendeste, em luto infando
Envolta a régia, as núpcias perturbaste:
Não mais, agora o vedo.” Cessa o padre;
E submissa contesta a irmã Satúrnia:
“Teu querer conhecendo, eu constrangida
785 Abandonei, senhor, a Turno e o mundo;
Senão, curtindo ultrajes, não me viras
Neste ar sozinha, mas na ação, de flamas
Cingida, em prélios consumindo os Frígios.
Sim, a ajudar o irmão suadi Juturna;
790 Louvei que por salvá-lo ousasse tudo,
Mas não que de arco e setas contendesse:
Da implacável Estige à fonte apelo,
Jura tremenda aos superiores numes.
Desisto alfim; batalhas já me enojam.
795 Favor obsecro não sujeito aos fados,
Pede-o Itália e dos teus a majestade:
Casamentos embora a paz componham,
E leis o pacto asselem; não permitas
Que os Latinos indígenas, perdido
800 O antigo nome, Teucros se apelidem,
Nem mudem língua e trajo. Eterno viva
O Lácio, os reis Albanos; herde Roma
O itálico valor, propague e brilhe:
Tróia acabou, também seu nome acabe.”

805 Sorrindo o árbitro sumo: “Irmã, lhe torna,
Segunda prole de Saturno, de iras
Estos volves no peito? O rancor cego,
Eia, amaina: de grado e às preces tuas
Tudo concedo. Fala e usanças pátrias
810 A Ausônia guarde, o nome seu conserve:
Consorciados fiquem-se os Troianos;
Farei que, em rito iguais e em sacrifícios,
Formando um povo, a mesma língua tenham.
Virão do misto sangue ausônio e teucro
815 Homens pios que aos deuses se avantagem;
Nem haverá nação que te honre tanto.”
Juno eis anui alegre, a mente aplaca;
Do éter já se retira e a nuvem deixa.

Outra coisa então Jove em si versando,
820 Resolve separar do irmão Juturna.
Há duas pestes, por cognome Diras,
De um parto vindas com Megera estígia
Da escura Noite, que as liou de serpes
E asas lhes deu ventosas. Ante o sólio
825 De Jove sevo e ao limiar assistem,
E o medo afilam dos mortais, se alquando
Morbos ele prepara e o trago horrendo,
Ou pune as gentes com terrível guerra.
Júpiter uma lá de cima expede,
830 Que ominosa a Juturna se ofereça.
Ela, num turbilhão, qual frecha voa,
Que dispara o cidônio ou parto nervo;
Arma incurável que no fel untada
E cru veneno, alígera estrugindo,
835 Impróvisa(88) atravessa as leves sombras.
Desce a filha da Noite; e, mal que enxerga
Os exércitos ambos, no pequeno
Pássaro contraiu-se que a desoras,
Pousando em cemitérios e ermas grimpas,
840 Cruja importuno e lúgubre nas trevas:
De Turno em cerco a peste assim revoa,
Guincha aleando, e lhe verbera o escudo.
Torpor novo o arrepia, hirto o cabelo,
Tronca a voz na garganta. A irmã, que ao longe
845 Distingue a Dira e as estridentes penas,
As madeixas lacera, de unhas rasga
E afeia o rosto, e o seio com punhadas:
“Como há de agora, Turno, a irmã valer-te?
Ai! que me resta que te alongue a vida?
850 Posso a tal monstro opor-me? Eu deixo o campo
Já já. Não me aterreis, obscenas aves;
O som letal e esse adejar conheço;
Não me enganam de Jove as duras ordens.
Paga-me generoso a virgindade!
855 Fez-me eterna? ó pesar! se eu mortal fosse,
Os desgostos findava, e aos tristes manes
Iria acompanhar o irmão querido.
Nada jamais sem ti me será doce,
Nada, meu Turno. Um boqueirão me engula,
860 E em seu profundo centro abisme a deusa.”
Cobre a cabeça então com verde manto,
E gemebunda se sumiu no pego.

O troço arbóreo coruscando Enéias,
Insta com feroz peito: “Que demoras,
865 Turno? arrependes? não correr, mas cumpre
Lutar com sevas armas. Várias formas
Toma, usa embora todo o esforço e manha;
Sobe de surto aos astros, ou te ocultes
Nas terreais entranhas.” Abanando
870 Ele a fronte: “Esses feros não me assustam;
Júpiter sim e os inimigos deuses.”
Nem mais, e encara antiga pedra enorme,
Agrário marco, estorvo de litígios;
Pedra, carga bastante aos mais robustos
875 Doze homens dos que a nossa idade cria:
Com tremor agarrando-a, herói se empina
E na corrida a impele; mas ignora
Se anda ou corre, se pega o ingente marco,
Se o move e arroja: faltam-lhe os joelhos,
880 Coalha o sangue. No vácuo roda a pedra,
E, sem que o termo alcance, o impulso esfria.
Como em sonhos, se lânguida modorra
Nos preme os olhos, ávida carreira
Tentando em vão, no meio esmorecidos
885 Sucumbimos; a língua e a voz nos falha,
Falham no corpo as forças: tal, por onde
Seu valor Turno ensaia, o impede a Fúria.
Cem cuidos versa: os Rútulos contempla,
Olha a cidade; enfia, e da iminente
890 Lança estremece, de evadir-se o meio
Nem contra o seu rival já vê recurso,
Nem mais a auriga irmã, nem mais seu carro.
Enquanto hesita, o lanço Enéias mede,
A hasta vibra fatal, forceja e solta:
895 Nunca assim fremem do mural trabuco
Jogadas rochas, nem. trovão rebrama:
Qual furacão letífera voando,
Da cota as orlas e os extremos orbes
Do septêmplice escudo a estrugir fura,
900 E a coxa lhe traspassa. Ao bote o moço,
Inflexa a curva, tomba; os seus alteiam
Mesto clamor; remuge inteiro o monte,
E na selva o lamento amplo reboa.
Turno olha humilde, súplice ergue a destra:
905 “Bem mereço, é teu jus, perdão não peço;
Mas, se de um pai (de Anquises te relembres)
Comove-te a velhice, a Dauno eu rogo
Me entregues, se não vivo, ao menos morto.
Venceste, e viu-me enfim a Itália toda
910 As palmas levantar: Lavínia é tua;
Os ódios não requintes.” O acre Enéias
Pára, os olhos volteia, a mão reprime:
Iam-no as preces quase enternecendo,
Quando o infeliz talim se mostra ao ombro
915 E a cravação do cingidouro fulge,
Despojos de Palante, a quem menino
Prostrara Turno com letal fereza,
E essa divisa infesta em si trazia.
Da cruel dor no monumento os olhos
920 Mal embebe, enfuriado o herói vozeia:
“Que! tu me escaparás dos meus com presa!...
Nesta ferida imola-te Palante,
Palante vinga-se em teu ímpio sangue.”
No peito aqui lhe esconde o iroso ferro:
925 Gelo os órgãos lhe solve, e num gemido
A alma indignada se afundou nas sombras.

publicado por centrallgames às 00:56
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eneida de virgílio:obra completa(11)

 

LIVRO XI

 

Já do oceano a aurora despontava.
Bem que urja o tempo de inumar seus mortos
E o turbe o funeral, no primo eôo
Piedoso o vencedor cumpria os votos.
5 Num combro tancha desramada enzinha,
Veste-lhe de Mezêncio o arnês lustroso,
Troféu que a ti, Belipotente, sagra:
Os dardos rotos, as sanguentas crinas
Lhe ata; à esquerda o pavês e a(72) tiracolo
10 Suspende a ebúrnea espada. E assim de ovantes
Capitães escoltado, exorta os sócios:
“Fora o temor, varões, que pouco resta
Por fazer; eis o espólio, eis as primícias
De um rei soberbo, que estas mãos puniram.
15 Eia, a Laurento agora: arma, arma, alerta;
Ânimo e fé! dos numes quando o aceno
Mova o campo, as bandeiras arrancadas,
Nem outro acordo vos detenha incautos,
Nem retarde os mancebos frouxo medo.
20 Entretanto os finados sepultemos,
Conta exigida no ínfimo Aqueronte.
De ferais dons ornai-me os que esta pátria,
Comprada com seu sangue, nos legaram;
Vá primeiro de Evandro aos tristes muros
25 Palante, a quem não pobre de virtude
Mergulhou trago acerbo em noite escura.”

Disse e à tenda chorando se retira,
Onde o aluno defunto Acetes guarda,
Velho escudeiro do Parrásio Evandro,
30 Zeloso aio do filho, mas não dado
Com tão feliz auspício. A turba em cerco
E os fâmulos em dó, conforme o estilo
Desgrenhadas o seguem frígias donas.
Pelos altos portões mal entra Enéias,
35 Levantam crebros ais, nos peitos ferem,
E remuge o real do luto e pranto.
Como ele o níveo corpo, a face e a testa
Sustida olhou, da ausônia choupa o rombo
No seio liso, em lágrimas rebenta:
40 “Pois sorriu-me a fortuna, e a mim te inveja,
Moço infeliz, que o reino meu não visses,
Nem tornasses em pompa ao lar paterno?
Não foi esta a promessa a Evandro feita;
Que abraçado, à partida, ao grande império
45 Me propunha, e entre sustos me advertia
De que era áspera a guerra e forte a gente.
E ora talvez, debalde esperançoso,
N’ara devoto of’rendas(73) acumula,
Quando ao jovem, já quite dos Supremos,
50 Exéquias vãs prestamos. Desgraçado!
O funeral cruel verás do filho!
Que triste volta! ó sonho de triunfos!
Eis a fé minha! Mas com vis feridas
Não te envergonhará, nem, salva a prole,
55 Tu pai desejarás o eterno sono.
Ai! quanto, Ausônia, quanto, Iulo, perdes!”

Neste lamento, escolhe mil guerreiros,
Que o mísero cadáver acompanhem,
Obséquio extremo, e às lágrimas assistam
60 Do aflito pai; devida, mas pequena
Consolação do nojo e trago ingente.
Brando esquife engradado alguns de vergas
De medronho e carvalho não remissos
Tecem, de folha o estructo(74) leito ensombram.
65 Fica na agreste cama o excelso moço,
Qual por virgíneo pólice apanhada

Mole violeta, ou lânguido jacinto;
A quem brilho nem cheiro inda falece,
Mas não vigora e nutre a mãe terrena.
70 Duas purpúreas opas recamadas
Enéias tira, em que a Sidônia Dido
Com doce esmero trabalhara mesma,
As telas de ouro fino entretecendo:
Mesto, em honra final, veste uma ao jovem,
75 Com outra a coma para as chamas vela.
Manda lanças, frisões e tanto espólio
Da laurentina pugna, em longa série
Dispor; e atrás das costas maniatados
Os que às sombras destina e regar devem
80 A pira com seu sangue; e os chefes tragam
De hostis arneses troncos revestidos,
Onde inimigos nomes se insculpiram.
Conduzem de anos gasto o pobre Acetes,
Que a punhadas o peito, o rosto a unhas
85 Desfigurando, pelo pó se estira.
Vem do rútulo sangue o tinto coche;
E atrás, posto o jaez, úmidas gotas
Eton, fero corcel, dos olhos verte.
Vem o elmo e a lança; o mais roubou-lhe Turno.
90 Lento a falange marcha etrusca e teucra,
De armas em funeral o arcádio bando.
Dês que em ordem se alonga o saimento,
Retém-se Enéias, e suspira e geme:
“A outros prantos nos chama a fatal morte.
95 Salve, exímio Palante, e para sempre,
Adeus, amigo, adeus!” Nem mais profere,
E aos arraiais tornando o passo alarga.

Já de oliva enramados oradores
Latinos pedem vênia, a fim que esparsos
100 Corpos sepultem, vítimas da guerra;
Que a não tenha com mortos e vencidos;
Poupe os hóspedes seus, outrora sogros.
Bom Enéias atende às justas preces:
“Que ruim fado, acrescenta, nesta lide
105 Vos implicou, Latinos, que de amigos
Nos renegais? E a paz quereis somente
Para os da luz privados nas batalhas?
Eu quereria concedê-la aos vivos.
A não ser o destino, eu cá não vinha;
110 Nem a gente combato. Ao jus de hospício
Preferiu vosso rei de Turno as armas.
Turno é melhor que à morte se expusera:
Se expulsar-nos pretende, o pleito acabe
Num duelo comigo; e um de nós reste
115 A quem seu nume ajude ou seu denodo.
Sus, à fogueira os cidadãos mesquinhos.”
Disse: absortos se olhando mudos ficam;
E o velho Drances, que odiento e infesto
Sempre a Turno crimina: “Ó tu, responde,
120 Varão maior que a fama, como te alças?
Não sei que mais te louve ou mais admire,
Se o valor, se a justiça? Iremos gratos
Na pátria o publicar, e, dado o ensejo,
Ao rei te unir: alianças busque-as Turno.
125 Altear apraz-nos a fatal cidade,
Troianas pedras carregar aos ombros.”
Finda, e um consenso unânime sussurra.
Doze dias, em tréguas, juntos vagam
Por monte e selva os Teucros e os Latinos:
130 Da bipene o alto freixo ao corte soa;
Tomba o aéreo pinheiro; as cunhas racham
De contino orno, roble, odoro cedro;
Ao carrear chiando as rodas andam.

E a Fama já, que apregoava há pouco
135 De Palante as ações, do imenso luto
Enche Evandro e de Evandro a casa e os muros.
O Arcádio às portas rui, e ao modo avito
Pega brandões, que ao longo a via aclaram;
A procissão funérea os agros fende,
140 Co’a(75) turba frígia encontra-se em lamentos.
As mães, vendo-os entrar, com pranto lúgubre
Toda a cidade acendem. Nada a Evandro
Pôde conter; atira-se no meio;
Sobre o deposto féretro curvado,
145 Se abraça com Palante, e geme e chora,
Até que a dor à fala abriu caminho:
“Filho, a palavra assim me desempenhas
De entregares-te cauto ao cru Mavorte!
No primeiro certame eu bem sabia
150 Quanto o louvor é doce e a nova glória.
Tristes primícias, rudimentos duros
Da finítima guerra! ai! preces minhas,
Votos por nenhum deus jamais ouvidos!
Oh! no morrer feliz, mui casta esposa,
155 Não provas este mal! Sobrei-te em anos
Para carpir extinto o nosso filho!
De hostis lanças coberto, eu dera est’alma
Sob os sócios pendões! Fosse esta pompa
Só para mim, não para ti, Palante!
160 Vossa aliança e hospício eu não arguo;
Sorte era, ó Teucros, da velhice minha:
Mas, se imaturo cai, mil Volscos mata,
Ao Lácio vos guiando, honrado acaba.
Mais digno enterro não terás, meu filho,
165 Do que Enéias celebra, e seus magnatas,
E etruscos chefes, e esquadrões etruscos:
Dos que enviaste ao Orco os troféus trazem.
Também grã tronco em armas cá serias,
Se idade igual à tua o roborasse,
170 Turno. Mas que! pranteio e a pugna tardo?
Frígios, o que lhe digo ao rei contai-o:
Se a luz nesta orfandade eu sofro, Enéias,
A tua destra é causa, ao filho e ao padre
Olha que deves Turno: este o serviço
175 Que do teu brio espero e da fortuna.
Gostos na vida enjeito, nem me assentam;
Sim, no inferno os receba o meu Palante.”

Almo lume a verter, o albor canseiras
Renovava aos mortais. Na curva praia
180 Em piras cada qual, Enéias, Tárchon,
Dos seus, usança velha, os corpos queima;
Na caligem dos fogos sotopostos
Se enoita o céu. Três vezes decorrendo
A infantaria, em fulgurantes armas,
185 A rogal chama fúnebre circula;
Três a cavalaria; e ululam todos:
O choro arneses banha, a terra ensopa;
Grita, clangor, mugindo os ares fere.
Uns lançam na fogueira o ganho espólio,
190 Guarnecidas espadas, elmos, freios,
Rodas ferventes; uns, de oferta aos donos,
Os broquéis notos e infelizes dardos.
Hecatombes à morte, para a queima
Cerdos e nos contornos apanhada
195 Imolam grei: na praia arder observam,
Em suas piras semi-ardidas velam
Sem despegar-se, até que úmida a noite
Inverte o céu de estrelas marchetado.

Nem menos tristes os Latinos erguem
200 Fogueiras mil; dos seus enterram parte,
Levam parte à cidade e às vizinhanças:
Em confuso montão, sem conto e nome,
É consumido o vulgo. Ao longe e ao largo
À competência os fogos alumiam.
205 Manhã terceira assoma; e, de altas cinzas
Doídos removendo os mistos ossos,
Terra sobre eles tépida amontoam.

Mas na opulenta laurentina corte
O alarido é maior, mais geme o luto.
210 Mães, irmãs, noras, órfãos miseráveis,
Ferrenha guerra aflitos execrando
E os himeneus de Turno, exigem que ele
No Lácio a primazia à espada obtenha.
Drances agrava o caso, e atesta e jura
215 Que Turno a desafio é só chamado.
Muito a favor de Turno opinam vários:
Da rainha o respeito e a sombra o amparam;
Seu renome e troféus o herói sustentam.

Neste flagrante, em meio do alvoroto,
220 Do grã Diomedes pesarosos voltam
Com respostas os legados: nada as preces,
Nada os custos valeram da embaixada,
Nem dons nem ouro; ou busque outra aliança,
Ou paz rogue Latino ao rei troiano.
225 Esmorece o bom velho em tanta angústia:
Que o céu protege a Enéias lhe confirmam
Irados numes, frescos os sepulcros.
Chama a conselho os principais senhores,
Que logo, ao seu mandado, enchendo as ruas
230 Ao paço afluem. Do seu trono o digno
Ancião monarca, não com leda fronte,
Aos legados acena, e inquire e indaga
Com toda a pausa a etólica resposta.
Reina o silêncio, e Vênulo obedece:
235 “Nós vimos, cidadãos, o argivo assento,
E, da jornada os riscos superando,
A mão tocámos que assolou Dardânia.
Ele no apúlio Gárgano Argiripa,
Cognome pátrio, vencedor fundava.
240 Quando a vez tive, os dons lhe oferecendo,
Quem éramos declaro, e a guerra e causa
De em Arpo nos acharmos. Com sossego
Nos torna o Grego: — “Ó reinos de Saturno,
Priscos Ausônios, venturosos povos!
245 Que fado a concitar vos solicita
Ignotas guerras? Quantos profanámos
Com ferro Tróia (os transes nela exaustos
Omito, e os que em si volve aquele Simois)
Pelo orbe temos pago infandas penas,
250 Tais que Príamo próprio as lastimara:
Minerva o testemunhe, o Arcturo infausto,
O ultrice Cafareu, de Eubéia as penhas.
Dali, de praia em praia desterrados,
Menelau de Proteu foi ter às metas,
255 Aos Ciclopes trinácrios o Laércio.
De Pirro e Idomeneu subversos lares,
Ou lembrarei na Líbia assentes Locros?
De vingar n’Ásia um rapto ufano o Atrida
Rei dos reis, por traição da atroz consorte,
260 Cai do adúltero ao ferro em seu palácio.
E o céu não me invejou rever a pátria
E a bela Calidona e a cara esposa?
Hoje inda monstros hórridos me assombram:
Perdidos sócios (ai cruéis suplícios!)
265 Nos ares voam-me, aves da ribeira,
Com flébeis guinchos nos cachopos vagam.
Isto eu prever devia, mal que insano
Corpos violei divinos, golpeando
A destra a Vênus mesma. A tais pelejas
270 Não me instigueis(76), oh! não. Dês que assolada
Pérgamo foi, com Teucros nem combato,
Nem me recordo ou folgo desses males.
Os dons que me ofertais rendam-se a Enéias.
Com ele dardo a dardo e braço a braço,
275 Provei, crede, quão lesto o escudo move,
Com que vórtice esgrime ou gládio ou lança.
No Ida se dois varões como ele houvesse,
Dardânia acometera ináquias plagas,
Trocara a Grécia os louros em ciprestes.
280 Em Tróia pertinaz susteve os Graios,
Durante o assédio, a mão de Heitor e Enéias,
Que a vitória dez anos retardaram:
Ambos no ânimo iguais, iguais no esforço,
Mais pio esse é. Tratai de congraçá-lo,
285 E fugi de travar armas com armas.” —
Eis a real sentença, ó rei sublime,
Sobre tamanha guerra.” Disse; e corre
No conselho um murmúrio, como quando,
Seixos detendo o arrebatado rio,
290 No álveo ronca impedido, e em torno fremem
Da ribanceira as crepitantes ondas.

Quedo o alvoroço e plácido o sussurro,
Ora aos deuses o rei, do trono fala:
“Eu, cidadãos, queria, e melhor fora
295 Antes deliberar; não quando os muros;
Preme o inimigo. Inoportuna guerra
Temos com tais varões, com diva estirpe,
A quem prélios nem cansam, nem vencidos
Sabem depor o ferro. Se estribáveis
300 No étolo(77) auxílio, o desengano chega;
Fie em si cada qual: fraca esperança!
Como em ruína as coisas nos declinam,
Vossos olhos o vêem, as mãos o apalpam.
Ninguém acuso: obrou-se o mais possível;
305 Em peso o reino se bateu brioso.
O que hei na dúbia mente, agora em pouco
Vo-lo explano; atenção. Próximo ao Tibre,
Sobre as sicanas raias, para o ocaso,
Agro antigo possuo; o qual semeiam
310 Os Rútulos e Auruncos, e as colinas
Arando, em pasto o mais estéril deixam.
Esta região e o celso píneo monte
Ceda-se ao Teucro; e, justas leis ditadas,
Em amizade e em paz nos federemos.
315 Se o quer, fique e entre nós se estabeleça;
Mas, se outra gente, outro país prefere,
E ir-se daqui, naus vinte ou mais teçamos
De ítalo sobro, as que precisas forem:
Madeira jaz à borda; eles prescrevam
320 Pontal, número, forma; nós prestemos
Dinheiro, arsenais, braços. E oradores
Cem dentre os nobres deputar me agrada;
Que, nas mãos a oliveira, em brinde ofertem
Marfim, talentos de ouro, e a trábea e a sela
325 Curul, do reino insígnias. Em consulta,
Provede ao bem do combalido estado.”

Drances, a quem de Turno a glória punge
De vesga e amara inveja, em bens profuso,
Mais largo em língua, timorato e imbele,
330 Não mau no alvitre, em sedições potente,
De incerto pai, da ilustre mãe soberbo;
Se ergue, e em Turno carrega e incita as iras:
“Coisa, ó bom rei, suades nada obscura,
E escusas consultar. O que insta e cumpre
335 Cada um murmura, e expô-lo não se atreve.
Falar conceda, e a tumidez remita
Quem, por funesto auspício, ambicioso
(Digo, e armado ele a morte me comine)
Extinguiu tantos cabos, e a cidade
340 E o povo enluta; enquanto, em pés fiado,
Tenta o frígio arraial e aterra o mundo.
Aos dons que ao Teucro, ótimo rei, prodigas,
Um acrescentes, um; ninguém violento
Vede ao pai dar a filha a genro egrégio,
345 Em laço eterno e honroso a paz segures.
Se é tanto o susto, humildes o obtestemos,
Peçamos vênia; à pátria e ao rei se digne
O jus nosso outorgar. Autor de angústias,
Por que impeles o Lácio a tais perigos?
350 Infausta guerra! a paz queremos, Turno;
O inviolável penhor a paz confirme.
E eu, que a ti crês infenso (o que ora passo),
Eu te suplico para os teus piedade;
Cessa, e repulso vai-te. Assaz matanças,
355 Vimos assaz os campos desolados.
Ou, se a fama te pica e ínsito esforço,
Em dote se esta régia obter anseias,
Ousa, ao rival te afoites peito a peito;
Nem, para que a princesa espose Turno,
360 Nós, vil turba insepulta e ilagrimada,
O agro junquemos! Tu, se o pátrio brio
Te anima e alenta, provocado arrosta-o.”

De Turno arde a violência a tais dictérios;
Do imo suspira, em cólera trasborda:
365 “Sempre em frases abundas, quando a guerra
Pede obras, Drances; nos debates primas.
Conter mal pode a cúria essas bravatas,
Que, entrincheirado a salvo, te borbolham,
Enquanto em sangue os fossos não se inundam.
370 Toa a usual facúndia: eu sou cobarde,
Sim; tu Frígios em pilha amontoaste,
Mil troféus as façanhas te assinalam.
Teu vivido(78) valor provar te cumpre:
É não longe o inimigo, os nossos muros
375 Em roda assalta; vamos encontrá-lo.
Como! tardas? ou sempre tens Mavorte
Nessa balofa língua e fugaz planta?
Eu repulso! há, vilão, quem tal me assaque?
Será quem viu de sangue o Tibre inchar-se,
380 Quem de Evandro abatida a estirpe e casa,
O Árcade profligado? Certo Bícias
Não me argüirá, nem Pândaro e milhares
Que, na trincheira hostil encurralado,
Mandei num dia à Estige vitorioso.
385 Infausta a guerra? ao capitão dardânio
E a ti, louco, esse agouro. Embrulha, espanta,
Nem cesses de exaltar os bi-cativos
E deprimir as armas de Latino.
Do Frígio ora estremecem Mirmidones,
390 Tidides ora e o Larisseu Aquiles;
O Aufido o curso adríaco desanda!
Finge o manhoso que de mim se teme,
Com seu medo falaz me azeda o crime.
Nunca, descansa, mancharei meu braço;
395 Num peito more torpe essa alma indigna.
Volto-me, ó padre, agora aos teus projetos.
Se não tens confiança em nossas armas,
Se não muda a fortuna, e uma derrota
Nos destrói e nos perde sem regresso,
400 Paz roguemos, tendendo inermes destras:
Bem que oh! se nos restasse o brio antigo,
Feliz na morte fora e o mais egrégio
Quem, por não vê-lo, o pó mordeu caindo.
Mas, por nós frescas tropas se inda temos,
405 Florentes povos de ítalas cidades;
Se com tormenta igual de sangue e estragos
Também veio aos Troianos a vitória,
Por que à primeira ignavos desmaiamos?
Trememos antes que a trombeta soe!
410 Do tempo o vário andar melhora as coisas:
A muitos, que iludiu, fortuna instável
Repôs em firme estado. Se Arpo etólia
O nega, auxílio nos darão Messapo
E o próspero Tolúmnio, e os tantos cabos
415 De possantes nações; nem glória escassa
Aguarda a flor do Lácio e de Laurento;
E Camila pugnaz, de ilustres Volscos,
Turmas luzidas move e eqüestres forças.
Desafiado, apraz que eu só combata
420 Em proveito comum? não se me esquiva
Tanto a vitória, que intentada enjeite
Essa esperança. Um próprio Aquiles seja,
Vista e maneje o herói vulcânias armas,
Contra animoso irei. Somenos Turno
425 A nenhum dos avós, te voto, ó pátria,
E sagro esta alma. Enéias só me chama?
Chame, eu peço. Nem antes pague-o Drances,
Caso que o céu funesto se nos torne;
Nem sua intrepidez nos tire a palma.”

430 Entre a dúbia contenda, o campo Enéias
Levanta e marcha. Um núncio alvoroçado
Corre ao paço, e a Laurento enche de susto:
Que o teucro e tusco exército em batalha
Desce do Tibre, invade-se a campanha.
435 Turba-se o vulgo, os peitos se conturbam,
Não leve estímulo os furores cresce:
Armam-se à pressa, o moço armado freme,
Lamenta e rosna o velho; os ares fere
O discorde multíplice alarido:
440 Al não sucede, se voláteis bandos
Pousam no bosque, ou soam do piscoso
Pado em loquazes tanques roucos cisnes.
Turno o instante aproveita: “É bem, consócios,
Reuni conselho, a paz louvai sentados;
445 Eles de assalto ruam.” Nem mais disse;
Larga impetuoso a régia: “Tu, Voluso,
Volscas esquadras prestes, guia os Rútulos;
Messapo, e vós irmãos Catilo e Coras,
Derramai na planície os cavaleiros;
450 Parte as entradas guarde e ocupe as torres;
A mais hoste me siga.” Eis da cidade
Corre-se aos muros. O conselho o mesmo
Latino pai suspende, e seus projetos
Nesta consternação tristonho adia:
455 Muito se acusa de não ter a Enéias
Por genro aceito e associado ao reino.
Pedras(79) e estrepes carretam, fossos cavam:
Roncam buzinas o cruento a l’arma.
O muro, em vários grupos, lance extremo!
460 Coroaram matronas e meninos.
Dádivas, de Minerva ao celso alcáçar,
Com suas damas a rainha leva;
E ao pé, submissos os decoros olhos,
Vai, do mal causa insonte, a virgem filha.
465 As mães da comitiva o templo incensam,
Espargem do limiar carpidas vozes:
“Deusa da guerra, armipotente Palas,
Quebra ao frígio ladrão tu mesma a lança,
Prostrado o abate, às portas o destroça.”

470 Turno fogoso aos prélios se aparelha:
Já rútula coiraça eri-escamosa
Veste horrente, e nas pernas grevas de ouro,
Inda nu da cabeça, a espada à cinta,
Do castelo, fulgindo, alegre pula,
475 E na idéia o triunfo se afigura:
Como, o cabresto quando enfim rebenta,
Livre o cavalo o aberto campo goza;
Ou vai-se ao pasto e às éguas; ou, do rio
Noto o banho, se deita à funda veia,
480 A cerviz a entonar, viçoso rincha,
Brincam-lhe as crinas pelo colo e espáduas.

Vem Camila encontrá-lo, e descavalga
Às portas a rainha, antes que o façam
As volscas turmas, que depois a imitam.
485 “Turno, diz, se tem jus uma alma nobre
De em si crer, de arrostar eu só te fico
Ílias coortes, cavaleiros tuscos.
Estrear me permite a guerra e os transes;
Tu defende as muralhas a pé firme.”
490 Turno olhos fixa na tremenda virgem:
“Que assaz graças te posso, honra de Itália,
Aqui render? mas, que já que a tua audácia
Tudo excede, comigo os riscos parte.
Enéias, como espias mo confirmam,
495 Cavalaria avança que ligeira
Bata a campanha, e de ermos e árduos montes
Contra a cidade se despenha astuto:
Traço estar de emboscada em curvo atalho,
Soldadesca cercando as fauces bívias.
500 Tu, juntos os pendões, cai nos Tirrenos;
O acre Messapo e as tiburtinas hostes
E as do Lácio terás: comanda em chefe.”
Volto a Messapo, o exorta e os cabos todos,
E em busca do conflito o passo aperta.

505 Apto ao bélico dolo, um vale inflexo,
Negra espessura o encerra; onde uma trilha
Por estreita garganta a custo guia.
Jaz de cima num cume, a cavaleiro,
Planura ignota, abrigo retirado,
510 Quer tentes atacar à destra e à sestra,
Quer volver do cabeço enormes galgas.
Lá chega o jovem por sabidas sendas,
E de atalaia está na iníqua selva.

Entretanto Latônia à veloz Opis,
515 Do seu virgíneo coro uma das ninfas,
Lá no Olimpo sentida assim falava:
“Camila, a quem mais prezo(80), à cruel guerra
Parte, cingida em vão das armas nossas;
Nem, Opis, este amor veio improviso
520 Obrar com doce estímulo em Diana.
Metabo, de Priverno antiga expulso
Por ódio e prepotência, entre os conflitos
Salva a trouxe do exílio companheira,
Tenra menina; com mudança pouca,
525 Da mãe Casmila a nomeou Camila.
Com ela ao colo por desertos soutos,
Longínquos serros, circunfusos Volscos
A persegui-lo a dardos o oprimiam.
Da fuga em meio, as nuvens desabando,
530 Eis o Amaseno aluvioso espuma:
Quis nadar, mas temendo se reteve
Pela querida carga. Em si revolve,
E decide-se enfim: na mão robusta
Guerreiro tinha, de tostado sobro,
535 Rija e nodosa lança; embrulha a filha
Num cortiço, acomoda e a liga n’hástia;
E, com força a librá-la, assim depreca:
“Alma virgem Latônia, a ti, cultora
Dos bosques, eu seu pai t’a voto serva;
540 Súplice na tua arma ei-la que foge
Do inimigo; recebe-a, deusa, é tua,
Eu t’a encomendo pelas dúbias auras.”
Disse, e o bucho contrai, o hastil contorce:
Brame o rio; a infeliz por cima voa
545 No estridente arremesso. Então Metabo,
Urgido mais e mais, se entrega às águas;
Da relva, em que a depôs, na lança a virgem
Arranca vencedor. Nem teto ou muro
O acolheu, nem as mãos altivo dera:
550 Solitário pastor vivia em brenhas;
E ali, criando a filha em gruta brava,
De égua armental às tetas, lhe mungia
Ferino leite nos mimosos lábios.
Mal que a pino a menina as plantas firma,
555 Dardo agudo pejando-lhe as mãozinhas,
Pendura-se-lhe ao ombro aljava e arco;
Por áurea coifa, por comprido manto,
Às(81) costas lhe descai tigrina pele:
Já frechas pueris brincando joga,
560 Da cabeça em redor volteia a funda,
Grou derriba estrimônio ou branco cisne.
Nora a desejam muitas mães tirrenas;
Mas, dedicada a Febe, amor eterno
Rende às setas pudica e à virgindade.
565 Oh! se belaz não provocasse os Teucros,
E ora me fosse companheira cara!
Sus, ninfa, já que a preme atroz destino,
Do pólo baixa manso onde os Latinos
Pugnam com sestro agouro. Ouve, e do coldre
570 Ultriz frecha prepara: Ítalo ou Frígio,
Quem quer que a vulnerar sagrada e bela,
Com seu sangue mo pague. Em nuvem cava
Trarei não desarmada a miseranda,
Por que em pátrio jazigo a deposite.“
575 Não mais; e ela, em nublado escuro envolta,
Pelas auras sonoras se desliza.

Mas já Teucros e Etruscos se apropínquam,
Toda a cavalaria em turmas certas:
Freme o sonípede, a pular garboso,
580 E aqui virado e ali, reluta ao freio;
Hórrida em férrea messe, arde a campina.
Com os latinos céleres Messapo,
E Coras com o irmão, Camila e os Volscos,
Aparecendo opostos, longe vibram
585 Zargunchos e hastas, retraindo os braços:
De homens ferve o tropel, relinchos fervem.
A tiro, as hostes ambas fazem alto:
Rompe a cuquiada, incitam-se os cavalos;
Granizam como neve espessos dardos,
590 Que o céu tornam sombrio. Em riste as lanças.
Tirreno e Acônteo acérrimo ruidosos
Se investem logo, e os brutos se abalroam
Peito com peito: sacudido Acônteo,
Qual por trabuco o peso, ou como raio,
595 Se precipita, e no ar a vida esparge.
Turbam-se; e, adargas para trás virando,
Os Latinos de trote aos muros voltam.
No alcance, o bravo Asilas quase às portas
Leva os Troas; e, em grita os colos dóceis.
600 Revirando o inimigo, à rédea solta
Por turno retrocedem: não diverso
Da maré que, alternada, ou rola às terras,
E os cachopos orvalha, espuma e ronca,
Té lavar sinuosa a extrema areia;
605 Ou, ressorvidos os revoltos seixos,
Na ressaca lambendo às praias foge,
Ora, o Toscano ao Rútulo rechaça,
Ora o broquel também lhe ampara as costas;
Mas, no terceiro choque, barba a barba
610 Travam geral batalha: em ais e em gritos
Varões, corcéis morrendo, e corpos e armas
Em sangue rodam, n’áspera carnagem.

A hasta ao frisão (que a Rêmulo tem medo)
Brande Orsíloco, espeta-o sob a orelha:
615 Da ferida o quadrúpede impaciente,
Empinado, aos corcovos, escoiceia;
Vasa em terra o senhor, Catilo a Iolas
Derriba, e ao forte e corpulento Hermínio,
Que nu de ombros, sem elmo a flava coma,
620 Rojões despreza, aberto afronta os golpes.
Fixo na larga espádua o dardo treme;
O varão se contorce e à dor se encurva.
O cruor mana, estragos multiplicam;
Mata-se, ou busca-se acabar com honra.

625 De aljava, cérceo um peito, em ar Camila
De Amazona, entre a clade ufana e salta;
Já com pulso indefesso amiúda setas,
Já pronta esgrime a válida bipene;
Soa o áureo carcás, da Trívia as armas,
630 Se o dorso alquando vira, em retirada
O arco frechas alígeras despede.
Tula a escolta e Larina, e érea secure
A manejar Tarpéia; ítalas virgens
Que, à divina senhora a corte ornando,
635 São ministras na guerra e paz ditosa:
Quais, de pintado arnês guerreiras trácias,
O Termodonte as Amazonas pulsam;
Ou de Hipólite em cerco, ou da mavórcia
Rainha após o coche, uivando exulta
640 Com lunados broquéis femínea turba.
Quem primeiro, quem último, acre virgem,
Provou teu braço irado? a quantos prostras?
De Clício o filho Euneu, com longo abeto
O oposto seio traspassado, arroios
645 Vomita rubros, traga o chão cruento,
Na chaga moribundo a convulsar-se.
Págaso e Liris cai, um que ao varado
Bruto a cambalear sustinha as rédeas,
O outro ao sócio tendendo a inerme destra;
650 A par os precipita. Ajunta o Hipótio
Amastro; enrista a lança, e a Demofoonte,
Cromis, Tereu e Harpálico, persegue:
A moça a cada bote um varão mata.
Caçador, mas bisonho, Omito assoma
655 Em ginete iapígio; os ombros largos
Lhe arreia o espólio de brigão novilho;
Tem por elmo lupina ampla goela
E a queixada em que alveja a dentadura;
Empunha agreste chuça, e bizarreia
660 E sobrepuja a todos. Ela o aterra
Sem trabalho, as catervas derrotadas;
Sobre o corpo chasqueia: “Que! Tirreno,
Creste que monteavas? chega o dia
Em que hasta mulheril te abata as roncas;
665 Porém, não leve glória, aos pátrios manes
Conta que a Camila às mãos sucumbes.”
Rompe a Arsíloco e Butes, dois gigantes:
Entre o casco e a loriga a ponta em Butes
Crava, onde ao cavaleiro brilha o colo
670 E à sestra o escudo pende; em grande giro
Do outro fugir simula, e mais por dentro
Corta as voltas, seguindo o que a seguia:
Ei-la, alçada, a secure em armas e ossos
Mete ao varão que implora, os golpes dobra;
675 Quente no rosto o cérebro se esparge.

Com ela topa, estupefato embaça
Do apeninículo Auno o pugnaz filho,
Lígure em tretas guapo, enquando pôde.
Vendo que sem remédio era o combate,
680 Pois que instava a rainha; ardis e astúcias
Consigo meditando, assim começa:
“Em ligeiro frisão, mulher, te fias?
Não fujas, de mais perto em livre campo
A pé vem pelejar: saberás presto
685 A quem seja danosa a fofa glória.”
Disse: ela em fúria, acesa em dor austera,
Dando o ginete à sócia, a pé galharda,
Ferro nu, puro o escudo, igual o espera.
Ele, o dolo eficaz julgando, abala,
690 Torce a brida na pressa, e com ferrado
Calcanhar o quadrúpede esporeia.
“Lígure fanfarrão, debalde ufano,
As pátrias artes lúbrico tentaste;
Salvo a teu pai a fraude não te renda.”
695 Nisto, ígnea a virgem com velozes plantas
Passa o cavalo, adversa o freio prende,
E se despica no inimigo sangue:
O sacro açor tão fácil de alta penha
Adeja, empolga a remontada pomba,
700 De unhas aduncas no ar a desentranha;
Chove o cruor de cima e avulsas penas.

Não descuidado olhando, o pai supremo
Do Olimpo isto contempla; e, ao sevo marte
O etrusco Tárchon suscitando, o irrita
705 E estimula e exaspera. Entre a matança
E as frouxas alas ei-lo a trote corre,
Grita aos seus, um por um nomeia e instiga,
Alenta e o prélio instaura: “Ó vis Tirrenos,
Fracos sempre e insensíveis, tanta ignávia,
710 Tal medo vos quebranta? as vossas turmas
Uma mulher derrota e as afugenta.
Por que o ferro cingis e empunhais lanças?
Lerdos não sois de noite em cíprias lides,
Ou, se aos coros vos soa a curva tíbia,
715 Para o banquete lauto e lieus copos;
Vosso amor, vosso estudo: aos bosques santos
Ide, hóstia gorda e o áugur vos convida.”

Então, perecedouro, o bruto pica,
Túrbido aferra a Vênulo e o desmonta,
720 Abraçado com ímpeto o arrebata.
Clamor se ergue; ante os olhos dos Latinos,
Tárchon fulgúreo voa, e pelo campo
Leva o armado varão: quebra-lhe a choupa
Da haste, e a parte esquadrinha onde lha enterre.
725 Força ele opondo à força, renitente
Sustém, repele do pescoço a destra.
Quando águia fulva a surto preia a serpe,
Pés nela e a garra implica, vulnerado
O dragão volve as sinuosas roscas,
730 Hirta a escama, se enrija e silva e empina-se;
A águia de bico adunco urge-o lutante
Mais e mais, e aleando açoita os ares:
Tárchon não menos da tibúrcia presa
Folga; os Meônios com o exemplo investem.
735 Aqui, fadado à morte, o dardo em punho.
À pista Arunte da veloz Camila,
Catando a ocasião, por onde as turbas
Furente ela penetra, cauteloso
A rodeia, e por onde vencedora
740 Do inimigo reverte, a furto o jovem
Retorce tácito a ligeira brida;
Esta aberta em circuito e aquela tenta,
Improbo o dardo a menear certeiro.

Cloreu sacro a Cibele, outrora antiste,
745 Brilhando em frígio arnês, metia o espúmeo
Ginete em obra, com xairel de pele
De énea malha e áureas plumas recamado:
Luz em ferrenha púrpura estrangeira,
Lício o corno a vibrar cortínias frechas;
750 Dourados arco e morrião lhe tinem;
Crócea a roupa, do linho os rugidores
Seios colhe em nó fulvo, e tem bordadas
A túnica e as barbáricas polainas.
A virgem, por que em templo insígnias tróicas
755 Fixe, ou caçando fulja em áureo espólio,
Cega após ele, sem que os mais lhe importem,
Incauta se abrasava, entre as fileiras,
No amor femíneo da vistosa presa.
Eis que a tempo à traição dardeja Arunte,
760 Depois que assim depreca: “Sumo Apolo,
Do Soracte custódio venerado,
Em cujo culto píneo ardor cevamos,
E afoitos na piedade, em vivas brasas
Entre a fogueira os passos imprimimos,
765 Dá-me apagar, ó padre, a nossa injúria.
Troféu não peço da prostrada virgem,
Nem seus despojos, honrem-me outros feitos:
Como ao golpe desta arma a dira peste
Derribe, à pátria me retiro inglório.”
770 Parte lhe ouviu do rogo o deus benigno,
Parte em auras dissipa: à morte anui
Da surpresa(82) Camila, mas lhe nega
Rever a excelsa pátria; e pelos notos
As procelas a voz lhe dispersaram.

775 Ao despregar da rechinante vira,
Convergem todos à rainha os Volscos
Túrbidos olhos. Ela não pressente
O ar, o estridor, a farpa, até que à cércea
Mama ferra-se a ponta e funda o sangue
780 Virgíneo bebe. Açodem logo as sócias,
Trépidas a senhora sustentando.
Entre alegria e susto Arunte escapa-se;
Nem mais confia em dardo, nem da virgem
Arrostar ousa as lanças. Quando o lobo,
785 Antes que os tiros chovam, por desvios
Vai-se, morto o pastor ou nédio almalho,
Na montanha esconder; cônscio da audácia,
Pávido o rabo encolhe e as selvas busca:
De evadir-se contente, assim medroso,
790 Arunte no tropel desaparece.
A haste ela a morrer saca; mas o ferro
Pregado às costas fica-lhe entre os ossos.
Desmaia, baça a vista, exangue e fria;
Desbotam-lhe no rosto as frescas rosas.
795 A donzela, a expirar, dos seus cuidados
À confidente e mui querida fala:
“Mais, Aca irmã, não posso; ao golpe acerbo
Faleço, e tudo se me enoita em roda.
Já, leva de Camila o final termo:
800 Turno suceda-me, e repila os Teucros.
Adeus, adeus.” E então largando as rédeas,
Da sela cai; gelada a morte aos poucos
Solve-lhe o corpo, lânguida a cabeça
E o colo pousa, demitindo as armas;
805 Geme e agastada a vida aos manes baixa;
Súbito grita imensa atroa os astros,
Mais se encruece a pugna; em mó concorrem
Teucros, Tirrenos e de Evandro as alas.

Mas, por Diana, há muito em celso monte
810 Espreita Opis impávida as pelejas;
E, avistando entre os jovens clamorosos
Ao passamento a vítima rendida,
Exclamou suspirosa: “Ai! triste virgem!
De encarares o Frígio atroz castigo!
815 Honrar a Trívia por desertos matos,
Nem ombrear valeu-te aljavas nossas.
Porém tua rainha em tal afronta
Não sem lustre ou renome te abandona,
Nem morrerás inulta. As justas penas,
820 Quem quer que seja o temerário, pague-as.”
De um teso às faldas, sob azinha opaca,
Do lácio rei Derceno havia antigo
De térreo acervo o mausoléu: parando
O ímpeto ali, do combro a ninfa bela
825 Pesquisa Arunte; a relumbrar tumente
Como o avistou: “Vem cá; por que te afastas?
Recebe de Camila os dignos prêmios.
Que! vão manchar-se em ti de Febe as armas?”
Disse, e do áureo carcás ligeira seta
830 Qual Trácia tira, e infensa o corno atesa,
Encurva e puxa, até que ajunta as pontas,
E toca a sestra mão no ferro agudo,
Na teta o nervo e a destra: simultâneo
Ouve Arunte o zunido e o ar sonoro,
835 Sente o farpão no corpo. Em mortais vascas
No ignito pó gemendo, os seus o esquecem;
E Opis libra-se, adeja à casa etérea.

Morta a rainha, a leve turma foge;
Fogem Rútulos, foge o mesmo Atinas;
840 Chefes e esquadras, por salvar-se, ao muro
Em confusão galopam destroçados.
Ninguém resiste aos sitibundos Frígios
E aos letíferos dardos: mal sustentam
Os bambos arcos nos languentes ombros;
845 No trote o chão pulvéreo as patas batem.
Volve às muralhas túrbida caligem;
E dos balcões, os peitos lacerando,
Aos céus clamor femíneo as mães levantam.
Os que atingem primeiro as francas portas,
850 Baralhado o inimigo os acabrunha:
Ao pátrio umbral, da morte não se evadem;
Em seus lares expiram traspassados.
Parte, os portões cerrando, abrir não ousa,
Nem recolher os sócios que o suplicam:
855 Dos que proíbem, dos que entrar forcejam,
Nasce triste matança; atroz conflito!
Os de fora, ante os pais e as mães chorosas,
Uns, na ânsia, aos fossos em despenho rolam,
Uns, solta a brida, no alvoroto cegos,
860 De encontro a ombreiras e batentes marram.
Camila ao verem (santo amor da pátria!),
No último transe intrépidas matronas
Das ameias por ferro precipitam
Pértigas, fustes, achas; e as primeiras
865 Por morrer na defensa ali se inflamam.

Na emboscada porém, cruel notícia!
Aca enche a Turno do tumulto ingente:
Que, perdida Camila e os Volscos rotos,
O hostil próspero marte arrasa tudo;
870 Que avança o Frígio, e o medo ganha os muros.
Furente (assim o quer severo Jove)
O áspero cole e fauces desocupa.
Extra-alcance, mal que ele os campos toca,
Entra a livre espessura o padre Enéias,
875 Supera o cume, sai da escura selva.
E entre si longos passos não distando,
Ambos em veloz marcha aos muros correm.
Tanto que a fumear enxerga Enéias
Poento o plaino e os batalhões laurentes;
880 Turno as armas conhece e o bravo chefe,
E o nitrido e o tropel dos brutos ouve.
Logo a batalha e as brigas travar-se-iam,
Se já no ibero ponto o róseo Febo
Os cavalos cansados não tingira,
885 Cedendo à noite o dia. Ante a cidade
Assentam-se arraiais e se entrincheiram.

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eneida de virgílio:obra completa(10)

LIVRO X

 

De par em par o onipotente Olimpo,
Concílio o pai divino e rei dos homens
Chama à sidérea corte; excelso as terras
Fita e o campo troiano e os lácios povos.
5 Sentam-se; ele nas salas bipatentes
A mão tomou: “Celícolas egrégios,
Por que, mudados, contendeis iníquos?
Vedei guerra entre os Ítalos e os Frígios,
E revéis a soprais? Que medo uns e outros
10 Compele às armas e provoca o ferro?
Não vos antecipeis, que em Roma altiva
Um dia soltará Cartago fera
Exício grande e os devassados Alpes:
Ódios então permito e o saque e os prélios;
15 Quero hoje paz, condescendei comigo.”

Breve Júpiter foi; mas Vênus linda
Não breve o contestou: “Poder eterno
De humanos e imortais (pois que outro apoio
Implorar devo?), a rútula insolência
20 Notas, padre, e o ruído com que Turno
Campeia túmido em propício marte:
Valo ou muralha os Frígios não resguarda;
Dentro e nos bastiões pelejas travam;
Sangue os fossos inunda. Ausente Enéias
25 O ignora. O sítio nunca mais levantas?
Ílio nascente os inimigos forçam;
Outro exército avança, e de Arpo etólia
Ameaça os Teucros outra vez Tidides.
Certo me aguardam, penso, outras feridas;
30 Mortais armas receio, eu prole tua.
Se a teu pesar estão na Hespéria os Troas,
Não mos ajudes, seu delito expurguem;
Se lei cumprem superna e a voz dos manes,
Como inda há quem transverta as ordens tuas
35 E reforme o destino? As naus combustas
De Erix na praia, o rei das tempestades
Cabe alegar na Eólia concitado,
E Íris do céu baixando? Ora até move
(Restava este recurso) o mesmo inferno,
40 De chofre acima remetendo Alecto,
Que a debacar a Itália contamina.
Já de impérios prescindo: isso esperámos
Em melhor quadra; vença quem te agrade.
Se, dura aos nossos, tua esposa nega
45 Na terra um canto, pelo exício de Ílio
Fumante obsecro, do conflito o neto
Incólume apartar me outorga, ó padre.
Bote-se Enéias por ignotos mares
À mercê da fortuna: eu valha ao menos
50 De ímpio combate a subtrair Ascânio.
Tenho Idálio, Amatunta e a celsa Pafos,
Mais Citera, onde obscuro imbele viva:
Deixa que Tiro atroz a Ausônia oprima;
Ele nada obsta ao púnico domínio.
55 Que monta que, evadido à peste argiva,
Das chamas se livrasse? que, em demanda
Da recidiva Pérgamo, os perigos
De imenso mundo e pélago exaurisse?
Por que sob pátrias cinzas não ficaram?
60 Míseros, peço, os rende ao Xanto e Símois:
Tornem, padre, a versar de Tróia os casos.”

Juno régia, o rancor não mais contendo:
“Pois a romper e a divulgar me obrigas
A silente ima dor? Que deus ou que homem
65 Fez que a Latino o sorrateiro Enéias
Hostilizasse? À Itália, fado seja,
Foi-se a impulsos das fúrias de Cassandra:
Nós o forçamos a largar a praça,
A vida entregue aos ventos? a um menino
70 Confiar o comando? a fé tirrena
E a paz turbar dos povos? A tais faltas
Qual nume o arrasta, qual dureza nossa?
Íris baixou do céu, entra aqui Juno?
É mau que Ílio nascente as flamas cinjam,
75 E ao país ame Turno, o de Venília
Deusa nado o tresneto de Pilumno:
Que importa que atro facho Ílio sacuda,
Subjugue o Lácio, alheios(58) campos tale?
Que sogros fraude, a noivos tire noivas?
80 Que armas nas popas fixe e o ramo arvore?
Roubar da aquiva garra o filho podes,
Por vã névoa trocá-lo; a frota em ninfas
Tu podes converter: um pouco a Turno
Socorrermos é crime. Enéias tudo
85 Ausente ignora: pois ignore ausente.
Que! tens Pafos, Citera, Idálio; e tentas
Um chão de guerras prenhe e a peitos feros?
Nós de Ílio os débeis restos subvertemos,
Ou quem míseros Troas contra os Gregos
90 Açulou? Foi por nós que o rapto armado
Solvera de Ásia e Europa as alianças?
Que o Frígio adúltero expugnara Esparta?
Eu lides fomentei com paixões torpes?
Teu medo então convinha: tarde surges
95 Com injusto queixume e fútil bulha.”

Juno orava; os celícolas sussurram
Com vário assenso, qual primeiro os sopros
Na mata a murmurar volteiam cegos,
Anúncio da procela ao marinheiro.

100 Do árbitro poderoso ao grave acento,
Cala a diva morada, o ar sumo cala,
Nos eixos treme a terra, amaina o pego,
Zéfiros sossegando: “Ouvi-me, e n’alma
A sentença imprimi. Já que é defeso
105 Teucros e Ausônios congraçar, nem finda
Vossa discórdia, esperançoso corra
Seus fados cada qual, desde hoje trato
Sem diferença a Rútulo ou Dardânio;
Quer à Hespéria nocivo ature o assédio,
110 Quer por erro de agouro em mal de Tróia,
Jogado o lanço foi: rei justo às partes,
Júpiter os destinos não desliga;
Estes rumo acharão.” Pela do estígio
Irmão pícea torrente e negro abismo
115 Jura, e ao nuto estremece o Olimpo todo.
Fecha o concílio: ergueu-se do áureo trono;
E ao limiar os deuses o acompanham.

Insta o Rútulo entanto à roda e às portas,
Mata, incendeia, estraga. Atém-se aos valos
120 A encerrada legião, sem mais refúgio:
Rara os muros coroa, e as torres altas
Ah! mal guarnece. À testa Ásio Imbracides,
Os Assáracos dois, o Hicetaônio
Timetes, e Castor e o velho Timbris
125 Estão; mais Claro e Hemom da nobre Lícia,
De Sarpédon germanos. Grã penedo,
Viva lasca do monte, Acmom Lirnéssio
Deita às costas, e iguala a seu pai Clício
E a Mnesteu seu irmão no esforço e arrojo.
130 Com zagaias, com pedras se defendem;
Remessam fogo, ao nervo adaptam setas.
Da Cípria ânsia e cuidado, ali no meio
Brilha sem casco o belo adolescente;
Na cerviz láctea o crino desparzido,
135 Mole círculo de ouro o ata e apanha:
Dest’arte, em fulvo engaste a gema adorna
Fronte ou colo, e embutida ebúrnea peça
No orício terebinto ou buxo esplende.
Viram-te, Ismaro, as gentes valorosas
140 Despedir frechas de veneno armadas,
Garfo brioso da Meônia fértil,
Onde agros o Páctolo irriga de ouro.
Mnesteu não falha, a quem sublima a glória
De haver a Turno da bastida expulso;
145 E Cápis, de quem teve o nome Cápua.

Da guerra o cargo repartiu-se entre eles;
De volta, rasga o herói noturnas vagas.
De Evandro assim que passa ao rei da Etrúria,
Quem era expôs, a que ia, em que é prestante;
150 Quanto auxílio granjeia o cru Mezêncio,
Quão violento o rei Turno, quão falível
A sorte humana; e preces intermeia:
Tárchon alia sem demora as forças,
E os pactos fere. Solto o fado, os Lídios
155 Com chefe externo, por querer divino,
Se embarcam. Vai diante a popa enéia,
Frígios leões ao beque, e na bandeira
O Ida, enlevos dos prófugos Troianos.
Sentado Enéias, volve em si tão vários
160 Eventos; e Palante, à sestra, inquire
Já do sidéreo curso e opaca noite,
Já dos trabalhos dele em mar e em terra.

Abri-me o Helicon, Musas; descantai-me
Que tusca multidão, munindo os lenhos,
165 Vogue na azul campina. Após Enéias,
Mássico bem na Tigre eri-chapeada,
Com bravos moços mil de Clúsio e Cosas,
De arco letal ao ombro e de polido
Sagitífero coldre. O brusco Abante
170 A par, a gente relumbrava(59), e à popa
Dourado Apolo: Populônia madre
Mancebos destros lhe fiou seiscentos;
Trezentos Ilva, de metal calíbio
Fecunda ilha inexausta. O mago Asilas,
175 A quem o humano e o divinal descobrem
Astros, fibras de reses, línguas de aves
E o pressago fulgor, conduz terceiro
De hastatos mil espesso horrendo bando;
Que lhos subordinou, de alféia origem,
180 Pisa etrusca. Pulquérrimo, em cambiante
Arnês afoito e em seu corcel, trezentos
Astur ajunta (um mesmo ardor em todos)
Na pátria Cérete, em miniônias margens,
Pestífera Gravisca e Pirgo-Vedra.
185 Não te omito, ó Ciniras, belacíssimo
Rei da Ligúria; e a ti, que poucos mandas
E hás no tope, Cupavo, císneas penas:
Foi culpa aos vossos a amizade, a insígnia
É da paterna forma. Cicno, contam,
190 Saudoso de Faeton, quando entre choupos,
Das irmãs deste à sombra, o amor em nênias
E o luto consolava, em brandas plumas,
Qual velho encanecendo, ao céu cantando
Se elevou. Na companha iguais penachos,
195 Rema o filho alta nau, donde um centauro
Árduo com pedra enorme acena às águas,
Arando o buco longo o plaino equóreo.
Também da pátria move as turmas Ocno.
Prole da vate Manto e um tusco rio,
200 Que o nome da mãe deu-te e muros, Mântua;
Mântua, rica de avós, não de uma estirpe,
De tribos três, por tribo quatro cúrias,
És cabeça, e te alenta o sangue etrusco.
Dali contra Mezêncio, em pinho infesto,
205 Do pai Benaco o Míncio, de arundíneo
Verdoengo véu, despeja mais quinhentos;
Auletes sério os guia, e vira e açoita
De árvores cento o mármore espumoso:
Trá-lo imano tritão, que os vaus cerúleos
210 A búzio aterra, humano híspido o rosto,
De ceto o imerso ventre, ao semifero
A vaga sob o peito alveja e estoura.

O tétio sal com bronze, em baixéis trinta,
A pró de Tróia cabos tais retalham:
215 A alma Febe, o Sol posto, meio Olimpo
Já no carro noctívago atingia.
O cauto Enéias, sem dormir cuidoso,
Prossegue dirigindo o leme e as velas:
Eis um coro de ninfas lhe aparece,
220 Naus suas que a benéfica Cibele
Deusas do ponto fez; a nado o sulcam
Tantas emparelhadas, quantas éreas
Proas retinha a praia, e apercebendo
A seu senhor, com danças o circundam.
225 Atrás Cimódoce, a melhor falante,
Na destra a popa tendo, alteia a espádua,
Sorrema com a esquerda as ondas mudas;
Ignaro o adverte: “Enéias, tu vigias?
Vigia, ó divo, ao pano escotas larga.
230 Do cume sacro ideu somos teus pinhos:
Do Rútulo a perfídia a ferro e fogo
Nos apertava, e amarras nós invitas
Quebrando à pressa, em tua busca andamos;
Que em fluctícolas deusas compassiva
235 Aviventou-nos Réia. Ascânio, saibas,
Dos rojões do latino feio marte
A custo se defende; já da Arcádia
Junta a cavalaria ao Tusco estrênuo(60)
Postou-se onde marcaste, e firme a que eles
240 Se aproximem da praça opõe-se Turno:
Sus, na alvorada a l’arma soar manda;
O invicto escudo embraça de orlas de ouro,
Primor do Ignipotente. Em mim se creres,
Será crástina a luz espectadora
245 De rútula estupenda mortualha.”
Então, não peca no mister, a popa
Celsa empurrando, pelas ondas foge,
Ligeira como a frecha ou leve xara:
As mais também. Estupefato o Anquíseo,
250 Contudo anima os seus com tal presságio,
E ora curto, encarando o azul convexo:
“Divina genitriz, que as torres presas,
Leões cangas e enfreias; pois me induzes
À guerra, ó Dindimene, o agouro aspira,
255 Com pé vem protetor, assiste aos Frígios”.
Al não disse; e, à carreira o Sol tornando,
Com lume já maduro espanca a treva.
Logo Enéias, bandeiras despregadas,
Arma, apresta, acorçoa. D’alta popa
260 Seus arraiais contempla, e ao braço esquerdo
Exalça o ígneo broquel. Do muro os Teucros,
Voz em grita (a esperança esperta as iras)
Jaculam tiros: quais sob um nublado
Grasnam estrimónios(61) grous, que a Noto esquivos,
265 Dando ledos a senha, os ares tranam.

Turno e os seus o estranhavam, té que enxergam,
Popas voltas à praia, o mar coalhando,
A frota prolongar-se. Arde a celada,
Lampeja a Enéias o cocar, do escudo
270 O diamante flamívomo centelha:
Lúgubre assim rubeja em lenta noite
O sangüíneo cometa; ou, sede e morbos
Dardejando aos mortais, fervente Sírio
Com funesto luzir contrista o pólo.
275 Nada esmorece a Turno; apoderar-se
Da praia intenta e obstar ao desembarque.
Incita, exorta: “O ensejo desejado
Ei-lo, varões; obrai, que o marte mesmo
Se vos entrega: esposa e lar vos lembrem,
280 Lembrem-vos pátrios feitos gloriosos;
Acorramos à borda e os encontremos,
Trépido o passo enquanto lhes vacila:
Audazes a fortuna favorece.”
Nisto, elege os que o sigam nesta empresa,
285 Outros incumbe de manter o assédio.

Já lá das popas lança o Teucro pranchas.
Tais à espera do lânguido refluxo,
Tais os remos fincando, aos baixos pulam.
Onde nem brotam vaus, nem rechaçada
290 Remuge a onda, mas se alisa mansa
Do fluxo no montar, observa Tárchon;
Rápido as proas vira, e aos nautas insta:
“Picai voga, eia, alçai-vos, gente forte,
Impeli-me os baixéis; que os rostros fendam
295 O solo hostil, e sulco se abra a quilha.
É nada o naufragar, se pojo em terra.”
Ele ordena, e estribando ao remo investem;
Os barcos a espumar direito abicam,
Até que, os esporões em seco varam,
300 E ilesos cascos assentaram, menos
A tua popa, Tárchon; pois de iníquo
Dorso encalhada pende, um tempo nuta,
Maretas cansam-na, e desfeita vasa
N’água a turba varonil(62), que fraturados
305 Bancos e remos à matroca impedem,
E a ressaca a repulsa e os pés lhe embarga.
Nada ignavo, o acre Turno contra os Frígios
A hoste arremessa toda, e a praia ocupa.

Toca à degola. Enéias fausto a enceta
310 Sobre o agreste esquadrão; rompe os Latinos,
Morto o maior. Teron, que ousa arrostá-lo:
Penetrando o éneo escudo e auri-escamosa
Túnica, a espada lhe embebeu na ilharga.
Seu ferro a Lichas prostra, que a ti sacro,
315 Febo, da extinta mãe sacado infante,
Pôde no ferro escapar. Não longe o duro
Cisseu derriba e o corpulento Gias,
Que a turmas esmagavam: não lhes presta
Clava, nem pulso hercúleo, e o pai Melampo,
320 Sócio nos transes do lidado Alcides.
A Faron, que jactâncias vocifera,
Na boca um dardo retorcendo enfia.
E tu, pobre Cidon, que ias trás Clício,
Teu novo gosto, em cujas faces punge
325 Lanugem loura, à tróica mão caíras,
Quite do insano amor que aos jovens tinhas;
Se em mó, de Forco nados, não saíssem
Irmãos sete que arrojam sete lanças:
Parte, as rebate o escudo e o capacete;
330 Parte a soslaio o alcança, e as torce Vênus.
“Hastas, Enéias brada, hastas, amigo,
Das que em Tróia preguei no corpo aos Gregos;
Aos Rútulos nenhuma irá frustrânea.”
Pega uma ingente, que a voar a adarga
335 Brônzea a Meon traspassa e a malha e os peitos.
Corre Alcanor, sustenta o irmão que tomba:
O lagarto lhe encrava outro arremesso,
Que progride(63) cruento; e pelos nervos
Da espádua o braço moribundo pende.
340 Eis do irmão Numitor a farpa arranca,
E a revira ao herói; mas não lhe coube
Tocá-lo, e a coxa ao grande Acates roça.

Clauso de Cures, no verdor fiado,
Lá vibra a Dríope um zarguncho rijo
345 Sob o queixo, e lhe tronca a fala e a vida,
Rota a goela; em terra a testa bate,
E a boca lhe vomita em grumos sangue.
Destroça vário a Traces três, prosápia
De Bóreas digna, e a três de ismara pátria,
350 Que Idas padre enviou. Com seus Auruncos
Acode Haleso; acode o éqüite insigne
Messapo de Netuno: ora uns, ora outros,
No umbral da Ausônia a combater, se expelem.
No espaço a pleitear discordes ventos,
355 Em força e ânimo iguais, entre si lutam,
Nuvem nem mar cedendo; e renitentes,
Dúbio a durar o prélio, a tudo afrontam:
Dest’arte os Frígios travam-se e os Latinos,
Pé com pé, rosto a rosto, arca por arca.

360 Palante alhures, onde ampla torrente
Seixos rola e arvoredos extirpados,
Vendo os Árcades seus, que, se apeando
Pelo áspero terreno, desafeitos
À pedestre contenda, ao sequaz Lácio
365 Voltam costas; segundo as ocorrências,
Roga, invectiva, os brios reacende:
“Fugis, irmãos? por vós, por vossos feitos,
Pela do caro Evandro invicta glória
E a que nutro esperança de emulá-lo,
370 Não confieis nos pés: que a ferro entremos
Por onde espesso engloba-se o inimigo,
Alto a Palante e a vós prescreve a pátria.
Não divos, são mortais que a mortais urgem;
Mãos também e almas temos. Golfo imenso
375 Nos obsta; à fuga terra já nos falta:
Buscaremos o pego ou teucros muros?”
Cessa, e por densos batalhões prorrompe.
Lago, ó desgraça! o topa; e, enquanto lasca
Pesada rocha, de través Palante
380 Finca-lhe, onde o espinhaço as costas parte,
E extrai a choupa aos ossos aderente.
Cuida Hisbon surpreendê-lo; e quando, cego
Do cruel fim do amigo, em fúria salta,
No inchado bofe o herói some-lhe o estoque.
385 Vai-se depois a Sténelo, e à de Reto
Vetusta raça, Anquémolo, que o toro
Da madrasta incestou desaforado.
Timbro e Larida, o pó mordestes gêmeos,
Dáucia prole simílima e indistinta,
390 Aos pais erro suave: o gume arcádio
Vos pôs duro descrime; a ti cerceia,
Timbro, a cabeça; e a destra mutilada,
Larida, a procurar-te, o ferro aperta
Nos semiânimes(64) dedos palpitantes.

395 A voz do chefe, o exemplo, dor, vergonha
Os Árcades inflama, que arremetem.
Mata o moço a Reteu, que em biga, ó nobres
Irmãos Tires e Teutras, vos fugia:
A Ilo, a quem salva o espaço, longe atira
400 Válida hasta, que em meio a Reteu colhe;
Do carro ao chão resvala, e semivivo
Calca e percute a rútula campanha.
No estio, ao sopro de anelantes ventos,
Quando em selva o pastor semeia incêndios,
405 No âmago lavram e hórridos propagam
Em largo plaino exércitos vulcânios;
Ele altivo contempla ovantes chamas:
Os teus para ajudar-te assim, Palante,
Unem-se em feixe. O ardido Haleso contra
410 Rui, na armadura envolto: imola a Feres,
Demódoco e Ladon; seu talho a destra
A Estrimônio decepa, que ao pescoço
Leva-lhe a adaga; a seixo o crânio a Toas
Racha e esmigalha o cérebro sangüento.
415 Pressago o pai de Haleso o teve em brenhas:
A Parca o preia e sagra à lança evândria,
Solvendo ao velho os desmaiados lumes;
Palante o agride(65), orando: “Ó Tiberino,
O remessão que libro, alado o emprega
420 Do atroz varão no seio: um teu carvalho
Terá dele os despojos e estas armas.”
O deus o ouviu; que Haleso ao bote certo,
No cobrir a Imaon, descobre o lado.

Lauso, um pilar da guerra, os seus não deixa
425 De um tal golpe assustar-se: a Abante oposto,
Do combate eixo e nó, destrói; prosterna
Tuscos, Arcádios; nem vos poupa, ó Troas,
Poupados por Argeus. Travam-se, em cabos
E em força iguais; baralham-se as fileiras;
430 Os tiros e o manejo o aperto empacha.
Cá Lauso se afervora, além Palante,
Ambos eqüevos quase, ambos formosos;
Mas a pátria rever lhes nega o fado:
Não quis do Olimpo o rei que às mãos viessem;
435 Mor inimigo talhará seus dias.

Eis, da irmã por conselho, em veloz coche
Turno, a Lauso acudindo, as filas corta:
“Parai, sócios; recebo eu só Palante,
Palante a mim se deve: oh! se aqui fora
440 Testemunha seu pai!” Cedem-lhe o passo:
Admira o moço a obediência pronta,
Mede ao soberbo o talhe formidável,
Rodeia ao longe a furibunda vista,
E ao tirano responde: “Ou morte nobre,
445 Ou vai despojo opimo honrar meu nome;
Sorte igual a meu pai: não feros, obras!”
Falando ao plaino marcha: coalha o sangue
Nos corações arcádios. Pula Turno
Da biga, a pé remete; imagem própria
450 Do rompente leão que ao touro voa,
A quem de alto covil descobre em lutas
No prado a meditar. Ao crê-lo a tiro
De hasta, avança Palante; a audácia invoca
No desigual partido, e ao céu recorre:
455 “Se hóspede, Hércules, foste à pátria mesa,
Na ação me assiste; eu rubras tire as armas
A Turno semimorto; olhe penando
Seu vencedor no bocejar supremo.”
Alcides o escutou; fundo ai comprime,
460 Vãs lágrimas vertendo. Ao filho Jove:
“Cada qual, diz benigno, tem seu dia;
A vida é breve e irreparável tempo;
Mas rasgos de virtude a fama exalçam.
Quanta em Ílio caiu divina prole!
465 Té Sarpédon meu sangue! À meta chega
Turno também, e o chamam já seus fados.”
E foi do Lácio desviando os olhos.

Já teso a lança vibra, e da bainha
Palante puxa a lâmina fulgente:
470 De vôo a ponta encaixa onde a espaldeira
Pega o braçal; do escudo as orlas passa,
Do ombro ao Rútulo ingente a cútis fere.
Turno pujante aqui de choupa aguda
Sopesa um roble, e grita: “Vê se o nosso
475 Rojão melhor penetra.” E a coruscante
Farpa o broquel de férreas e êneas pranchas,
De couro táureo em dobras reforçado,
Rasga, os empeços da loriga fura
E o peito heróico. Embalde a quente choupa
480 Do rombo extrai: em sangue a alma esvaindo,
Por cima ao revoltar-se da ferida,
Sobressoam-lhe as armas, e expirando
A boca o solo hostil beija cruenta.
Salta-lhe ao corpo Turno: “Árcades, grita,
485 Não vos esqueça a Evandro o referi-lo:
Qual mereceu, remeto-lhe Palante:
De o tumular com pompa o alívio outorgo:
Caro a hospedagem pagará de Enéias.”
Então senta no morto a planta esquerda:
490 Rouba o talim de peso, e nele impressos
Do morticínio os tálamos sangrentos
Em jugal noite; culpa atroz, gravada
Pelo Eurítides Clono em chapas de ouro.
Turno com isto exulta: ó mente humana,
495 Fera e descomedida na bonança,
Do porvir néscia! intacto inda a Palante
Vir-lhe-á tempo que almeje a todo o preço,
E este espólio e façanha ele abomine.
Gemebundos e em pranto, os companheiros
500 O cadáver carregam sobre o escudo.
Oh! voltas a teu pai, dor grande e glória!
Deu-te um só dia à guerra e ao passamento;
Mas que montões de Rútulos deixaste!

A Enéias, não a fama, um messageiro(66)
505 De mal tamanho informa; e trasmalhados
Socorra os seus, que estavam por um fio.
Quanto encontra, arrombada a larga turba,
A gládio ceifa ardendo; achar-te anseia.
Turno ufanoso da recente morte.
510 Ante si tudo tem, Palante, Evandro,
A hospitaleira mesa, a destra amiga.
Vivos quatro a Sulmon, a Ufente agarra
Quatro alunos que imole à sombra, e reguem
Do seu cativo sangue a rogal chama.
515 Sobrevoa esgrimida a tremente hasta
A Mago astuto, que se agacha ao bote,
E suplicante abraça-lhe os joelhos:
“Pelo medrado Iulo e anquíseos manes,
A meu pai me conserves e a meu filho.
520 Muita prata em moeda, bruto e em obra
Soterrei cópia de ouro, em meu palácio:
Não libra em mim dos Teucros a vitória;
Nada empece uma vida.” Enéias presto:
“Guarda essa prata, esse ouro bruto e em obra
525 Para teus filhos: com matar Palante
Aboliu Turno as transações da guerra.
Isto, Anquises o aprova, Ascânio o sente.”
E a sestra no elmo, atrás lhe dobra o colo,
Onde a espada lhe enterra até aos punhos.

530 Perto o Hemônio, de Febe e Apolo antiste,
Com sacra fita às fontes presa a faixa,
Luzia na armadura e insignes vestes:
O herói o acossa, abate, o imola, o cobre
Da ampla sombra; Seresto apanha as armas,
535 E em troféu tas carrega, ó rei Gradivo.
A pugna instauram, de vulcânia estirpe
Céculo, e Umbro das mársicas montanhas.
Enfurece o Dardânio; à esquerda logo
A Anxur talha e desfaz rodela férrea:
540 Sonhava ele proezas, e esforçar-se
Com vozes crendo, e ao céu talvez se alando,
Brancas se prometia e logos anos.
De agreste fauno e dríope gerado,
Tarquito refulgindo enrista a lança:
545 O herói torcendo-a empece-lhe a coiraça
E o pesado pavês; descabeçando-o,
Lhe frustra a prece e o que dizer queria;
Revolve o tronco tépido por terra,
Com ânimo inimigo assim prorrompe:
550 “Jaze aí, valentão; nem madre ninfa
No pátrio solo inumará teus membros:
Serás de abutres pasto; ou, submergido,
Te hão de a chaga lamber famintos peixes.”
Persegue, na vanguarda, ao forte Numa,
555 Licas e Anteu, Camertes, louro filho
Do riquíssimo em lavras nobre Ausônio,
Volscente, o rei de Amiclas taciturna.
De cem braços e mãos Egeon, narram,
Fogo expirava de cinqüenta fauces,
560 Com cinqüenta broquéis tinindo, espadas
Cinqüenta a menear contra o Tonante:
Não menos, dês que o Frígio aquece o gume,
Bravo campeia. De Nifeu remete,
Peito a peito, à quadriga; e, assim que os brutos
565 Bramindo o avistam fero, amedrontados,
Retrocedendo rápidos, às praias
O coche rojam, seu senhor despejam.

Eis Lugo se apresenta em alva biga,
Mais o irmão Liger, que os frisões governa;
570 Lugo acérrimo esgrime o iroso ferro.
Tal fúria ao Teucro azeda; rui terrível
De hasta apontada. E Liger: “Não diomédios
Corcéis, carros aquíleos, frígios campos,
Tens aqui, vês a morte e o fim da guerra.”
575 Das fanfúrrias, que em ar se desvanecem,
Em troco Enéias lhes revira um dardo.
Prono Lugo, a pender nos loros, pica
Da arma os cavalos; por bater-se, adianta
O sestro pé: do aêneo escudo as orlas
580 Entra a ponta e a virilha esquerda fura:
Do carro a baixo moribundo rola.
E amaro o pio herói: “Nem tarda a biga
Falsou-te, ou sombras vãs a afugentaram;
Tu sim, Lugo, de um salto a abandonaste.”
585 Nisto, a parelha empolga. O irmão, coitado!
Desmontando estendia inermes palmas:
“Por ti, varão por teus progenitores,
Deixa-me a vida, abrandem-te meus rogos.”
“Diverso, o atalha Enéias, blasonavas;
590 Morre; irmão não é bem que o desampares.”
E estoqueia-lhe o peito, encerro da alma.
Qual tufão grosso ou túrbida torrente,
Ferais danos o Dárdano espalhava.
Rompe enfim da muralha o moço Ascânio,
595 Com seus guerreiros por demais cercados.

A Juno entanto Júpiter: “É Vênus,
Nem te enganas, consorte e irmã querida,
Que os troianos sustenta: ei-los cobardes,
Sem denodo ou constância nos perigos.”
600 Aqui Juno submissa: “Ó doce esposo,
Temo os remoques teus, por que me apuras?
Se inda, como convinha, o amor d’outrora
Eu te inspirasse, um dom não me negaras,
Onipotente: incólume ao pai Dauno
605 Guarde eu Turno da ação... Mas que! pereça,
Devoto sangue aos Troas laste as penas.
Deduz contudo o nome e origem nossa
Do tresavô Pilumno, e com freqüência
A plenas mãos cumula-te os altares.”

610 Breve replica o rei do Olimpo etéreo:
“Se a Turno queres que eu prolongue os dias
E achas que o posso; pela fuga o salves
De instantes fados: até aqui(67) me cabe
Condescender. Se encobres nessas preces
615 Mor graça, e a guerra transtornar concebes;
Apascentas baldias esperanças.”
E ela em choro: “O que a voz me cede a custo,
Se d’alma o desses, vida cheia a Turno!...
Mas transe o espera indigno, ou eu me iludo:
620 Oxalá sejam falsos meus temores,
E tu, que o podes, a melhor te inclines.”

Disse, e de lá dispara; de nevoeiros
Cingida, numa borrasca a precedê-la,
Baixa entre o campo ilíaco e Laurento.
625 Logo em feição de Enéias, ó prodígio!
Fraca de vácua nuvem sombra tênue
Arma à troiana; o escudo, as cristas finge
Da cabeça divina; ocas palavras(68),
Som lhe empresta sem mente, o andar e o gesto:
630 Como, é voz, do finado erra a figura;
Ou qual sonham sopitos os sentidos.
Ante as fileiras jubilando a imagem,
Dardos em punho, desafia a Turno.
Este, irritando-se, a estridente lança
635 Arremessa: o fantasma as costas volta.
Creu Turno em fuga a Enéias, e se rega
Alvoroçado em frívola esperança:
“Onde vais, Teucro? os tálamos desprezas?
Toma a terra, eu t’a dou, por mar buscada.”
640 E, após clamando, o gládio nu brandia,
Sem ver que é seu prazer seguir o vento.

À sáxea ribanceira, expostas inda
Pranchas e escadas, o navio estava
Que a Osínio rei de Clúsio transportara.
645 Ali pávido o esquivo simulacro
Deita a esconder-se; vence estorvos Turno,
Salta as pontes. A proa mal que atinge,
Rebenta os cabos Juno, arranca o lenho,
Pelas vagas revoltas o arrebata.
650 Por seu rival bramando o vero Enéias
Na homicida carreira prosseguia;
Já não se oculta, voa o aéreo vulto,
E em negrume cerrado se confunde;
Pelas ondas a Turno um tufão leva.
655 Ínscio, ingrato à mercê, contempla em roda,
Ao céu levanta as mãos: “Júpiter sumo,
Digno me julgas de desar tamanho?
Que punição? Para onde me conduzem?
Donde vim? Quem sou eu com tal fugida?
660 Como a Laurento e aos muros tornar posso?
Que dirão meus soldados? Ó vergonha!
Deixá-los eu na luta agonizantes!
Vejo-os daqui vagar, seus ais escuto.
Que farei? não me engole e some a terra?
665 Ventos, piedade! recebei meu culto
Voluntário: o baixel a vaus e escolhos,
A sirtes arrojai-me, onde nem saibam
Os Rútulos de mim, nem reste a fama.”

Tal discursava, e aqui e ali flutua;
670 Nem atina se enterre a crua espada
E em tanta afronta as costas se atravesse,
Ou se, entre os escarcéus, à curva praia
Nade e se restitua às teucras armas.
Três vezes foi tentá-lo, três conteve-o
675 A soberana Juno condoída.
O alto sulcando com maré propícia,
Na corte do pai Dauno antiga aporta.

Já Mezêncio cruel, de Jove a impulsos,
Lhe sucede, e acomete ovantes hostes.
680 Encontram-no agravados os Tirrenos;
Alvo é dos golpes todos. Como rocha
Está, que, protendida ao mar e aos sopros,
Os embates resiste e os ameaços
Do céu violento e furibundo pego.
685 A Hebro Dolicaônio o varão prostra,
Mais a Látago e Palmo fugitivo:
A Látago um fragmento da montanha
Esmecha e esmaga o rosto: a rojo Palmo
Rola dejarretado: a Lauso doa
690 O arnês que ombreie(69), as plumas com que se orne.
Escala o Frígio Evante e o caro a Páris
Mimas, filho de Amico, por Teano
Parido à noite que abortou Cisseide,
Prenhe de um facho: Páris jaz na pátria;
695 Mimas, que o não cuidava, em lácia borda.
Como o javardo, em canavial nutrido,
Que a dente correm cães, sobejo espaço
No pinífero Vésulo acoitado
E em laurência lagoa, ao dar nas redes
700 Pára, em roncos escuma, ouriça as cerdas;
Ninguém lhe ousa achegar, distantes raivam,
Em seguro gritando e a garrochá-lo;
Ele, impávido e atento, os queixos range,
Cospe do lombo a chuva de arremessos:
705 Tais, não com ferro em punho, mas de longe,
Desse odioso Mezêncio os inimigos
Com rojões e alarida o desafiam.

Prófugo, a velha Córito e imperfeitas
Núpcias largando o Graio Acron, purpúreo
710 Nas galas e cocar, da noiva mimos,
Descose as turmas: o tirano o enxerga.
Se o leão, que em jejum com fome ronda
Alto curral, fugaz a corça avista
Ou cervo de árduos cornos; sevo e hiante
715 Folga, hirta a juba, às vísceras deitado
Ferra-se, e em negro sangue as fauces lava:
Dest’arte vem Mezêncio e a chusma ataca.
Tomba expirando Acron, e ao debater-se
Calca o atro chão, cruenta as rotas armas.

720 Ferir desdenha a Orodes que se evade,
Remeter-lhe desdenha um bote cego;
Não destro nos ardis quanto era forte,
Adverso o alcança, mão por mão o aterra;
N’hasta apoiado, o pé lhe imprime sobre:
725 “Ei-lo, varões, o herói da guerra esteio.”
E os seus com ele entoam ledo peã.
Orodes a arquejar: “Serei vingado,
Nem longo exultarás; meu fim te espera,
Este pó vais morder.” Com riso amargo
730 O ímpio então: “Morre já; de mim disponha
Esse teu pai divino e rei dos homens.”
Disse, e lhe extrai do corpo o tenaz pique:
Urge-o repouso duro e férreo sono,
E em noite fecha eterna os baços lumes.

735 A Hidaspes Sacrator, a Alcato Cédico,
Rapon tronca a Partênio e o válido Orses;
Messapo a Clônio e o Árcade Ericetes:
Um de infrene corcel, derriba o outro
Pedestre a pé. Socorre-os Agis Lício,
740 Talha-o Valero com denodo avito;
A Trônio Sálio; a Sálio o bom Nealces,
Em dardo ou seta ao longe traiçoeira.

O luto e os funerais Marte equilibra:
Morrem, matam, vencidos, vencedores;
745 Não se rendem, não cedem, não fraqueiam.
Tanta ânsia nos mortais, e de uns e de outros
O vão furor a Jove e ao céu compunge:
Aqui Vênus atenta, ali Satúrnia.
Pálida a Erínis urra e assanha as turbas.
750 Torvo, a librar Mezêncio enorme lança,
Entra em campo, e se mostra em vastas armas:
Como Orion, de espáduas fora d’água,
Rasga a pés de Nereu o imenso lago;
Ou, dos serros trazendo o anoso freixo,
755 Anda em terra, e nublada a fronte esconde.
Enéias, que o lobriga, avança prestes.
Firme em seu peso, intrépido ele aguarda
O brioso adversário; de olhos mede
Assaz distância ao tiro: “Agora, exclama,
760 Deus é meu braço e o remessão que vibro.
Do salteador Enéias eu te voto,
Lauso, em troféu, do espólio seu vestido.”
Hasta eis voa estridente; que, do escudo
Repulsa, aos hipocôndrios vai pregar-se
765 Do egrégio Antor, de Alcides companheiro;
Antor Argivo, que aderindo a Evandro,
Na Itália se ficou. Precipitado
É de alheia ferida; e, o céu fitando,
Ah! lembra-lhe ao morrer sua doce Argos.
770 Joga Enéias um dardo, que a rodela
Triple érea penetrou, por líneas fraldas,
Por táureos forros três; e amortecido
À virilha se apega. Ao ver-lhe o sangue,
Puxa o ferro da cinta alegre o Teucro,
775 Férvido ao Tusco titubante corre.
Nisto, em lágrimas Lauso debulhado,
Por amor de seu pai geme profundo.
Teu mesto fim, teu brio e feito heróico,
Se o futuro crer pode empresa tanta,
780 Celebrarei, mancebo memorando.

Fraco e impedido, a se arredar Mezêncio,
Preso arrasta no escudo o hastil infesto.
De chofre o jovem, interposto às armas,
A mão de Enéias, que desfecha o talho,
785 Susta e o reteve: em grita os seus o aclamam,
E entanto o genitor se evade à sombra
Da rodela do filho; empacha a Enéias
Bateria de frechas e arremessos:
Cobre-se ele a bramir. Quando em saraiva
790 Desata a chuva, o lavrador se esgarra,
Em guarida se alberga o viandante,
Em lapa de ribeira ou cava penha,
Até que, abrindo o Sol, o dia exerçam;
Opresso o Teucro assim da márcia nuvem,
795 À espera está que a trovoada amaine;
Comina e avisa a Lauso, a Lauso increpa:
“Temerário, onde vens? mediste as forças?(70)
Engana-te a piedade.” Ele não menos
Demente assalta: o estame curto as Parcas
800 A Lauso colhem: do dardânio chefe
Se irrita a cólera, a possante espada
No moço enterra; a ponta a leve adarga
E a túnica passou, que a mãe fiara
De ouro sutil; em borbotões o sangue
805 Alaga o seio; e a vida pelas auras
Triste aos manes se afunda e o corpo larga.

Pálida a face, moribundo o gesto
Ao ver-lhe o Anquíseo, compassivo e grave
Suspira, dá-lhe a destra; à mente a imagem
810 Sobe do pátrio amor: “Que digno prêmio
Dessa rara virtude o pio Enéias
Te prestará, mesquinho? As armas tenhas,
Teu gosto em vida: eu rendo-te ao jazigo
E às cinzas dos avós, se disto curas.
815 Console-te infeliz do grande Enéias
Às mãos cair.” E exprobra os tardos sócios,
Do chão levanta o corpo, cujas tranças
Atiladas à moda o sangue afeia.

Mezêncio, ao pé do Tibre, entanto os golpes
820 Lava e estanca, e arrimado se conforta
A arbóreo tronco: ao longe está num ramo
O éneo casco, e na relva o arnês pesado.
Egro, anelante, o colo desafoga,
Aos peitos se difunde a larga barba.
825 Cercam-no os seus: do filho indaga aflito,
Manda que o chamem e amiúda as ordens.
Mas sobre o escudo em pranto já traziam
Morto do grande bote o grande Lauso:
O pai nesse carpir seu mal pressente;
830 De pó deforma as cãs, e as palmas ambas
Dirige aos céus, e apega-se ao cadáver:
“Quis tanto à vida, ó filho, que ao trespasso
Expus a quem gerei? Por tua morte
Vive teu pai, salvou-me essa ferida?
835 A minha agora se me agrava e sangra,
Ai! dói-me agora o mísero desterro!
Manchei teu nome, Lauso, eu por tais crimes
E ódios expulso do paterno sólio:
Eu só pagar devera aos meus e à pátria,
840 Por mil mortes render est’alma infame;
Respiro, e inda não deixo a luz e os homens?
Eu deixarei.” Na perna a custo se ergue,
Sem da chaga o abater a dor violenta;
Pede o corcel, da glória companheiro,
845 Consolo seu, que vencedor com ele
Das batalhas saía, e ao pobre fala:
“Rebo, há muito duramos, se é que muito
Dura coisa mortal: hoje a cabeça
Trarás de Enéias e o cruento espólio,
850 E as de Lauso agonias vingaremos;
Ou, se impossível é, morramos juntos:
Não sofrerás altivo, eu creio e espero,
Mandos alheios nem senhor troiano.”

Monta, e aceita-lhe o bruto a usada carga;
855 Onera as duas mãos de agudas hastes;
O elmo reluz, de eqüina hirsuta coma.
Veloz galopa: o luto, a insânia, o pejo
No coração referve; agitam fúrias
O amor paterno, a cônscia valentia.
860 “Enéias! grita, Enéias!” Ledo Enéias
O reconhece e impreca: “O pai supremo
Queira com Febo que o duelo encetes!”
E, de hasta em riste, avança. Então Mezêncio:
“Roubado o filho, aterras-me, assassino?
865 O só meio esse foi de me acabares.
Nem temo os deuses, nem me assustam Parcas:
Morrer venho, recebe a despedida.”
Lesto um dardo lhe prega, outro e mais outro,
Em volta ingente; mas rechaça-os todos
870 A áurea copa do escudo. Pela esquerda,
Contra o parado herói tirando sempre,
Trota em giro três vezes; três no bronze
Roda consigo o Teucro a basta selva.
De extrair tanta farpa enfim se enoja,
875 E da tardança e desigual peleja;
Meditabundo rompe, a lança expede
Às fontes cavas do belaz ginete:
O quadrúpede em gêmeas(71), o ar a coices
Depois zimbra, sacode e implica o dono,
880 E cai de bruços lhe oprimindo a espádua.
Lácio e tróico alarido os céus estruge,
Voa sobre ele o herói, despindo o gládio:
“Que é do feroz Mezêncio? onde os seus brios?”
O Etrusco os olhos alça, haurindo as auras,
885 E, recolhendo o alento: “Ameaças morte?
Por que me insultas, figadal contrário?
Vim perecer, não pecas em matar-me,
Nem meu Lauso ajustou que me poupasses.
Vencido, se jus tenho, eu só te rogo
890 Ao corpo alguma terra: a circundar-me
Freme o rancor dos meus; tu me defendas,
Num sepulcro me encerres com meu filho.”
Ciente, ele o pescoço ao gume inclina,
A alma derrama e em sangue inunda as armas.

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eneida de virgílio:obra completa(9)

LIVRO IX

 

Entretanto que ao longe isto sucede,
A Satúrnia do Olimpo Íris despacha
A Turno audaz: que em vale e sacro bosque
Do avô Pilumno acaso descansava.
5 “Turno, a Taumância diz com rósea boca,
O andar do tempo e o ensejo te oferece
Que um deus a prometer não se atrevera:
Deixada a frota e a praça, foi-se Enéias
À palatina corte; e em Córito inda,
10 Seus confins penetrando, agrestes Lídios
Recruta e apresta. Hesitas? sem demora
Tu carros e frisões demanda, assalta
O confuso arraial.” Nas asas presto
Librada, monta às nuvens, onde o ingente
15 Arco descreve. Ao conhecê-la o jovem,
As palmas exalçando, com tais vozes
A fuginte acompanha: “Íris, das auras
Quem, eterno ornamento, a mim te envia?
Donde esta repentina claridade?
20 Rasgado o céu, diviso errantes astros:
Quem sejas, por teu mando ao prélio corro.”
Nisto, à margem caminha; e, haurindo a linfa
À tona da corrente, aos deuses roga,
De muitos votos carregando os ares.

25 De auri-bordada veste e corcéis rico,
Já na planície o exército marchava.
Messapo à frente, a retaguarda cobrem
Os Tirridas; no centro, as armas Turno
Sustenta em chefe, e a todos sobreleva:
30 Tal surge o Ganges, que silente em rios
Sete engrossa: ou, dos agros refluindo,
No álveo recolhe o Nilo a enchente pingue.

Crescendo escuro na campina, os Teucros
Um turbilhão de pó súbito avistam.
35 De adverso bastião Caíco brada:
“Qual em globo volteia atra caligem?
Arma, arma, sócios, o inimigo avança,
Os muros socorrei.” Trancam-se as portas,
Aturde a grita, apinham-se às trincheiras.
40 Ao partir, ordem foi do sábio Enéias
Que, em sucesso fortuito, não se atrevam
No raso, mas de dentro se defendam:
Bem que à pugna os instigue ira e vergonha,
Encerram-se, e o preceito executando,
45 No valo e torreões o ataque atendem.

Turno, com vinte insignes cavaleiros,
Transpõe tardia tropa, aos muros voa;
Pluma o adorna vermelha em casco de ouro,
Fouveiro trácio alípede cavalga.
50 “Quem enceta e a meu lado investe, ó bravos?
Quem?...” E um dardo arremessa em desafio,
À praça árduo se arroja. Os seus o aplaudem,
Atrás dele com frêmito bramando
Horríssono: da inércia frígia pasmam,
55 De que homens tais combate em plaino evitem
À sombra do arraial. Furioso trota,
Ínvios sítios perlustra e ingresso tenta.
Se alta noite, insidiando o curral cheio,
Uiva na sebe o lobo ao vento e à chuva,
60 Berram cordeiros ao materno bafo;
Com gana à preia ausente, ele braveja;
Secas de sangue as fauces, longa o anseia
A raiva de comer curtida e junta:
Não com menos violência, ante os reparos
65 Arde ao Rútulo a dor nos ossos duros;
Por onde e como desaloje os Teucros,
E no campo os derrame, idéia e pensa.
A frota, que às trincheiras abrigada
Ondas fluviais e marachões torneiam,
70 Invade-a: pega de um flagrante pinho,
Provoca férvido os contentes moços;
Que, do exemplo incitados, arrebatam,
Fachos, tições: enrolam-se nos ares
Cinza e fagulhas, fumo e píceo lume.

75 Que deus, Musas, livrou do incêndio os vasos?
Quem extinguiu, dizei-me, o fogo horrível?
É prisco o fato, mas perene a fama.

No Ida as naus quando Enéias construía
Para entregar-se ao pélago, assim contam
80 Que a Jove orara a Berecíntia madre:
“O que, domado o céu, pedir-te venho,
Dá, filho, à tua genetriz querida.
Há muito amo um pinhal, a mim dicado
Nesse gárgaro cimo, umbroso e opaco
85 De alvares troncos, de alentados bordos:
Leda o cedi para a dardânia frota;
Hoje um temor solícita me rala:
Solve-o; possam contigo as preces minhas,
As naus viagem nem tufão destroce:
90 Valha o terem nascido em nossos montes.”
O que as estrelas gira: “Ó mãe, responde,
Que fado exiges tu para estas quilhas?
Conseguir obra humana imortal vida!
Certo empreender o Teucro incertos riscos!
95 Tal potência a que deus foi permitida?
Antes, o porto ausônio as que a aferrarem,
Salvo a Laurento Enéias transportando,
A mortal forma desfarei; que sejam
Marítimas deidades algum dia,
100 E o ponto espúmeo com seu peito rasguem,
Como a Neréia Doto ou Galatéia.”
Isto ao jurar, do irmão pela água estígia
E torrentes de pez e atra voragem,
Anui; e ao senho treme o Olimpo todo.

105 Raia o dia aprazado pelas Parcas;
De Turno a injúria dos baixéis as tedas
Faz que Cibele aparte. Aos olhos brilha
Nova luz, e da aurora em vasta nuvem
Os coros do Ida pelo céu transcorrem;
110 Aos Rútulos e Troas voz terrível,
Talhando os ares tomba: “Apressurados,
Frígios, não vos armeis por esses lenhos;
Os mares queimará mais fácil Turno
Que os meus sacros pinheiros. Ide soltas,
115 Ide, Ops vos ordena, equóreas deusas.”
Súbito as popas, cada qual das ribas
Cabos rompendo, os beques mergulhados,
Se afundam quais delfins. Do pego, ó pasmo!
Quantas retinha a praia brônzeas proas
120 Surdem, mudadas em virgíneos rostos,
E vão-se ao largo. Os Rútulos se espantam,
Messapo enfia, turbam-se os cavalos;
Rouco o Tibre, assustado, o passo encolhe.

Só Turno, firme e afoito, anima, exprobra:
125 “São contra Enéias, grita, esses portentos;
Roubou-lhe Jove o sólito recurso:
Já nem tiros, nem fogo as naus aguardam.
Fechado o mar, vedou-se a fuga aos Teucros,
Falta-lhes o mais orbe; e a terra é nossa,
130 Mil ítalas nações por nós conspiram.
Nada os fatais oráculos me assombram,
Se de alguns o inimigo ora se jacta.
Basta a Vênus que os seus na pingue Ausônia
Toquem: tenho outro fado, é retalhá-los...
135 Nefandos! que usurpar-me a esposa querem.
Nem só pene aos Atridas uma afronta,
Nem se arme só Micenas. Suficiente
É cair uma vez: ter já pecado
Sobrara a escarmentar os que inda o sexo
140 Não entejam femíneo. Esses que estribam
Em valo e fosso, à morte curto empeço,
Em cinza resolvidas as muralhas
De Ílio não viram, por Netuno obradas?
Quem, varões, a tranqueira a ferro escala,
145 E o trépido arraial comigo expugna?
Não vulcânia armadura, não mil quilhas
Hei mister. Confederem toda a Etrúria;
Não temam do paládio inertes furtos,
Noturnos atalaias degolados,
150 Ou que no eqüino ventre nos metamos:
Sitiando às claras, queimarei seus muros.
Nem o hão com Danaos certo e Aqueus bisonhos,
Que Heitor foi por dez anos entretendo.
Gasto o melhor do dia, o resto, amigos,
155 Refocilai-vos do começo alegres,
E a combater a tento apercebei-vos.”

Manter entanto a cargo tem Messapo
Velas às portas e ao redor fogueiras.
Cabos catorze aos muros põe de guarda,
160 Com cem soldados cada qual, flamantes
De ouro e purpúreos de lustrosas plumas.
Patrulham, rendem-se, e na relva bebem
De êneos pichéis vasando. Os fogos luzem,
E a folgar se despende a noite insone.
165 Do valo os Troas vigiando, em armas
Têm-se ao merlões; a medo as portas rondam,
Pontes comunicando e baluartes.
A Seresto e Mnesteu, que ardidos instam,
Foi que Enéias fiou, se urgisse o caso,
170 Ter cobro em tudo e moderar os moços.
Cada esquadrão por sorte expõe-se aos muros,
E se reveza em postos arriscados.

Era de um sentinela o Hirtácio Niso,
Valente, ágil, perito em dardo e seta,
175 Que Ida fragueira a Enéias deu por sócio.
Com ele estava Euríalo: um mais lindo
Não houve que vestisse arnês troiano;
Sombreava-lhe o buço intensas faces.
Ternura os une; à lide a par correndo,
180 Então a mesma porta ambos velavam.
“Euríalo, diz Niso, um deus mo inspira,
Ou quem quer chama deus o ardor que o punge?
A empreender um combate, um feito insigne,
Me excita a mente; inquieta-me o repouso.
185 Nota a fidúcia: os lumes quase mortos,
Com sono e vinho os Rútulos prostrados,
Reina à larga o silêncio. Ouve o que n’alma
Fermento e cuido: anelam por Enéias
Senado e povo, e quem lhes traga novas
190 Cogitam; se o meu prêmio te asseguram
(Fique-me a fama), ao pé daquele outeiro
Achar posso o caminho a Palantéia.”

Da glória estimulado, absorto o jovem
Impugna o acre amigo: “E tu me enjeitasl
195 Abandonar-te eu, Niso, em dúbio lance!
Nem tal meu pai, o marcial Ofeltes,
Criou-me em terror graio e tróicas lidas,
Nem tal me houve contigo, dês que abraço
Do exímio cabo a sorte. A luz desprezo,
200 E da que esperas honra em troco a vendo.”
Niso então: “Assim Jove, ou deus propício,
A ti me torne ovante, que o teu brio
Não me é suspeito, nem podia sê-lo.
Mas, se algum (riscos tantos considera),
205 Se algum nume ou revés me descaminha,
Deves sobreviver-me; és tão menino!
Haja, para enterrar-me, quem da pugna
Me subtraia ou resgate; e, se a desdita
Mo tolhe, quem sufrague o ausente corpo
210 E me adorne um sepulcro. Nem dor tanta
Eu cause a tua mãe, que só das muitas
Seguir-te ousou, de Acesta não curando.”
E ele: “Fúteis razões por demais teces;
Não mudo parecer: eia, partamos.”
215 Desperta os guardas, que no posto os rendem,
E com seu Niso ao príncipe caminha.

O Sono pelo globo derramava
O esquecimento e alívio dos trabalhos:
Sós em conselho os generais dardânios,
220 Arrimados ao pique e à sestra o escudo,
Em pleno campo a discutir, pesquisam
Quem a Enéias ou como expediriam.
Niso e Euríalo à pressa, alvoroçados,
Audiência pedem; que o negócio é grave,
225 Nem sofre dilação. Iulo acolhe-os,
E com licença o Hirtácides começa:
“Atendei-nos, Enêiadas benignos;
Por nossa idade não julgueis do intento.
Modorra e vinho os Rútulos sepulta;
230 Sítio azado(52) observámos, onde a estrada
Junto à porta do mar se abre em dois ramos;
Raros os fogos, negro fumo deitam:
Se permitis que o lance aproveitemos,
Enéias cedo cá tereis de volta,
235 Feita grande matança e rica presa.
Não há temor de errar: de escuros vales
Em contínuas caçadas Palantéia
Descobrimos, e o rio conhecemos”.

Aqui logo o maduro e anoso Aletes:
240 “Pátrios deuses, de Tróia arrimo eterno,
Não quereis extirpar-nos, pois criastes
Em peitos juvenis valor tamanho.
Qual... (nisto, ambos abraça, as destras cerra.
E lhes inunda em lágrimas os rostos)
245 Qual, varões, vos será condigno prêmio
À(53) tanta audácia? O mais gentil vos paguem
Vossa virtude e o céu; depois, Enéias;
E na idade completa nunca Iulo
Deslembre este serviço.” — “Antes eu, Niso,
250 Que em meu pai só me salvo, ajunta Iulo,
Obtesto o lar de Assáraco e os penates,
E o juro aos penetrais da branca Vesta,
Minha fé, minha dita, em vós deponho:
Meu pai restituí-me; ao seu conspecto
255 Nada infausto haverá. Dois belos copos
De prata e com relevos, que de Arisba
Cativa ele tomou, dois grandes áureos
Talentos ganharás, mais duas trípodes,
E a que Elisa me deu cratera antiga.
260 E se, a Itália domada, o cetro alcanço
E os despojos partir; viste o cavalo,
Viste o arnês em que Turno campeava?
O broquel nítido, o cocar vermelho?
Serão teus, Niso, do sorteio exemptos.
265 Doze meu pai te brindará formosas
Mães e crias, escravos doze armados,
E as mesmas lavras que possui Latino.
A ti porém, que em anos me semelhas,
N’alma te abraço e adoto por consórcio,
270 Venerando menino: em qualquer ponto
Sem ti não terei glória; em paz e em guerra
Ser-me-ás fiel agente e conselheiro.”

Euríalo acudiu: “Nunca estes ausos,
Rode a fortuna próspera ou contrária,
275 Desmentirei; mas dom maior te imploro:
Minha mãe, do priâmeo prisco sangue,
De Ílio comigo se apartou mesquinha,
Por mim de Acestes enjeitou o asilo;
Não saudada, ignorando esta aventura,
280 Vou deixá-la; eu não posso com seu pranto,
Por tua destra e pela noite o afirmo:
Rogo-te que a socorras e a consoles
Na penúria e viuvez; se esta esperança
Tenho de ti, com mais denodo parto.”
285 Abalados os Teucros lagrimavam,
Mormente Ascânio; a imagem da paterna
Piedade o comovia, e assim perora:
“Tudo prometo, que mereces tudo.
Mãe ser-me-á, de Creusa exceto o nome:
290 A quem tal parto produziu compete,
Seja o evento qual for, mercê não leve.
Por vida minha, pela qual jurava
Meu pai, a tua mãe e aos teus respondo
Por quanto aqui reservo e te asseguro
295 Para o feliz regresso.” Então, choroso,
Do ombro a lâmina despe, obra mui prima
Do Gnósio Licaon, de punhos de ouro,
Embainhada em marfim. Mnesteu, leonino
Hirto espólio veloso a Niso doa;
300 Troca o morrião com este o fido Aletes.
Marcham prestes; e às portas, entre votos,
De jovens e anciãos o que há de ilustre
Os conduz: manda ao padre o nobre Ascânio.
Já com viril prudência, avisos cautos;
305 Que o vento espalha e em auras se esvaecem.

Transpondo os fossos, pela treva em busca
Do inimigo arraial, vão ser primeiro
De exício a muitos. Vêem na grama esparsos
Ebri-dormentes corpos; empinados
310 Na praia os carros; vinhos e homens e armas,
Entre as rodas e os loros, de mistura.
“Amigo, adverte Niso, ânimo! é tempo.
O caminho eis aqui: tu longe atenta,
Não nos dêem por detrás, vigia em torno,
315 Que eu te abro devastando e alargo a trilha.”

Preme a voz, e de espada agride(54) o altivo
Ramnetes, que em felpudas alcatifas,
Solto a roncar, evaporava o sono:
Rei e augur diletíssimo ao rei Turno,
320 Da mortal peste o agouro não o esquiva,
Três dos seus, que entre as armas jazem néscios,
Fere, e o pajem de Remo e o seu cocheiro
Sob os corcéis deitado: ao talho os colos
Pendem. Corta a cabeça ao próprio Remo,
325 E em sangue fica a soluçar o tronco,
Do cruor quente a cama e o chão molhado.
Mata a Lamo e Lamiro, e o flóreo e belo
Serrano; que, passada a noite ao jogo,
Ao deus se rende os membros estirando:
330 Oh! feliz, a jogar se amanhecera!
Tal, da fome esganado, o leão de salto
No redil mansa grei, de susto muda,
Roja, a boca ensangüenta e voraz brama.

Não menor clade Euríalo abrasado
335 No ignóbil vulgo exerce, e inadvertidos
Salteia Abaris, Fado, Hebeso e Reto;
Reto que alerta espia, e atrás se agacha
De ampla cratera pávido; no erguer-se
Toda a espada enterrou-se-lhe, e dos peitos
340 Se lhe extrai mais a vida; em ânsias a alma,
Sangue e vinho a golfar, purpúrea exala.
Férvido o Teucro no furtivo estrago,
Já vai-se aos do Messapo, onde a fogueira
Via apagar-se, e em peias os cavalos
345 Pascer em ordem; quando Niso em breve
(Sentiu nímia a do ferro crua sede):
“Basta, lhe diz, radeia o infenso dia.
Foi sobejo o castigo; a estrada é feita.”
Armas de argênteo engaste e argênteas copas
350 E tapetes lindíssimos perpassam.
Euríalo o jaez toma a Ramnetes
E o cinto auri-tauxiado; que opulento,
Por contrair n’ausência o jus de hospício,
Mandou Cédico a Rêmulo Tibúrcio;
355 Este ao neto os legando, e o neto em guerra
Morto, o Rútulo os houve. Embalde o jovem
Ao forte ombro os ajeita, e de Messapo
O casco enlaça de gentil cimeira.

Ao irem do arraial se pondo em salvo,
360 Trezentos cavaleiros adargados
Sob Volscente, no campo atrás deixando
Um corpo instruto, com respostas vinham
De Laurento ao rei Turno. E já propínquos
Ao muro, aos dois lobrigam pelo atalho
365 Dobrando à esquerda; sob a noite escassa,
O dilúculo no elmo refletindo
Trai o impróvido Euríalo. Volscente:
“Alto! varões, clamou; bem vemos, alto!
Donde, aonde, a que fim marchais em armas?”
370 Sem boquejar, nas trevas mal fiados,
Para a espessura fogem, mas, cercando-os
Aqui e ali por cógnitas veredas,
Trancam-lhes todo o passo os cavaleiros.
Basto escuro azinhal houve enredado
375 Com silveiras e espinhos; lá guiavam
Trilhos ocultos e azinhaga estreita:
Empece a Euríalo intrincada a sombra,
Grave a presa, e o temor de extraviar-se.
Niso escapole, e vai sem tento ao sítio
380 Que ao depois, de Alba, foi chamado Albano;
Lá seus gados Latino encurralava.
Pára, e em redor o amigo em vão procura:
“Euríalo infeliz! onde encontrar-te?
Onde te abandonei?” Remexe a cata
385 Falaz perplexa mata, retrocede,
Vagueia em mudas brenhas. Dos cavalos
Ouve o rincho e o tropel, ouve as trombetas,
Nem tarda a ouvir clamor e a ver o sócio,
Que em túrbido tumulto às mãos colhido,
390 Pelo transvio e pela noite opresso,
Contra o esquadrão inteiro o esforço balda.
Como, com que arma ousar, com que denodo
Libertá-lo? hostis golpes arrostando
Irá ganhar, perdendo-a, eterna vida?
395 Ei-lo, o braço contrai, sopesa uma hástia,
E olhando a celsa Lua assim lhe implora:
“Dos astros honra, tutelar dos bosques,
Neste aperto, Latônia, tu me ajuda.
Por mim se Hirtaco padre encheu-te as aras,
400 Se eu do fecho e artesões do sacro teto
Da caça os dons te pendurei, concede
Turbar aquela mó, rege esta lança.”
Disse; o corpo esforçando, a farpa atira:
Zimbra alígero hastil noturnas sombras,
405 No dorso de Sulmon se espeta e quebra,
No pericárdio as lascas se lhe encarnam;
Ele frígido rola, arca em soluços,
Do fundo a borbotar cálido rio.
Olham de espanto em roda; Niso ativo
410 Libra de sobre a orelha outro arremesso,
Que a Tago as fontes a silvar traspassa,
E adere quente ao cérebro encravado.
Em brasa e atroz, sem ver o autor dos tiros,
Nem por onde acometa, urra Volscente:
415 “Por ambos vai pagar teu morno sangue.”
Despida a espada, a Euríalo se envia;
Niso atônito grita, nem se encobre
Na treva mais, que a dor o não consente:
“A mim o ferro, a mim que tenho a culpa,
420 Rútulos, convertei: nada ousou este,
Nem pôde, aos céus o juro e aos cônscios astros;
Sim quis muito a um amigo desgraçado.”
A tais razões, o estoque iroso as costas
Vara e ao coitado o branco seio rasga;
425 Tomba Euríalo, em sangue os pulcros membros,
No ombro a cerviz debruça moribundo:
Ao talho assim do arado, falecendo
Murcha a rosa; ou, das chuvas agravada,
O colo inclina a lânguida papoila.
430 Niso arremete, ao só Volscente busca,
Só quer-se com Volscente; em massa o atacam:
Desenvolto rodeia, e pela boca
No Rútulo bramante esconde o gume
Fulmíneo; a vida arranca-lhe morrendo.
435 Aberto em chagas, sobre o amigo exânime
Se deita, e expira em plácido sossego.

Par ditoso! terás, se em verso eu valho,
Perpétua fama, enquanto o pai de Roma
O orbe domine, e a geração de Enéias
440 Do Capitólio habite a rocha imóvel.

A presa, o espólio, o morto os vencedores
Levam chorando. É mor no campo o luto,
Num morticínio achados com Ramnetes
Numa exangue, Serrano e tantos cabos:
445 Os semivivos corpos e os finados
Contempla a turba, e o chão que da carnagem
Fuma, e em regatos o espumante sangue.
Nos despojos conhecem de Messapo
O elmo, os jaezes com suor cobrados.

450 Já largando a titônia crócea cama,
Radiava no mundo a prima Aurora:
Turno, difusa em tudo a luz febéia,
Arma-se e arma os varões, e as bronzeadas
Esquadras cada chefe estimulando,
455 Com rumor vário lhes aguça as iras;
E sobre hastas erectas, insultando-os
Com algazarra, aspecto lastimoso!
Pregam de Niso e Euríalo as cabeças.

À esquerda os Teucros firmes se postaram,
460 Que a(55) destra os cinge o rio; estão mantendo
Fossos e torreões, com mágoa as frontes,
Bem conhecidas, contemplando fixas
A estilar negra sânie. A Fama adeja
Pelos pávidos muros empenada,
465 E de Euríalo à mãe toa aos ouvidos:
Enfia e gela a triste; a lançadeira
Das mãos lhe cai, e o fio que tramava:
Demente voa, carpe-se ululando;
Entre armas e esquadrões, sobe às ameias,
470 Sem lhe importar perigo, e os ares parte
Com femíneo queixume: “És tu, meu filho?
Báculo dos meus anos, tu pudeste,
Cruel, negar-me o arrimo? nem, a tantos
Riscos mandado, à genetriz mesquinha
475 Deste um adeus sequer? Ai! filho, jazes
Preia de aves e cães em terra estranha!
Eu mãe, nem te cerrei funérea os olhos,
Nem as chagas lavei, te expondo envolto
Na teia que lavrava dia e noite,
480 Consolando os pesares da velhice!
Onde os láceros órgãos, rotos membros,
Onde achar? Isto só de ti me resta,
Peregrinei para isto e afrontei mares?
Se há piedade em vós, morra eu primeira,
485 Com vossos dardos, Rútulos, varai-me;
Ou, pai supremo, um raio teu me abisme,
Por compaixão, no Tártaro maldito,
Já que a dor não me atalha a infausta vida.”
Tudo geme, e o lamento conturbados
490 Os corações consterna e os entorpece:
Pois que o luto acendia, ao mando e aviso
De Ilioneu e de Ascânio lagrimoso,
Ideu e Actor em braços a recolhem.

Medonho éreo clangor reboa ao longe,
495 A grita se une à tuba, e o céu remuge.
Conchada a manta, os Volscos se aforçuram
A entulhar fossos, a arrombar tranqueiras;
Tais insistem na brecha ou na escalada,
Por onde a guarnição raleia e em pinha
500 Menos densa entreluz. Com duros fustes,
Com omnígeno tiro os defensores,
A longo assédio afeitos, os repelem;
Pesadas galgam pedras, por que rompam
A espessa manta, a cujo abrigo o choque
505 Os de fora sustêm: mas já não podem;
Que, onde o grosso adensava-se, o inimigo
Volve impetuosa mole, que os esmaga
E a testudem separa: em cego marte
Não pugnam mais; intrépidos a dardos
510 Lançar porfiam da estacada os Frígios.
D’além, torvo e feroz, Mezêncio o etrusco
Pinho e brandões fumíferos sacode;
De frisões domador, neptúnia prole,
Valos destrói Messapo e escadas pede.

515 Agora tu, Calíope, me ensina;
Lembrai, narrai-me, ó deusas da memória,
Que ruína e pranto fez de Turno o ferro,
Por quem foi cada qual metido no Orco;
Desdobrai-me as da guerra ingentes orlas.

520 Torre altaneira havia e de árduas pontes
Em lugar próprio: os Ítalos as forças
Por derrocá-la envidam; propugnando-a,
Soltam calhaus(56) os Troas, das seteiras
Despedem frechas mil. Turno o primeiro
525 Joga ardente lanterna, e afixa ao lado
Flama, que ateia ao vento e em solhos prende,
Rói e agarra aos portais. Confuso e trépido
O tropel dentro em vão se refugia:
Recuam e amontoam-se onde a peste
530 Não grassa; a torre, desabando ao peso,
Rebenta, e do fragor todo o céu troa.
De seu ferro passados, semimortos,
O amplo destroço os cobre, ou vem de peitos
Sobre o rijo madeiro. Escapa Lico,
535 E o florente Helenor, a quem Licímnia
Serva ao meônio rei gerou bastardo,
E o mandou, contra o jus, armado a Tróia;
Leve, em branco a rodela, inglório esgrime.
De Turno acha-se o moço entre as fileiras,
540 Aqui e ali de batalhões cercado;
Perecedouro envia-se aos Latinos,
Onde as lanças mais chovem: qual, de bastos
Monteiros acuada, em sanha a fera,
Não ignara afrontando a morte certa,
545 De um só pulo aos venábulos se arroja.
E Lico, mais ligeiro, entre hostes e armas
Deita a fugir; a ameia quer pendente
Apreender, segurar-se às mãos dos sócios:
Turno à carreira dardejando o acossa,
550 Vitorioso o invectiva: “O alcance nosso,
Louco! evadir contavas?” Pelas pernas
O aferra, e traz com grã porção do muro:
No surto assim a armígera de Jove
Preia nas unhas lebre ou alvo cisne;
555 Assim rouba do aprisco o márcio lobo
Anho à mãe, que o reclama em seu balido.

A vozeria ecoa: invadem, fossos
Entupem de faxina; aos altos parte
Achas vibra. Do monte c’um fragmento,
560 Pedra enorme, Ilioneu prostra a Lucécio,
Que à porta achega fogo: a Emátio Ligro,
A Corineu Asilas, bom na seta
Falaz de longe aquele, este no dardo.
Ceneu derriba a Ortígio, a Ceneu Turno;
565 Turno a Clônio, Itis, Sagaris, Dioxipo,
Prômulo, Idas, na estância dos cubelos.
Cápis mata a Priverno, a quem Temilas
D’hasta roçara: ao descobrir-se incauto
Apalpando a ferida, ao lado esquerdo
570 Rápida a letal seta a mão lhe prega,
Dentro os d’alma espiráculos rompendo.
Formoso, em pulcro arnês, de Arcente o filho
Broslada a farda em cerco e de ferrenha
Tinta ibera, o expediu seu pai, que em bosque
575 Márcio o criara, onde às simétias margens
Ara pingue e placável tem Palico:
Deposta a lança, vezes três Mezêncio
Volteia a funda, zunidora a impele;
E, com líquido chumbo a do contrário
580 Testa rachando, n’ampla arena o estende.

Consta que Iulo, usado à montaria,
A guerra então provou, com ágil frecha
Rendendo o acre Numano, apelidado
Rêmulo, que à menor irmã de Turno
585 De fresco se enlaçara; e ante as falanges,
Vociferando infâmias com doestos,
Dessa aliança túmido e orgulhoso,
Anda, e arrogante em gritos bizarreia:
“Não vos peja outro assédio e à morte, ó Frígios
590 Bi-cativos, trincheira e valo opordes?
Eis os campeões que as bodas nos disputam!
Que deus, que insânia vos lançou na Itália?
Atridas cá, nem fraudulento Ulisses;
Rija estirpe encontrais. No rio e ao forte
595 Gelo os recém-nascidos roboramos:
Caçam ledos, a mata infantes batem,
Do arco asseteiam córneo, amansam poldros:
Moços, trabalho aturam, comem pouco,
Domam de ancinho a terra, expugnam praças.
600 Gasta a idade em batalhas, de hasta inversa
Picamos nossos bois; nem torpe as forças
A velhice nos míngua e o vigor d’alma;
O elmo nos preme as cãs; recentes presas
Nos praz sempre acarrear, viver de roubos.
605 Trajais múrice ardente, em cróceas galas
Amoleceis; agradam-vos coréias,
Laços nas coifas, túnicas de mangas.
Frígias, não Frígios, pelo Dindimo ide;
À tíbia afeitas bíssona, esses gládios
610 A homens largai: da Berecíntia o buxo
Ideu vos chama, e adufes e timbales.”

Pragas, jactâncias, não lhas sofre Ascânio:
De frente ajusta a seta ao nervo eqüino;
Encurva as pontas, e detido a Jove
615 Implora humilde: “Onipotente padre,
Anui à nova audácia; eu dons solenes
Te ofertarei no templo, e ante os altares
Branco novilho de dourada fronte,
Que à mãe se iguala e entona-se, remete
620 Já de corno e de pés a areia esparge.”
Do céu sereno, à esquerda, o rei troveja:
O arco estala mortífero, e despede
Horríssono farpão, que as fontes cavas
De Rêmulo atravessa. “Vai, moteja
625 Do dardânio valor. Dos bi-cativos
Esta a resposta às rútulas bazófias.”
Não mais Ascânio; o teucro aplauso estronda,
Fremem de gosto, exaltam-no às estrelas.

De cima a deus crinito, em lata nuvem
630 Sentado, olhava o exército e a cidade,
E ao vencedor menino: “Em brios, disse,
Medra, Iulo; assim, garfo e tronco divo,
Se monta aos astros: no porvir, das guerras
O jus terá de Assáraco a prosápia;
635 Tu não cabes em Tróia.” A tais palavras
Do éter se atira, e as virações talhando,
A Ascânio busca; transformou-se em Butes,
De Anquises pajem, seu leal e antigo
Porteiro mor, acrescentado em aio
640 Do filho por Enéias. Ia Apolo
Semelhando-o na voz, tez, cãs, e em armas
Sevi-sonoras; e ao fogoso aluno:
“Baste, Enêiada; impune ao grã Numano
Frechaste; belo ensaio! a Febo o deves,
645 Que não te inveja em feitos o emparelhes:
Mas poupa-te, menino”. Aqui, despindo
Mortal aspecto e no ar se esvaecendo,
Na fuga o deus aos próceres mostrou-se,
Que sentem chocalhar na aljava as setas.
650 Por mando pois de Febo o ávido moço
Coíbem do conflito, e a ele tornam,
Metendo a vida em manifestos riscos.
Muros, baluartes o alarido afunde.
O arco atesam robusto, amentos libram,
655 Juncam dardos o solo; escudos e elmos
Rugem do atrito; endura-se a peleja:
Tal de ocíduo aguaceiro o chão verberam
Os cabritos nimbosos; tal graniza
No mar, quando o Tonante horrendo esguelha
660 Austral procela e despedaça as nuvens.

Pândaro e Bícias, de Alcanor progênie,
Que, a abetos do seu monte iguais, criou-os
No ideu bosque de Jove a agreste Hiera,
A porta abrem que Enéias cometeu-lhes,
665 E afoitos o inimigo desafiam.
Dentro, em face das torres, de aço e malha,
De altas plumas, à destra e à sestra luzem:
Qual, nas margens do Pado ou nas que ameno
O Atesis rega, gêminos carvalhos,
670 Intonsos desferindo aéreos topes,
Verde a coma balançam. Livre a entrada,
Os Rútulos investem. Já Quercente,
Tmaro assomado, Equícolo galhardo
E o márcio Hemom as tropas retraíam,
675 Ou junto ao limiar as vidas punham.
Ceva-se e cresce a raiva, e em globo os Teucros
De fora ousam travar renhida pugna.

Turno, que alhures bravo estrói e arrasa,
Soube que, franco o acesso, os Teucros fervem
680 Do fresco estrago; e, indômito bramindo,
O ataque larga, e à porta rui Dardânia
Contra os feros irmãos: topando abate
A Antífates audaz, que uma Tebana
Ao grã Sarpédon engendrou furtiva:
685 O ítalo córneo dardo os ares frecha,
Rasga-lhe o estômago e o profundo peito;
Verte a negra ferida espúmeas ondas,
E no pulmão varado o ferro aquece.
A Méropo e Erimanto e Afídno prostra;
690 Prostra a Bícias, fremente e de ígneos olhos,
Não com dardo, que o dardo inútil fora,
Mas fulgúrea falárica rechina,
Bote a que dois não bastam couros táureos,
Fiel dupla loriga de ouro e escamas;
695 O chão da queda geme, e o corpo enorme
Sobre o imenso pavês se estira e toa:
Qual, em Baias eubóica despenhado
Sáxeo pilar, com mole ingente erguido,
Cai no golfo arruinando e em vaus se acrava;
700 Túrbido o mar, remexe areia e lodo,
Treme a alta Prochita, Inarime ecoa,
Covil duro a Tifeu por Jove imposto.

Fuga e atro medo aos Teucros infundido,
Marte aos Latinos o acre ardor aviva;
705 Que, dado o ensejo, intrépidos concorrem,
E o deus armipotente embebem n’alma.
Ao ver o irmão por terra, o angusto caso
E má fortuna, Pândaro a couceira
Torce, à porta arrimando os ombros largos;
710 Mas, fora em transe amaro os seus deixados,
Recolhe uma torrente de inimigos:
Néscio! em Turno impetuoso não repara,
Que entre a chusma na praça está metido,
Como entre gado imbele imano tigre.
715 De olhos corisca, horrendo as armas soam;
No cimo a tremular sangüíneas cristas,
Áscuas fuzila o escudo. A catadura
Conhecem logo do membrudo chefe
Turvados Teucros, e o gigante pula,
720 Férvido e iroso da fraterna morte:
“Esta a régia dotal não é de Amata,
Nem de Ardea o pátrio muro a Turno encerra;
Vês hostis arraiais sair não podes.”
Turno sorri tranqüilo: “Anda, se és homem,
725 Vem combater; e a Príamo refiras
Que outro Aquiles achaste.” Aqui sacode
Com suma força Pândaro escabrosa
Lança de ásperos nós; que, no ar frustrada,
Por Satúrnia, retorce e o portal ferra.
730 “Pois da arma que manejo não te eximes;
É diferente o golpe e a mão que o vibra.”
Ei-lo, se alça nos pés, roda o montante;
E, as têmporas partindo e impubes queixos,
A cutilada a fronte escacha em duas.
735 Do abalo a terra estronda: ali, morrendo,
Os frouxos membros roja e dos miolos
O arnês cruento; por igual fendida,
De um ombro e do outro pende-lhe a cabeça.

De assustados o dorso os Teucros viram;
740 E, romper a estacada se ocorresse
Ao vencedor e introduzir os sócios,
Nesse dia findara a guerra e Tróia;
Mas crua ardente sede o arrasta e cega.
A Sagaris jarreta e a Giges logo,
745 Hastas que saca aos fugitivos darda,
E Juno a persegui-los o acorçoa.
A Halis e pela adarga a Fegeu crava;
Tronca a Noemom, Pritanis, Hálio, Alcandro,
Que ínscios no muro o assalto rechaçavam.
750 Estribado à trincheira, destro o gládio
Brande a Linceu, que investe e auxílio clama;
A cabeça de um talho cerceada
Longe com o elmo jaz. Terror das feras
De um revés tomba Amico, sem segundo
755 No ervar a frecha e empeçonhar o ferro;
Mais o Eólides Clício, e Creteu vate,
Caro às musas; Creteu, cujo gosto era
Tender acorde os nervos do alaúde,
Armas cantar, varões, corcéis, batalhas.

760 À nova do destroço, ardido acode
Com Seresto Mnesteu, que dentro encontram
O inimigo, e os consócios derrotados:
“Onde, brada Mnesteu, fugis, Troianos?
Que outros muros tereis, que outra guarida?
765 Um só homem, fechado em vossa estância,
Faz impune tamanhos morticínios?
Tantos guerreiros precipita no Orco?
Sem pejo do rei nosso e nossos deuses,
Não vos instiga e move a pátria mesta?”

770 Isto os alenta e inflama, em mó carregam;(57)
E Turno, em retirada, a parte busca
Pelas águas cingida: a grandes brados
Com mais vigor o acossa o tropel todo.
Se a leão truculento de azagaias
775 Vexa a turba, aterrado e acerbo olhando
Recua; nem dar costas lhe consente
Ira ou valor, nem ousa, embora o anele,
Acometer zargunchos e monteiros:
Não de outra forma Turno, dúbio e lento,
780 Retrocede, estuoso e furibundo;
Invadiu mesmo as hostes vezes duas,
Duas as pôs em fuga e debandada.
Mas já num corpo o exército se apressa:
Nem a própria Satúrnia a mais se atreve;
785 Que o soberano irmão lhe mandou Íris
Com ordens pouco brandas, se insistindo
Seu valido as muralhas não despeja.
De um chuveiro de lanças molestado,
Nem braço nem broquel já basta ao jovem:
790 O elmo em torno estrepita e crebro tine;
O éreo sólido arnês abolam pedras;
Desmanchado o cocar, desfeita a malha,
Dobram-lhe os tiros, golpes lhe amiúda
O fulmíneo Mnesteu. Revê dos poros
795 Largo suor e píceo arroio mana;
Egro respira, o fôlego açodado
Lhe agita os lassos membros. Todo em armas
No flavo Tibre se atirou de um salto;
Mansa a veia o recebe, ufano o leva,
800 E da matança puro aos seus o entrega.

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eneida de virgílio:obra completa(8)

 

LIVRO VIII

 

Mal Turno, os cornos rouco estrepitando,
Pendões arvora no laurente alcáçar,
E os brutos afogueia e incita as armas(46),
Revolto o Lácio em trépido tumulto
5 Se conjura, e esbraveja a mocidade.
Chefes Messapo e Ufente, o ateu Mezêncio,
Organizando levas, despovoam
Toda a campanha. A requerer o auxílio
Do grã Diomedes, Vênulo deputam;
10 A informar que, abordado há pouco Enéias,
Os vencidos penates recolhendo,
Rei se inculcava por querer dos fados;
Que atrai cem povos, e n’Ausônia lavra
Seu prestígio. Ao que tenda, e o que resulte
15 Se a fortuna o insufla, é manifesto
Mais a Diomedes que a Latino ou Turno.

Derramada a notícia, o Laomedôncio
Em cuidados flutua, e a mente vaga
Divide e agita, a meditar em tudo:
20 Como em bacia d’água o tremulante
Raio da Lua ou Sol, repercutido,
A regirar volúvel, monta aos ares
Do sumo teto os artesões ferindo.

Noite era; e gados, aves e alimárias,
25 Quando lassos na terra adormeciam,
Dos perigos aflito, à riba Enéias,
Tardo repouso aos membros concedendo,
Sob o eixo do céu frio recostou-se.
Deus do sítio, a surgir do leito ameno,
30 Entre alemos se antolha o Tiberino:
Ao velho tênue bisso um verdoengo
Sendal compõe, e a touca umbrosa cana.
Ao Teucro fala e o peito lhe mitiga:
“Divo renovo, que dos Gregos salva
35 Pérgamo eterna à Hespéria nos transportas,
Nestas laurentes veigas esperado,
Casa tens certa, certos os penates;
Avante! não te assuste a feia guerra:
O tumente furor cessou dos deuses.
40 Por que isto um sonho fútil não reputes,
Em litóreo azinhal grande alva porca
Deitada encontrarás parida, e em roda
Nela a mamar trinta alvos bacorinhos.
Descanso aqui tereis; trinta anos voltos,
45 Aqui fundando-a Iulo, deste agouro
Alba derivará seu claro nome.
Não dúbio o vaticino. O modo em suma
Te ensinarei de conseguir vitória.
Lá d’Arcádia emigrados que de Evandro
50 Sob a real bandeira aqui vieram,
Do bisavô Palante por memória,
Em montes assentaram Palantéia:
Com eles anda o Lácio em guerra assídua;
O arraial em comum, liga-te a eles.
55 Eu, por meu rio e margens te ajudando,
Farei que a remos a corrente venças.
Sus! roga a Juno; assim que os astros caiam,
Devoto e súplice, ó de Vênus filho,
O ódio minaz lhe adoça: ao triunfares
60 Me honres depois. Sou eu que em ampla cheia
Premo estas bordas, sulco e adubo as vargens,
Aos céus gratíssimo, o cerúleo Tibre.
Meu paço é cá, de altas cidades mano.”

Disse, e imergiu-se: a noite a Enéias deixa.
65 Desperto olhando ao lúcido oriente,
Nas covas palmas, como é uso, apanha
Do licor fluvial, dest’arte orando:
“Ninfas, laurentes ninfas, geradoras
Dos mananciais, com santa veia ó Tibre,
70 Recebei vós a Enéias, resguardai-me.
Qualquer que seja a fonte, ou lago ou solo,
Donde formoso nasças e onde as nossas
Penas, rio cornígero, apiadas,
Sempre terás meu culto, of’rendas sempre,
75 Tu das águas hespéricas monarca.
Assim me valhas e os augúrios firmes.”

Da frota escolhe então birremes duas,
E de armas e remeiros as fornece.
Súbito, ó maravilha! entre arvoredos,
80 Deitada em verde ribanceira, avistam
Com sua alva ninhada uma alva porca;
E a ti, máxima Juno, o pio Enéias
Com todo o parto a imola e te oferece.
Durante a noite amaina o inchado Tibre,
85 E em tácito remanso refluindo,
Qual tanque fica-se ou lagoa estofa,
Que não obste ao remar. Crenado o pinho,
Com propício rumor, no equóreo plaino
Ligeiro se desliza; e a onda e o bosque
90 Arneses a fulgir de longe estranha,
Estranha os bucos a nadar pintados.
Afadigando à voga a noite e o dia,
E os estirões e as voltas alcançando,
Sob a folhuda abóbada, cortavam
95 No aquoso espelho as verdejantes ramas.

Ígneo o Sol meridiano, é quando enxergam
Uns muros, um castelo e tetos raros,
De Evandro haver mesquinho; que a pujança
Romana elevou tanto e aos céus o iguala:
100 Viram proas e ao burgo se aproximam.

Acaso o árcade rei, num luco em face,
O Anfitriônio festejava e os divos.
Solene, o seu Palante, a flor dos jovens,
Pobre senado, o incenso ministravam,
105 Em cruor tépido a fumar as aras.
Surdir vendo os baixéis pela espessura,
E o nauta aos mudos remos debruçar-se,
Das mesas todos erguem-se assustados.
Veda romper-se o rito o audaz Palante;
110 Saca uma lança e voa, e de afastado
Outeiro: “O que tentar vos força, ó moços,
Ignotas vias? de que partes vindes?
Quem sois? onde ides? paz quereis ou guerra?”
Maneando Enéias da alterosa popa
115 Fausta oliva, responde: “Frígios dardos
Te apresento e inimigos dos Latinos,
Que em bárbara agressão nos repulsaram.
Saiba teu rei que os principais Troianos
Lhe vêm pedir junção e apoio de armas.”
120 Logo a tal nome atônito Palante:
“Salta, e a meu pai dirige-te em pessoa;
Quem sejas, te agasalha em nossos lares.”
E a mão lhe aperta, cordial o abraça.

Transposto o rio, ao bosque se encaminham;
125 E amigável o padre: “Ótimo Evandro,
Timbre dos Graios, a fortuna enseja
Que, enastrado este ramo, eu te suplique;
Certo não te hei receio por Arcádio,
Chefe aqueu, dos Atridas consangüíneo:
130 Meu gosto e leal peito, oragos santos,
Parentesco de avós, tua alta fama,
Por fatídico impulso, a ti me enlaçam.
Dárdano, de Ílio autor, de Electra nado,
Para os Troas passou-se, a Grécia o afirma;
135 Do estelífero Atlante Electra é prole:
Vós de Mercúrio o sois, e em frio cume
Cilênio o concebeu cândida Maia;
Maia, é crença geral, o mesmo Atlante,
O que os orbes sustenta, procriou-a.
140 De um tronco somos pois. Eis por que afoito
Núncios não ensaiei que te sondassem:
Eu próprio, eu vim expor-me e suplicar-te.
A Dáunia, que te aprema em feroz guerra,
Cuida, a nos rechaçar, que nada a estorva
145 De meter sob o jugo a Hespéria inteira,
E o superior e o baixo mar que a lavam.
Presta e aceita-me a fé. Briosa temos
Aguerrida e valente mocidade.”

Atento ao seu discurso, Evandro os olhos
150 Curioso lhe examina e a boca e o talhe;
Foi breve assaz: “Fortíssimo dos Teucros,
Com que prazer te hospedo! eu reconheço
De teu pai a facúndia, o tom e o gesto!
A Hesíone irmã sua o Laomedôncio,
155 Lembra-me, visitando em Salamina,
Honrou-me os gelos da vizinha Arcádia.
De flóreo buço a face então pungida,
Bem me admirei de Príamo e seus cabos;
Mas na grandeza os superava Anquises.
160 Cúpido jovem, por tratá-lo ardia
E a mão do herói cerrar: obtendo acesso,
Aos muros de Feneu lhe fui companha.
Partindo, insigne coldre e lícias frechas,
Clâmide auribordada e uns áureos freios
165 Deu-me, de que ora é dono o meu Palante.
Confirmo aquele pacto; e satisfeitos
Vou na alvorada, amigos, despedir-vos
Com socorro de gente e o mais que eu possa.
Entanto, embora celebrai conosco
170 Festa anual que diferir é crime,
E dos sócios à mesa habituai-vos.”

Disse, e os copos repor e os pratos manda,
Senta os varões na relva; em toro e pele
De leão veloso a Enéias acomoda,
175 Cede trono de bordo a herói tamanho.
Moços, do antiste às ordens, lestos servem
Táureas tostas fressuras, dons de Baco,
De obras de Ceres cumuladas cestas.
De rês inteira o dorso e os intestinos
180 Lustrais ministram pasto ao chefe e Troas.

Refreado o apetite e a fome exausta,
Disserta el-rei: “De tanto nume est’ara,
Esta pompa e festim, hóspede, usamos,
Não por superstição que os priscos deuses
185 Desconheça; de atroz perigo exemptos(47),
Mérito culto renovamos gratos.

Nota em penha suspensa aquela pedra:
Dispersa a mole jaz, do monte a furna
Deserta, e ao longe as ruínas dos rochedos.
190 Esta, em recesso vasto ao Sol defeso,
Era a espelunca do semi-homem Caco,
Monstro imano; e, em recente morticínio
Sempre o chão tépido, aos portais soberbos
De homens saniosas lívidas cabeças
195 Fixas pendiam. De Vulcano filho,
Túrbidos fogos vomitando, a enorme
Corpulência movia. Ao suspirarmos
Por divo auxílio, o vingador Alcides
Chega a tempo, e do espólio e morte ufano
200 Do trigêmeo Gerion de gado enchia,
Vencedor pastorando, o rio e vale.

Caco, infrene e brutal, que não se abstinha
Do mor flagício ou dolo, da malhada
Touros quatro furtou-lhe os mais robustos,
205 Quatro novilhas de excelente forma;
E, para nenhum rasto haver direto,
Puxando a cauda e a recuar, no opaco
Pétreo bojo os fechou; pegada alguma
Não guiava à caverna. O Anfitriônio,
210 Já gordo o gado e farto dos pastios,
Retirar-se dispunha, e os bois saudosos
Monte e bosque estrugiam de queixumes.
Do amplo encerro igualmente uma das vacas
Muge, e de Caco as esperanças frustra.
215 Da injúria ardendo e em negro fel, das armas
Hércules pega e do nodoso roble,
Corre ao cabeço aéreo. Aos nossos Caco
Trêmulo e demudado aqui mostrou-se:
Fugindo euros transcende, e aos pés o medo
220 Asas lhe empresta. Já na gruta, abate
Penhasco ingente, rotas as cadeias
Com que acima o ligava arte paterna,
E de espeques reforça e escora a entrada;
Ei-lo, o Tiríntio em sanha os dentes range
225 Acesso a perscrutar: férvido e iroso,
Todo o Aventino vezes três rodeia;
Três contra a sáxea porta o esforço balda;
Três descansou no vale. Aguda roca,
Asado ninho de funestas aves,
230 Entre fraguras e a perder de vista,
Do antro estava no dorso: à esquerda o cimo
Sobre o rio inclinava; à destra Alcides
Carrega, e do imo a desarreiga e impele:
Ao baque repentino o etéreo espaço
235 Retumba; e, as ribanceiras retremendo,
Reflui medroso o rio. A imensa régia
De Caco descobriu-se, e apareceram
Umbrosos penetrais: qual se abalada
Rasgasse a terra hiante o dos infernos
240 Pálido reino, aos deuses detestável;
De cá se vendo, no profundo abismo,
Da luz difusa a trepidar os manes.

Do súbito clarão se assusta o bruto,
A urrar disforme, na caverna preso;
245 De cima o ataca o deus, atira o que acha,
Calhas e galgas e lascados ramos,
Ele, ó monstro! não tendo outro refúgio,
Rouba-se à vista, a jacular das fauces
Tetro vapor; em cega névoa baça
250 Envolve a gruta, e mescla a luz e as trevas,
A fumífera noite aglomerando.
Não o suporta Alcides, e de um pulo
Se arroja onde corisca e ondeia o fumo,
E em caligem mais basta a cova estua.
255 No incêndio vão que expira agarra a Caco,
O estreita e afoga, e lhe esbugalha os olhos,
Seco na goela o sangue. Arranca as portas,
O antro escancara escuro; os bois e os furtos
Abjurados ao claro patenteia.
260 O corpo informe pelos pés arrastam:
Ninguém do semífero a catadura
De olhar se cansa, e os peitos sedeúdos,
E na garganta os apagados fogos.

D’então ledos o dia celebramos;
265 Primeiro o fez Potício, e a consagrada
Pinária tribo ergueu no bosque est’ara,
Chamada sempre máxima, e que sempre
Máxima nos será. Mancebos, eia,
Brindai-me a nobre ação, de destra em destra
270 Os copos a girar, frondosa a coma,
Comum deus o invocai, bebei contentes.”
Presto as cãs lhe entretece e enfolha o choupo
De sombra hercúlea, bicolor pendendo;
Sagrado sifo empunha. Alegres todos
275 Em roda libam, deprecando os numes.

Já Vésper ao declive Olimpo avança:
Tochas nas mãos, do estilo as peles cintas,
Potício à frente, os sacerdotes cobrem
De gratos postres a instaurada mesa;
280 Bandejas de mil dons o altar oneram.
Com popúlea capela, em torno os Sálios
Da ara incensada ao cântico presentes,
Jovens em coro, em coro o entoam velhos
De Hércules em louvor: como estupendos
285 Os dragões da madrasta esmaga infante;
Como as grandes arrasa Ecália e Tróia;
Como, o sabor de Juno, árduos trabalhos
Sob Euristeu passou. “Tu mesmo, invicto,
A Folo e Hileu, nubígenas bimembres,
290 Tu cretenses prodígios, tu mataste
Na brenha o leão Nemeu desmesurado.
De ti a Estige, na cruenta cova
Tremeu do Orco o porteiro, sobre ossadas
Meio roídas a jazer. Fantasma
295 Nenhum lá, nem Tifeu de cota enorme
Te foi terror; não te esmorece e atalha
Da hidra Lernéia a turba de cabeças.
Salve, ornamento aos divos acrescido,
Vera prole de Jove: ao teu festejo
300 Com pé desce propício, e nos assistas.”
Cantam proezas tais; por fim memoram
A furna e Caco resfolgando chamas.
Ressoa a selva e o eco nos outeiros.

Cheia a função, para a cidade voltam.
305 El-rei de anos cercado ia adiante,
Entre Enéias e o filho, em vários modos
Praticando o caminho aligeirava.
Por tudo ávido o herói passeia os olhos,
Mira, e cada vestígio dos maiores
310 Inquire e aprende. Evandro, que os primórdios
Lançou da celsa Roma, então começa:

“Indígenas moravam nestas matas
Faunos e ninfas, e homens raça dura
Dos robles; que nem bois jungir sabiam,
315 Adquirir, nem poupar, sem lei, sem culto;
Montês caça os mantinha e agrestes frutas.
De Júpiter fugindo, aqui Saturno
Do Olimpo veio, expulso do seu trono.
Selvagem povo indócil ajuntando,
320 Legislou, chamou Lácio a plaga antiga,
Onde um latente couto deparara.
No célebre reinou século de ouro,
De justiça e de paz; mas pouco a pouco
Em pior descorou-se a idade nossa,
325 Raiva belaz surgindo e atroz cobiça.
De Ausônios e Sicanos invadida,
Variou de nomes a satúrnia terra:
De um seu rei, Tibre aspérrimo gigante,
O Albula velho apelidou-se Tibre.
330 Cá nos confins do pego, expatriado,
A onipotente sorte inelutável,
De minha mãe Carmenta o sério aviso
E Apolo inspirador, me depuseram.”

Progredindo, ele mostra o altar e a porta
335 Que se intitula Carmental em Roma,
Por memória da ninfa que primeiro
Fatídica os Enêiadas sublimes
E o brilho palanteu vaticinara;
Mostra a mata em que asilo abriu Quirino
340 Sagaz, e o Lupercal, gélida gruta
De Pã liceu, vocábulo parrásio;
Mostra o Argileto bosque, e atesta e narra
De Argos hóspede a morte merecida.

Dali guia ao Tarpeio, ao Capitólio,
345 Hoje áureo, outrora de urzes erriçado.
Os campestres então, da rocha e luco
Já com pavor tremiam religioso.
“No cimo, diz, frondente habita um nume;
Qual seja é dúbio: Arcádios crêem ter visto
350 Jove nubícogo a vibrar por vezes
A égide negrejante. Observa aqueles
Dois muros em ruínas; monumentos
São dos varões passados, são relíquias
De Satúrnia e Janículo, cidades
355 Que o pai Jano e Saturno edificaram.”

Do pobre Evandro à casa entanto sobem;
No foro e lauto Bairro das Carinas
Balava o armento. Ao limiar chegou-se:
“De Alcides vencedor foi este o alvergue,
360 Nesta régia o deus coube. Hóspede, imita-o,
A desprezar atreve-te as riquezas;
Desta míngua de haveres não te enfades.”
Calou-se, e leva o herói pela estreitura
Do exíguo teto, e em leito o põe de folhas,
365 Do espólio de ursa líbia tapetado.
Cai ali-fusca noite e abrange o globo.

Não sem causa, aterrada a madre Vênus
Do cru tumulto e ameaços dos Laurentes,
Carinhosa ao marido amor divino
370 No áureo tálamo inspira, assim falando:
“Enquanto argivos reis com fogo e ferro
A malfadada Pérgamo assolavam,
Nunca, esposo querido, ajuda ou armas
Roguei do teu lavor, nem quis tua arte
375 Por miseráveis empenhar debalde;
Bem que eu devesse muito aos Priamidas,
E muito houvesse a Enéias deplorado.
No rútulo país ora o tem Jove:
Mãe, nume augusto, enfim suplico-te armas
380 Que o protejam. Dobrou-te em pranto a esposa
Titônia, a filha de Nereu dobrou-te:
Olha que povos, que cerradas praças
Em meu dano e dos meus o alfanje amolam.”
Aqui recurva a Cípria os níveos braços,
385 Com mole amplexo afaga o deus remisso;
A nota chama aquece-lhe os tutanos,
Penetra o ardor nos quebrantados ossos:
Como quando estrondoso ignito sulco
Percorre coruscante as rotas nuvens.
390 A bela o aventa, e cônscia o ardil aplaude.

De eterno amor cativo, então Vulcano:
“Que remotas razões! de mim, ó déia,
Já duvidas? Se igual empenho houveras,
Armáramos os Frígios; não vedavam
395 O pai sumo e o destino que dez anos
Príamo inda reinasse. E pois desejas
Combater, esmerar-me eu te prometo
No que de ferro e de fundido electro
Possa obrar sopro ou forja. Os rogos cessem,
400 Confia em teus encantos.” E abraçando
A gozosa consorte, em seu regaço
Num suave repouso adormeceu-se.

Do primo sono, ao descair das horas,
Se despertava; e a dona que só vive
405 Da roca e tênues obras de Minerva,
Suscita as cinzas e sopitas brasas,
Adindo a noite às lidas, e em tarefa
Longa ante o lume as fâmulas exerce,
Por manter ao marido o casto leito
410 E criar tenros filhos; não mais tíbio,
Da fofa cama salta o ignipotente,
E vai de golpe à férvida oficina.

Junto à Sicânia e Liparis eólia
Se ergue sáxea fumante ilha escarpada;
415 Lá toa etnéia gruta por ciclópias
Fornalhas carcomida, e em safras malhos
Se ouvem gemer, dos Cálibes as chispas
Rugir e as frágoas resfolgar em ala:
De Vulcano apelida-se Vulcânia.
420 Dos céus o alto forgeiro aqui descende.

No antro espaçoso o ferro trabalhavam
Nus Piracmón e Estéropes e Brontes.
Nas mãos polido em parte, inda imperfeito,
Corisco tinham, dos que do éter Jove
425 Crebros joga: três raios de saraiva
Torta ajuntaram, três de aquosa nuvem,
Três de rútilo fogo e de austro alado;
Fulgor terrífico e estampido e medo
Mesclavam-lhe e iras de sequazes flamas.
430 Rodas leves e o carro outros consertam
Com que homens e cidades Marte excita;
A égide horrível da agastada Palas
De áureas escamas à porfia brunem,
Onde ao seio da deusa enrosca as serpes
435 E inda olhos vira a Górgona estroncada.

“Fora tudo, lhes clama, etneus Ciclopes,
Deponde esses trabalhos e atendei-me.
Vão-se armas fabricar a herói famoso:
Força agora e primor, destreza e pressa.”
440 Nem acaba, e o serviço eles sorteiam:
Flui ouro e cobre a jorros, e em fornalha
Ampla o aço vulnífico liquesce.
Broquel tremendo formam, só bastante
Contra todos os tiros dos Latinos;
445 Lâminas sete em orbes o roboram:
Ventosos foles o ar sorvido expelem;
No tanque ao temperar-se o metal chia;
O antro a bramir, os golpes nas bigornas
Braços nervudos em cadência alternam,
450 Com tenaz pegam, rubra a massa volvem.

Na Eólia enquanto o Lêmnio os aferventa,
A alma luz da cabana a Evandro acorda,
No teto matinais cantando as aves.
Enfia a túnica, as sandálias tuscas,
455 Ata às plantas o velho; e, a tiracolo
Tegéia espada, lança do ombro esquerdo
E sobraça uma pele de pantera.
Marcham dois cães fiéis, que a porta guardam,
Pós seu dono. Em descargo da promessa,
460 O ancião buscava o camarim de Enéias,
Que também madrugara e já saía.
A um Palante acompanha, ao outro Acates.
Juntas as destras, no salão do meio
Sentam-se, e francamente enfim se explicam.
465 El-rei começa: “Ó mor dos frígios cabos,
Livre estás, por vencida eu não dou Tróia.
Para um tal nome é fraco o auxílio nosso:
Cá tusco rio, lá me aperta armado
Circunsonando o Rútulo à muralha.
470 Mas bons guerreiros e opulentos reinos
Aliar-te vou: dos fados conduzido,
Conjunção tens aqui para salvar-te.

Não distante, em vetustos alicerces
De Agila, outrora a brava gente lídia
475 Fundou cidade nos etruscos serros.
Florente prosperava, até que veio
Mezêncio, mau tirano, a subjugá-la.
Por que assassínios tais e atrocidades
Referirei? Sobre ele e os seus recaiam!
480 Vivos ligava a mortos, contrapondo
Mãos a mãos (que tormento!) e boca a boca,
E em triste abraço e pútrida sangueira
Nesta agonia longa os acabava.
Lassos porém da infanda crueldade,
485 Munidos cidadãos cercam-no em casa,
Queimam-na; os vis asseclas lhe degolam.
Da morte escapo, em Ardea(48) achou guarida,
Do hóspede Turno as armas o defendem.
A Etrúria toda, em fúria e justo marte,
490 Pede insurgida o rei para o suplício.
Vou por-te à frente de milhares destes.
Querendo içar bandeira as popas fremem
Densas na praia: arúspice longevo
As retém profetando: — “Ó flor meônia,
495 Que, avito brio herdando, o agravo acende
Em mérito furor contra Mezêncio,
Não pode Ítalo algum domar tal gente;
Chefe externo escolhei.” — D’então, confuso
Do anúncio, o tusco exército acampou-se.
500 Tárchon mesmo enviou-me insígnias régias;
Aos arraiais tirrenos me convida
E o cetro me oferece. Mas velhice
Tarda e frígida inveja-me este império,
E as débeis gastas forças me acobardam.
505 Suadira o filho, se daqui não fora,
Gerado em mãe sabela. Tu, que a idade,
Que a pátria favoneia, e os céus designam,
Vai, cabo egrégio de Ítalos e Teucros.
Confio-te a só prole, meu conforto,
510 Minha esperança. A militar contigo
Aprenda e a ter em pouco o márcio peso;
Novel, te observe e admire-te as façanhas,
Dar-te-ei duzentos guapos cavaleiros
De escolha, e iguais te ofertará Palante.“

515 O Anquíseo, a vozes tais, e o fido Acates
No mesto coração mil duros transes,
Fixos em terra os vultos, pressagiam,
Se não acena do alto Citeréia.
Eis o ar vibrado relampeia e ronca:
520 Tudo estralar parece e de trombeta
Mugir clangor tirreno. A vista elevam:
Trovão brama e rebrama; em nuvem clara,
Serena a região, pulsadas armas
Vêem rutilar toando. Os mais se espantam
525 Mas o herói, conhecendo o som divino:
“Hóspede, brada, o anúncio do portento
Não me inquiras; o Olimpo me reclama.
Prometeu minha mãe, se a guerra instasse,
Transmitir-me o sinal e pelas auras
530 Armadura vulcânia. Ah! que de estragos
Ameaça os Laurentinos! Caro, ó Turno,
Mo pagarás! Que escudos, corpos e elmos,
Pai Tiberino, envolverás nas ondas!
Que ora peçam batalha e o pacto quebrem.”

535 Do sólio aqui se ergueu; sopitas aras
Com teda hercúlea esperta; e alegre o de ontem
Lar busca e humildes hospedeiros divos;
Reses do estilo bianejas mata:
O mesmo faz Evandro e os jovens teucros.
540 Às naus depois caminha; e dentre os sócios
Elege os mais guerreiros e prestantes;
Outros vão rio abaixo, ao tom das águas,
O que obteve seu pai contar a Ascânio.
Corcéis arreiam para o campo etrusco;
545 A Enéias um loução: leonino o amanta
Fulvo teliz de auriluzentes unhas.

Veloz no exíguo burgo a nova grassa
De ir a cavalaria às tuscas tendas.
As mães duplicam votos, medra o susto,
550 Mor o perigo e a lide se afigura.
Na despedida Evandro ao filho a destra,
Lagrimando insaciado, aperta e fala:
“Oxalá que eu tornasse ao vigor d’antes!
Quando, a vanguarda ufano destruindo,
555 Em Preneste incendiei montões de escudos;
E, remetendo ao Orco o régio Herilo,
Três almas, que ao nascer a mãe Ferônia
Lhe infundira, ó prodígio! este meu braço
Lhas desfez, derribando-o com três mortes,
560 E o despojei da tríplice armadura:
Então, meu doce filho, do teu lado
Nunca me apartaria; nem Mezêncio,
Às minhas barbas tanto horror cevando,
A viúva cidade funestara.
565 Mas, vós deuses, tu Júpiter supremo,
Do aflito arcádio rei compadecei-vos,
Prece escutai paterna: se Palante
O vosso nume e os fados mo conservam,
Se hei de vê-lo e aduná-lo, a vida imploro;
570 Tragarei quaisquer penas: mas, Fortuna,
Se ameaças caso horrendo, agora, agora
Estale a cruel teia, enquanto ambíguo
Temo e espero o futuro, enquanto, ó caro,
Meu só e último gosto, aqui te abraço:
575 Núncio ingrato os ouvidos não me fira.”
Tal neste adeus se exprime e chora o velho;
Desfalecido, os servos o recolhem.

Pelas portas as turmas já despedem,
À testa o herói e Acates, e outros Frígios
580 Dos mais grados: no centro luz Palante,
De arnês pintado e clâmide vistoso;
Qual, do oceano orvalhada, a estrela d’alva,
A quem sobre os mais astros Vênus ama,
Alteia aos céus a fronte e solve as trevas.
585 Pávidas mães aos muros, de olhos seguem
Nuvem pulvérea e o bando eri-fulgente.
Por encurtar jornada, espinhais trilham;
Formam-se ao grito, a esboroá-lo bate
Com som quadrupedante a úngula o campo.

590 Bosque ante o frio Cérite se estende,
Antigo e venerado; o qual circundam
Negros abetos, curvos montes fecham.
Priscos Pelasgos, íncolas do Lácio,
Um dia e o luco é fama que a Silvano,
595 Deus das(49) lavras e gados, consagraram.
Tárchon lá tinha os arraiais seguros;
De uma colina o exército espalhado
Já se descortinava e ao largo as tendas.
Com seus guerreiros se adianta Enéias;
600 Lassos, dos corpos, dos cavalos curam.

A cândida Ciprina os dons pelo éter
Nimboso traz, e ao filho em vale escuso
Retraído enxergando à fresca margem,
Lhe disse rosto a rosto: “Eis os presentes
605 Que engenhou meu consorte: não receies
Laurentes soberbões nem fero Turno
Provocar.” Nisto, enreda-se nos braços
Do seu querido, e à sombra de um carvalho
Depôs fronteiro as fulgurantes armas.
610 Gostoso de honra tanta, em si não cabe;
Mira tudo e remira; embraça(50) e apalpa,
Meneia e prova, de terrível crista
O elmo flamívomo, a letal espada;
Bronzi-rija e sangüínea a grã couraça,
615 Qual se aos raios do Sol cerúlea nuvem
Longe esplende e rubeja; as finas grevas
De electro e ouro acendrado, e a cota e a lança,
E a do broquel textura inexplicável.

Nele, o porvir sabendo e as profecias,
620 O artífice gravou de Itália as coisas
E os triunfos romanos, desde Iulo
A estirpe toda, e a série das batalhas.
De Marte em verde gruta ali parida
Loba jaz, e a brincar das tetas pendem
625 Gêmeos que a chupam sem pavor, e afagos,
Nédia a cerviz dobrando, a mãe reveza,
E os corpinhos lambendo os afeiçoa.

Gravou Roma, e as Sabinas do teatro
Raptas sem modo nos circenses ludos;
630 Entre os Romúleos e dos severos Cures
Do velho Tácio a disparada guerra.(51)
Depois, da ara de Jove os reis armados,
Posto o certame, tendo em mãos as taças,
Em penhor da aliança a porca ferem.

635 Perto, opostas quadrigas fustigadas,
Mécio esquartejam; vísceras e membros
(Tu Albano perjuro, a fé guardasses)
Roja Tulo, e os sarçais goteiam sangue.

Lá, para impor Tarquínio expulso a Roma,
640 Porsena a cerca e oprime: a libertá-la
Contra o ferro os Enêiadas remetem.
Como indignar-se o viras, torvo e irado,
Porque ouse Cocles só cortar a ponte,
E as prisões rompa Clélia e trane o rio.

645 No cimo, a rocha a vigiar Tarpéia,
Mânlio o templo defende e o Capitólio;
Colmo romúleo o paço novo encrespa.
Argênteo ganso ao pórtico dourado
A esvoaçar dos Galos dá rebate,
650 Que entre o mato, a favor da opaca noite,
Vinham-se aproximando à fortaleza.
Áureo o crino, áurea a veste, e o saio em listras,
Luzem de áurea cadeia aos lácteos colos;
Cada qual dois rojões alpinos brande,
655 Com oblongos escudos se resguardam.

Abriu Sálios dançando e nus Lupercos,
Topes lanosos, e do céu caídas
Ancílias: castas mães em moles andas
Guiam pela cidade as sacras pompas.
660 Longe, o Tártaro abriu, plutônias fauces,
E os castigos da culpa; e a ti suspenso,
Ó Catilina, de um minaz rochedo,
Ante as Fúrias tremendo; e à parte os justos,
A quem rígidas leis Catão ditava.

665 Também de ouro, a espumar com branca vaga,
Representa o cerúleo inchado plaino;
Delfins de argênteo brilho, às voltas, o esto
Rasgam, de cauda o pélago açoitando.
No meio, êneas armadas, ácias guerras,
670 Todo a ferver Leucate em marte instruto,
Com o ouro viras fulgurar as ondas.
Cá, n’alta popa, Augusto arrasta aos prélios
Senado e povo, os deuses e os penates;
De ambas as fontes ledo exala flamas;
675 Na cabeça lhe fulge a estrela pátria,
Agripa lá, propícios vento e numes.
Árduo comanda; e a frota vitoriosa
Rostrada se orna da naval coroa.
Antônio além, ovante com o auxílio
680 Bárbaro e vário, as forças traz do extremo
Báctro e eôos confins e roxas praias;
Com todo o Egito, ó pejo! segue a esposa.
À uma ruem, se empegam; freme e alveja
O mar dos remos e esporões tridentes.
685 Crês despregadas Cícladas nadarem,
Montes baterem monte: com tal mole
Instam varões das torreadas popas!
Fachos estúpeos voam, farpas zunem,
Rubra do fresco estrago a azul campina.
690 Sem ver pós si dois áspides, com pátrio
Sistro anima Cleópatra os soldados.
Contra Palas, Netuno e Vênus, se arma
Com omnígenos deuses monstruosos
O ladrador Anúbis: no conflito
695 Marte, em ferro entalhado, se embravece;
Do éter as negras Diras, e ufanosa
Marcha a Discórdia, espedaçado o manto;
Com sangüento flagelo atrás Belona.

O áccio Apolo atentando o arco atesa
700 De cima: de terror o Árabe, o Egípcio,
O Indo, o Sabeu, voltaram todos costas.
Mesmo a rainha parecia os ventos
Invocar, soltar cabos, dar as velas.
Já da futura morte em palor tinta,
705 Da clade o rei do fogo fez que a tirem
O Iapix e a corrente: mas defronte
Mesto abre o seio, e a veste arregaçando,
Ao verde grêmio e latebrosas fontes
Chama os vencidos o gigante Nilo.

710 Com tríplice triunfo entrado em Roma,
De Itália aos deuses cumpre os votos César,
Trezentos sagra amplíssimos delubros.
Festa, aplauso, alegria as ruas soam:
Em cada templo um coro há de matronas,
715 Aras em todos há, perante as aras
Touros imolam, de que a terra juncam.
Sentado ao níveo limiar de Febo,
Reconhece ele as dádivas dos povos,
E dos portais soberbos as pendura.
720 As vencidas nações longo desfilam,
Tão diversas em língua, em trajo, em armas.
Nômades e Afros descingidos, Cares,
Lelagas, sagitíferos Gelonos
Mulciber esculpira; e já mais brando
725 O Eufrates, e os Morinos derradeiros,
E os indômitos Daas, e o bicorne
Reno, e da ponte o Araxes indignado.

O herói admira o dom, primor vulcânío;
Da imagem do porvir gozando ignaro,
730 Dos seus glória e destino ao ombro leva.

publicado por centrallgames às 00:51
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eneida de virgílio:obra completa(7)

LIVRO VII

 

Tu não menos, Caieta ama de Enéias,
Nossas praias morrendo eternizaste;
Guarda o lugar teu nome, e se isto é glória,
Na magna Hespéria os ossos te assinala.

5 O pio aluno, exéquias celebradas,
Túmulo erguido, assim que os mares jazem,
A velejar prossegue e o porto larga.
Auras à noite aspiram, nem seu curso
Cândida a Lua nega; o ponto esplende
10 Ao trêmulo clarão. Circéias terras
Costeiam-se, onde lucos inacessos
Com aturado canto a rica filha
Do Sol atroa, e nos soberbos tetos
Odoro cedro em luz noturna queima,
15 Corre com pente arguto as finas teias.
Dali gemidos a se ouvir, e as iras
De horrentes leões cadeias recusando
E a desoras rugindo, e nos presepes
Ursos raivar, sanhudos grunhir cerdos,
20 E enormes vultos ulular de lobos;
Que a seva deusa com potentes ervas
De homens os transvestira em brutas feras.
Por que arribada o encanto a boa gente
Não padeça, nem toque as diras plagas,
25 Favorável Netuno encheu-lhe as velas,
E dos férvidos vaus a impeliu fora.

Já na arraiada roxeava o pego,
Fulgia em rósea biga a ruiva Aurora:
Acalma o vento, nem sequer bafeja,
30 E tonsas lutam pás no lento mármore.
Do largo extensa mata avista Enéias;
Dela com fluxo ameno o Tiberino,
Verticoso e veloz, de areias flavo,
Ao mar prorrompe; ao álveo e borda afeitas,
35 Várias aves por cima em cerco voam,
Com meigo trino as auras adoçando.
Que dobrem rumo ordena e à selva aproem,
E entra contente pelo umbroso rio.

Eia, Erato, exporei do Lácio antigo
40 Os reis, o estado, a sucessão de coisas,
Quando aportou n’Ausônia a estranha armada;
Vou do conflito recordar o exórdio.
Tu diva, tu me inspira: hórridas guerras
Dirá teu vate, os prélios, os monarcas
45 Ferozes por seu dano; as tuscas hostes,
A coalição direi da Hespéria em armas.
Mor assunto se me abre, é mor a empresa.

Velho, em sossego e paz Latino as lavras
E cidades regia. É voz que a ninfa
50 Marica de Laurento houve-o de Fauno;
A Fauno gerou Pico; e este, ó Saturno,
Pai te refere: da família és tronco.
O masculino herdeiro, inda em agraço
A sorte lho tirou: gentil princesa,
55 Para um varão madura e já completa,
Era o esteio da casa e amplos domínios.
Da flor d’Ausônia e Lácio pretendida,
Pede-a, em avós e avoengos poderoso,
Turno ante os mais pulquérrimo; a quem genro
60 Almejando a rainha, apressa as bodas:
Obstam porém terríficos portentos.

De grenha santa, em fundo claustro havia,
Com temor conservado, um lauro anoso;
Que ali constava, ao começar os muros,
65 Achara e a Febo o dedicou Latino,
Nomeando Laurentes os colonos.

No tope, ó maravilha! os ares fluidos
Nuem de abelhas a zumbir sulcando,
Sentou-se, e em cacho pés com pés travados,
70 Da ramagem pendeu súbito enxame.
Logo um vate: “Com tropas chefe externo
Chegar, donde as abelhas, divisamos,
E em senhor se erigir do sumo alcáçar”.
E também, junto ao pai Lavínia virgem
75 Com tedas castas incensando as aras,
Fogo, ó pasmo! às madeixas ateado,
O ornato viu-se em crepitante chama;
E ao de rubis diadema e régio crino
Acesa, em fumo e pardo lume envolta,
80 Espalhar pelo templo a labareda.
Terror e espanto foi: de ilustre fama
E no porvir ditosa a decantavam;
Mas que atroz guerra prometia ao povo.

Busca o velho assombrado o padre Fauno,
85 E o consulta nos bosques d’alta Albúnea;
Que, floresta a maior, com sacra fonte
Soa, e tetra mefite exala opaca.
Aqui gentes d’Itália, a Enótria em peso,
O oráculo interrogam. Dons trazendo
90 O sacerdote aqui, se em muda noite
De vítimas em peles estradadas
Se encosta e se adormece, avoejantes
Vê mil fantasmas, vozerias ouve,
Logra aos deuses falar, e no imo Averno
95 A Aqueronte conversa. Aqui, rogando,
Bimas do uso o rei mata ovelhas cento,
Nos couros deita-se e alastrados velos.
De repente uma voz sai da espessura:
“Nos tálamos dispostos não confies,
100 Prole minha, e em nenhum latino genro;
De fora outros virão que o nosso nome
Exaltem com seu sangue, e em netos brotem
A cujos pés se curve e rode quanto
De um ao outro oceano o Sol perlustra.”
105 Do pai Fauno em silêncio o aviso dado,
Consigo ele o não cala; e pela Ausônia
A revoar a Fama o assoalhava,
Quando a frota os mancebos laomendôncios
Da riba ao marachão gramíneo ataram.

110 O herói, seus capitães e o lindo Iulo,
Sob árvore copada se acolheram;
Na relva, ensina-o Jove, às iguarias
Candiais tortas sotopõem, e o fárreo
Solo de agrestes frutas acogulam.
115 Como os fizesse a míngua dos manjares,
Trincada a exígua Ceres, com audazes
Queixos e mãos violar a fatal crusta,
As orlas não poupando e chatas quadras:
“Hui! que as mesas tragámos” diz brincando,
120 Não mais, Iulo. O anúncio as lidas finda;
E o pai, que o recolheu da afável boca,
Do nume se reteve estupefato;
Clama enfim: “Salve, terra a nós fadada;
Salve, troianos e fiéis penates!
125 Já temos pátria e casa. Hoje recordo
As predições de Anquises: — “Quando, ó filho,
Gasto em praia estrangeira o mantimento,
Te obrigue a fome a consumir as mesas,
Descanso espera, o assento aí te lembre
130 De trincheiras munir”. — Esta era a fome,
O extremo que traria aos males pausa.
Ledos, ao romper d’alva, esta paragem,
O povoado e a gente, investiguemos,
Do porto a dentro esparsos discorramos.
135 Toca a brindar a Jove e ao divo Anquises;
O festim renovai, reponde os vinhos.”
Depois, de verde as fontes enramando,
Ora ao gênio do sítio, e à prima deusa
Telus, e a ninfas e ignorados rios;
140 Chama a Noite e os da Noite orientes signos,
A Ideu Jove em seguida e a Madre Frígia,
Do Érebo e Olimpo os seus progenitores.
Três vezes claro toa, e a mão suprema
Vibra auriardente lampejante nuvem.
145 Que é tempo enfim de inaugurar seus muros
No exército o rumor súbito lavra.
Do alto sinal folgando, o bodo instauram,
Rasas de vinho as copas engrinaldam.

Mal que alvorece e a tocha eoa raia,
150 Toda a comarca e litoral exploram:
Do Númico este o lago, o Tibre é este,
Que dos fortes Latinos banha as terras.
O Anquíseo então, nas filas escolhidos,
Embaixadores cem com dons à régia
155 A pedir paz envia, da paládia
Rama velados. Rápido obedecem.
Ele com fosso humilde risca os muros,
E a modo de arraial na praia o assento
Prepara e o cinge de liçada e valo.

160 Já, vencido o caminho, os messageiros
Torres e árduos palácios descobriam.
Chegam-se: às portas a puerícia e a flórea
Juventude a cavalo se exercitam;
Carros domam na arena, ou rijos arcos
165 Nervudo o braço tende e frechas tira;
Desafiam-se ao curso e ao pugilato.
Um pica o bruto, e entrados anuncia
Varões de porte em peregrino trajo:
Colocado o ancião no avito sólio,
170 Os admite e recebe. O teto augusto,
Desde o laurente Pico, em cem colunas
Sobranceiro e sublime, o sombreavam
Selvas com pio horror sempre acatadas.
Ali tomar primeiro o cetro e os fasces
175 Por feliz tinham: cúria, templo, sala
Do sacrifício, ao longo ali das mesas, 
Morto o carneiro, os padres se assentavam.
Por ordem no vestíbulo as efígies,
De antigo cedro, estavam dos maiores:
180 Ítalo, o vinhateiro pai Sabino
Tendo em baixo o podão, Saturno idoso,
Bifronte Jano, e quanto rei primevo
No pátrio marte prodigou seu sangue.
Em sacros postes muitas armas pendem,
185 Chuças, machadas, elmos e cocares,
Ingentes aldrabões, troncados rostros,
Cativos coches, e broquéis e alfanges.
Com lítuo quirinal e em trábea estreita,
Pico, ancília na esquerda, éqüite ardido,
190 Lá pousava; a quem Circe, malograda
No amoroso apetite, com feitiços
D’áurea varinha ao toque tornou ave
E as asas lhe esmaltou. Neste recinto
Foi que Latino, os teucros introdutos,
195 Da sede régia plácido lhes fala:
“Dardânidas (a pátria, a origem vossa
Cá não se ignora, a fama vos precede),
Que demandais? qual trouxe à praia ausônia
Causa ou falta os baixéis por vaus tão cegos?
200 Fosse erro de caminho ou tempestade,
Contratempos do triste navegante,
Entrastes este rio, e já no porto
O hospício não fujais; sabei que a gente
Latina de Saturno, por si reta,
205 Não por temor da lei, tem-se aos ditames
Do velho deus. Lembrado estou que auruncos
Padres contavam-me (antigualha obscura)
Que destes agros Dárdano entranhou-se
No Ida frígio e na que ora é Samotrácia;
210 E, do tirreno Córito(39) emigrando,
Hoje aras tem, numera-se entre os divos,
Com trono de ouro na estelante corte.”

Presto Ilioneu: “De Fauno herdeiro egrégio,
Fluctívagos, ó rei, não foi tormenta,
215 Astro ou rota falaz, que às vossas bordas
Nos lançou; de pensado e acordes vimos,
Expulsos do maior de quantos reinos
Do balcões do levante o Sol mirava.
De Jove oriunda, a geração dardânia
220 Do avô Jove se orgulha; e o tróico Enéias,
Garfo real de Jove, a ti nos manda.
Sobre os campos ideus que atroz borrasca
Desfechou de Micenas, por que impulsos
D’Ásia e Europa os dois orbes se encontraram,
225 Quem quer o ouviu que nos confins da terra
Seja além do oceano, ou se entre as quatro
Na zona extensa o torre iníquo Febo.
Por vastos mares do dilúvio escapos,
Sede exígua imploramos para os deuses,
230 Comum água, ar patente, inócua praia.
Não te seremos pejo, e mais te ilustras;
Perene gratidão fará que Ausônia
De agasalhar a Tróia não se pese.
De Enéias pela destra invicta o juro,
235 Se é que fida ou valente algum provou-a,
Bem povos (não desprezes os que temos
Estas fitas nas mãos, na boca preces),
Bem nações para sócios nos rogaram;
Mas fado urgente ao solo teu nos guia:
240 Dárdano, daqui nado, aqui reverte;
De Apolo é mando expresso a fonte sacra
Buscarmos do Númico e o tusco Tibre.
Da passada fortuna aceita uns restos,
Salvos de Ílio incendida: o padre Anquises
245 Libava por este ouro ante os altares;
Ao legislar aos congregados povos,
Eis de Príamo o cetro, eis a tiara,
Eis, das Frígias trabalho, as vestiduras.”

A vozes tais, Latino o rosto abaixa,
250 Quedo olhos volve atento; nem priâmeo
Cetro ou bordada púrpura o comove,
Quanto o consórcio e tálamo da filha;
E de Fauno medita os vaticínios;
Que este o fadado genro é peregrino,
255 Trazido ao reino por iguais auspícios,
Cuja ilustre progênie valerosa
Pujante ocupe o âmbito do mundo.
“O céu nossos começos, clama alegre,
E agouros seus prospere! O desejado
260 Haverás, Teucro. Os dons não menosprezo;
Nem, reinando Latino, agro ubertoso
Ou troiana opulência há de faltar-vos.
Se Enéias tanto a mim ligar-se anela,
Venha, hóspede me seja; nem do amigo
265 Tema o aspecto: em abono da aliança
Do monarca fiel me sobra a destra.
Tenho uma filha (dai-lhe este recado)
Que unir-se a algum dos nossos mil prodígios,
Do ádito pátrio as sortes, não consentem:
270 Varões de longe, no país estantes,
Exalçarão seu sangue e o nosso nome.
Se a mente bem atina, e é, como creio,
Ele o genro fatal, gostoso o adoto.”

Cessa; e escolhidos em corcéis trezentos,
275 Os mais nédios que tinha às mangedouras,
Um alípede oferta a cada Frígio,
De ostro e matiz lustroso acobertados:
Aos peitos lhes caindo áureas coleiras,
De ouro os arreios têm, fulvo ouro tascam.
280 Um coche a Enéias manda, e exala o tiro,
Do éter semente, pelas ventas fogo;
Casta que ao pai furtou dedália Circe,
De submetida mãe bastardas crias.
Com tais dons, a cavalo os enviados,
285 Portadores de paz, contentes voltam.

Eis que de Argos ináquia parte a seva
De Jove esposa; e avista lá dos ares,
Desde o Pachino sículo, os Troianos
E ovante Enéias, já desembarcados,
290 Na terra a edificar, seguros dela.
De ânsia pára; e, a cabeça meneando,
Queixumes derramou do aflito peito:
“Raça infanda! ao meu fado avesso fado!
Ah! nas campinas do Sigeu puderam
295 Sucumbir? ser tomados, ser cativos?
Porventura abrasada os queimou Tróia?
Franca via entre o ferro e o fogo acharam.
Lasso, eu cuido, afinal meu nume cede;
Saciada afrouxei, depus meus ódios...
300 Como! ousei contrastá-los no desterro,
No undoso ponto os persegui fugidos:
Esgotei mar e céu para vingar-me.
Sirtes, Caribdes, Cila, que prestaram?
Do pélago e de mim zombam no grêmio
305 Do caro Tibre. Os Lapitas gigantes
Marte acabou; rendeu-se a Calidônia
De Febe às iras: para um tal castigo
Lapitas, Calidônia, em que pecaram?
Qui-lo assim meu consorte; e a mim rainha,
310 Que meios não poupei, que empreendi tudo,
Vence-me Enéias! Meu poder se é pouco,
Deprecar a quem for já não duvido:
Vou, se não dobro o céu, mover o inferno.
Separá-lo do Lácio me proíbem;
315 Sua Lavínia seja: a dita ao menos
Protrair, perturbar, não me é defeso;
Os povos soverter dos reinos ambos:
Com tais pareias se alie o genro e o sogro.
Sangue rútulo e teucro o dote sendo,
320 Belona, ó virgem, prônuba te espera.
Não só fogos jugais, de um facho prenhe,
Pariu Cisseide; a Cípria houve outro Páris,
Tição funesto aos recidivos muros.”

Vociferando horrenda baixa às terras.
325 Do Orco e antro furial avoca Alecto,
Que maldades luctífica respira,
Guerras, traições, rancor; monstro que odeiam
As tartáreas irmãs e o rei das sombras:
Com tanto esgar se afeia e a testa enruga,
330 Tanto a enegrecem pululantes cobras!
Juno assim a aguçou: “Da Noite filha,
Para não sofrer quebra de honra ou fama,
Serviço especial me outorga, ó virgem:
Por consórcios os Teucros não consigam
335 A Latino embair, ter pé na Itália.
Irmãos tu podes e íntimos amigos
Armar de sanha, desavir famílias,
Com funéreos brandões e crus flagelos;
Artes mil de empecer, mil nomes sabes:
340 Fecunda a mente excita; a paz desfaze,
A cizânia(40) semeia; estoure a guerra,
Bramindo a mocidade às armas corra.”

De gorgôneo veneno Alecto infecta,
Ao Lácio e a régia voa, entra furtiva
345 No retiro de Amata, cuja ardência
Dos Frígios contra a vinda e a pró de Turno
Feminis mágoas e ódios recoziam.
Da azul grenha uma serpe a deusa arranca,
No corpo lha insinua, por que o paço
350 Todo empeste e alborote furibunda.
Côa a serpe entre a veste e o liso seio
Com mole tato, com macio engano
Lhe infunde alma vipérea: em torsal de ouro
Faz-se ao pescoço; num listão se alonga,
355 Enleia a coma e lhe percorre os membros.
E enquanto alastra a úmida peçonha,
E em ossos e sentidos prende a chama,
Antes que se lhe incenda o ânimo inteiro,
Carpindo a filha e os himeneus troianos,
360 Com maternal carinho ao rei se exprime:
“A vindiços, tu pai, Lavínia entregas?
Dela e ti não tens dó, nem da mãe triste,
Que ao primeiro aquilão, raptada a virgem,
Verei soltar a vela esse pirata?
365 Não penetrou na Esparta o pastor frígio?
A Ílio não transportou de Leda a filha?
Que é do amor para os teus, onde a fé pura
E amiúde ao meu Turno a destra dada?
Se hás mister genro estranho, e o padre Fauno
370 To ordena e está sentado, estranha eu julgo
Qualquer terra ao teu cetro não sujeita:
Do oráculo este o senso. E ao prisco tronco
Se remontamos, de Inaco e de Acrísio
Turno provém, Micenas de permeio.”

375 Baldadas as razões, que resistia
Firme o rei, pelas vísceras calando
Do serpentino vírus o contágio,
Já danada a infeliz, que espectros vexam,
Na vasta capital erra sem tino.
380 Sob a torcida trena, em rodopio,
Atentos os meninos ao brinquedo,
Pelo vazio largo o pião tangem,
Que do açoite(41) impelido em círculo anda;
Néscia embasbaca a chusma, e o bando impube
385 Aviva a golpes o volúvel buxo:
Não com menos presteza ela vagueia,
Corre as cidades e embravece os povos.
Té sanhuda, a fingir de Iaco o influxo,
Com mais nefando arrojo se entranhando,
390 No monte oculta a filha, por que aos Troas
Roube o tálamo e as núpcias procrastine;
Brada e freme: “Evoé! só, Baco, és digno
Da virgem que maneja os moles tirsos,
Gira em coro, a ti sacra a trança cria.“

395 Grassa o rumor: as mães da peste acesas,
Por sede nova ardendo aguilhoadas,
Cabelo e colo ao vento, os lares deixam;
Ou peles a trajar, pampínea a lança,
De trêmulo ululado os ares coalham.
400 Ela entre as mais sustém flagrante pinho,
Raiva, canta o himeneu da filha e Turno;
Torva grita, virando olhos sangüíneos:
“Io latinas mães! quem sois, ouvi-me;
Se Amata vos condói, ou do materno
405 Jus vos remorde o zelo, nestas orgias,
Desenastrada a coma, interessai-vos.”

Tal entre brenhas e ferinos ermos
Alecto em bacanais punge a rainha.
Dês que a raiva lhe afia, e de Latino
410 A família e conselho crê revoltos,
Leva-se a turva déia em fuscas asas
Do audaz Rútulo aos muros; que, trazida
Sobre o Noto precípite, aos Acrísios
Danae se diz fundara: a grã cidade
415 Chamou-se Ardéia, e conserva o claro nome,
Não a fortuna. Ali no alcáçar Turno
Meio sono lograva em noite opaca.
O furial vulto e formas despe Alecto;
Em Calibe, de Juno velha antiste,
420 Se transfigura: a testa e face obscena
De rugas ara, às cãs veste uma touca,
Prega-lhe em cima um ramo de oliveira,
E ao jovem se apresenta: “Sofres, Turno,
Tantas lidas frustradas, que a fugidos
425 Passe o teu cetro? Ganhos com teu sangue
O matrimônio e dote, o rei tos nega,
Herda um Teucro no reino. Ora, ultrajado,
Vai-te arriscar; mal pago, as filas tuscas
Rompe, descose; a paz mantém no Lácio.
430 Isto a grande Satúrnia, enquanto em noite
Plácida jazes, me intimou te expenda.
Arma, arma, sus, a mocidade em campo;
E, à margem pulcra assentes, os caudilhos
Frígios arrasa, e queima as naus pintadas:
435 Poder alto o prescreve. E se o monarca,
Surdo às promessas, a união te enjeita,
Prove e sinta o que valha em armas Turno.”

Da vate a escarnecer: “Nem tu presumas
Que estar no Tibre a frota é novidade.
440 Nem cá meter me venhas tantos medos:
Juno etérea de nós se não descuida.
Mas crédula, cediça(42) e carunchosa,
Ralas-te, avó, com pânicos terrores,
Tonta ingerindo-te em reais arcanos.
445 Vigia os templos, das imagens cura:
Toca aos varões tratar e a paz e a guerra.”

Arde com isto Alecto; e, orando o moço,
Treme todo, hirta a vista: com tais serpes
Erínis silva, tais carrancas abre!
450 Tardonho ia falar; com flâmeos olhos
De través ela o empurra, duas cobras
Da grenha irriça, o látego estalando,
E com rábida boca assim troveja:
“Eis-me caduca, tonta e carunchosa,
455 Metediça entre os reis com vãos terrores.
Olha, da estância das irmãs tremendas
Trago em mão guerra e morte.” Inda vozeia,
E a Turno um facho atira de atro lume,
Que fumegante no íntimo cravou-se.

460 Espantado ele acorda, em suor tendo,
Que dos poros rebenta, ossos e membros;
Louco por armas grita, armas no leito
Busca e em torno. Braveja o amor do ferro,
A ímpia insânia da guerra, e cresce a raiva:
465 Qual da undante caldeira quando ao bojo
Lígnea flama se aplica estrepitosa,
A água enfurece e ferve, em bolhas salta;
Fúmea espumando a enchente, sem conter-se
Tansborda, e vai-se em túrbidos vapores.
470 Manda ao rei informar que a paz quebrou-se,
De petrechos prover, guardar a Itália,
Expelir das fronteiras o inimigo;
Contra o Latino e o Teucro ele só basta.
Mal que as ordens promulga e invoca os deuses,
475 À competência os Rútulos se exortam:
Uns move do mancebo a galhardia:
Uns seu preclaro sangue, ou forte braço.

Alecto, enquanto os seus Turno acorçoa,
Com novo ardil, às asas dando estígias,
480 Cata o sítio e ribeira onde caçava,
De assalto ou de emboscada, o belo Ascânio.
Presto a cocícia virgem, com sabido
Cheiro iscando os focinhos, de um veado
À pista açula os cães: este o motivo
485 Que os campônios atiça e a guerra ateia.
Cervo galhudo havia, airoso e lindo,
Que de mama furtado à mãe nutriam
Os filhos de Tirreu, dessas devesas
Couteiro e maioral do armento régio.
490 De galantes festões ao dócil bruto
Meiga a irmã Sílvia entretecia os cornos,
Penteado e lavado em fonte pura.
Da dona à mesa afeito e manso, errava
Pela selva, e de noite, às vezes tarde,
495 Se recolhia à casa. Andando a monte,
Brabas de Iulo as perras o acossaram,
Quando, seguindo a veia de um regato,
Se refrescava na virente riba.
Na ânsia de exímios gabos, do arco as pontas
500 Junta e dispara o caçador a frecha:
Não faltou nume à destra; a rechinante
Cana ao cervo traspassa ilhais e ventre.
A gemer o quadrúpede, sangrado
Procura o noto asilo, e de lamentos,
505 Quase implorando, enchia alvergue e pátio.
Sílvia acode, e ferindo-se a punhadas,
Aos duros aldeãos clama socorro.
Eles (picava-os a embrenhada peste)
Saem de improviso; de nodosa estaca,
510 De fustes e tições, do que à mão tinham,
A ira os arma. Tirreu, que um roble em quatro
Rachava à cunha, respirando ameaças,
Ferra o machado, a multidão concita.

Nociva a tempo, da atalaia a Dira
515 Monta à choça, e do cume a voz tartárea(43)
Na encurvada corneta esforça e tange
Rebate pastoral: todo em redondo
Retremendo o arvoredo, a funda mata
Reboou. Longe o ouviu da Trívia o lago;
520 Branco de água sulfúrea o Nar e as fontes
O ouviram do Velino; e as mães de susto
Aos peitos os filhinhos apertaram.

Ao rouquejar da tétrica buzina,
Denso tropel bravio, armas sacando,
525 Concorre, e marcha a mocidade frígia
Do aberto acampamento em pró de Ascânio.
Não já com paus tostados nem cacheiras
Em lide agreste brigam, mas em forma,
Com ancípite ferro e espadas nuas,
530 Negra áspera seara; e o bronze às nuvens,
Do Sol desafiado, a luz dardeja:
Tal, se alvejando a onda a encrespa o vento,
Incha o mar pouco a pouco e alteia vagas,
Té que o úmido abismo aos astros sobe.

535 Cai logo na vanguarda o primogênito
Almom Tirrides: pega-se às goelas
Seta estridente, e em borbotões o sangue
Lhe inunda e embarga a voz e a tênue vida.
Entre um montão de mortos jaz Galeso,
540 Das pazes medianeiro; ausônio velho,
O mais justo e riquíssimo, greis cinco
Balantes amalhando e cinco armentos,
Em lavrar cem arados empregava.

Alecto, pois que o marte igual pendia
545 Do êxito ufana, assim que a feroz pugna
Tinge e cruenta, funerais primícias,
Deserta a Hespéria, e sublimada às auras
Canta a Juno vitória em tom soberbo:
“Temos no auge a discórdia; agora dize
550 Que se congracem, que alianças travem,
Quando os Teucros macula ausônio sangue.
Mais farei, se mo aprovas: com rumores
Posso as comarcas abrasar no insano
Furor da guerra, que ajudá-la venham;
555 Armas espalharei pela campanha.”
Juno atalha: “O terror e a fraude abunda:
Plantada a rixa, mão por mão combatem;
Já funestou fortuna o primo encontro.
Os himeneus dest’arte o guapo filho
560 D’Acidália festeje e o bom Latino.
Que a soltas(44) vagues pelo sumo Olimpo
Não te permite o padre soberano:
Despacha-te, que o mais fica a meu cargo.”

A tais palavras, do sidéreo assento,
565 Angui-estalantes asas desferindo,
Para o Cocito a Erínis se encaminha.
Lugar nobre e famoso, o vale Ansancto,
Há da Itália no centro, ao pé de uns montes:
Floresta escura o fecha, e entre penedos
570 Em vórtices fragosa uma torrente
Pelo meio murmura. Aqui, do torvo
Plutão respiradouro, antro medonho
Profunda, e as fauces pestilentes mostra
Do fendido Aqueronte ampla voragem,
575 Onde sumiu-se a Fúria, o céu e a terra
Do seu bafejo odioso aliviando.

Nem menos a Satúrnia a luta azeda.
Rui do conflito a multidão campestre,
Morto Almom e deforme de Galeso
580 Carregando a cabeça, e implora os deuses
E a Latino conjura. No flagrante
Chega Turno, e do incêndio e mortandade
Exagera o temor; que iam bani-lo,
E misturar no trono a raça frígia.
585 Aqueles cujas mães, de Baco atônitas,
Por ínvias selvas em coréias pulam,
De Amata ao grave nome exacerbados,
Marte infando a incitar, a l’arma gritam,
Contra o fatal augúrio e contra os numes,
590 E os altos paços à porfia cercam.
Tem-se o rei qual marítimo rochedo;
Rochedo que na mole se sustenta,
Se em ruidosa procela as ondas ladram:
Batida alga flutua e bolha a espuma,
595 E em vão pedras em roda e escolhos bramam.
Vencer pois tal cegueira não podendo,
Que ia tudo a sabor da fera Juno,
O éter puro atestando: “Ah! fado, exclama,
A tormenta nos força irresistível.
600 Com sacrílego sangue, ó miserandos,
Vosso erro pagareis: maldição, Turno,
Triste pena te espera; e aos deuses tarde
Suplicarás. À entrada já do porto,
Repouso achei; de funerais ditosos
605 Só me despojarão.” Nisto, encerrou-se,
E do governo as rédeas abandona.

Costume era do Lácio, e que adotado
Na Albânia o guarda a portentosa Roma,
Lagrimáveis batalhas quando apresta
610 Ao Geta, Árabe, Hircano, ao Indo eôo,
E reconquista aos Partos as bandeiras,
Duas portas haver, bélicas ditas,
Que santo horror defende e o cru Mavorte:
Barras, ferrolhos cem de bronze as trancam;
615 Sempre ao limiar de sentinela Jano.
Se o decreta o senado, insigne o cônsul
Com trábea quirinal, gabino cinto,
Os umbrais descerrando rangedores,
Proclama a guerra; guerra os moços bradam,
620 Roucas éreas trombetas ressonando.

Cabia-lhe aos Troianos declará-la,
Volver os tristes gonzos; mas Latino
Se abstém, recusa o infausto ministério,
E se oculta na treva. Então, baixando,
625 A rainha Satúrnia arromba mesma
As lentas portas, a couceira quebra
E os ferrados batentes desmantela.

Arde a quieta Ausônia, e armas já pede:
Qual a pé campear, qual furioso
630 Quer trotar em corcel pulverulento;
Qual dardos unta e limpa, adargas lustra,
Machadinhas amola e partasanas:
Praz desfraldar pendões e ouvir as tubas.
Malham cidades cinco e forjam lanças,
635 Atina e Ardéia possantes, Crustumério,
Tibur altiva, Antemnas torreada;
Cavos elmos estofam, tecem tarjas
De vergas de salgueiro, finas grevas
De argênteos fios, êneos corsoletes:
640 Retemperam na frágua o pátrio alfanje:
Assim trocou-se o amor da foice e relha!
Transmite o dado a senha, os clarins fremem:
Quem o casco arrebata, ou rinchadores
Brutos junge, ou rodela e auritrílice
645 Loriga veste, ou cinge a fida espada.

O Helicon, musas, franqueai-me: ousados
Reis vou cantar, as tropas que os seguiram
Cobrindo os campos; que armas flamejaram,
Que heróis já n’alta Itália floresceram.
650 Como lembradas sois, contai-mo, ó divas:
Mal nos roçou leve aura do passado.

O ateu cruel Mezêncio é quem primeiro
À testa marcha das falanges tuscas.
Lauso o acompanha, que excedia a todos,
655 Salvo o garboso Turno, em gentileza;
Lauso, grã picador, monteiro exímio
Conduz em vão de Agila mil guerreiros;
Digno de se gozar do pátrio reino,
E de outro genitor que não Mezêncio.

660 Após, carro e frisões da palma ornados,
De Hércules belo ostenta o belo filho
Aventino, e em cem cobras traz no escudo
A hidra a pulular, brasão paterno:
Réia ministra a furto na Aventina
665 Mata o pariu; mulher que ao deus juntou-se,
Depois que, extinto Gerião, tocando
Laurentes lavras o Tiríntio ovante,
Lavou no tusco rio iberas vacas.
Arma os seus de doloso estoque e pilo,
670 De roliço espontão, sabelo pique;
Embraça, a pé, leonino ingente espólio,
De alvos dentes enrola a hirsuta juba
Ao morrião: tal entra horrendo os paços,
Pelos ombros traçado o hercúleo manto.

675 Catilo e o bravo Coras, dos tibúrcios
Muros, ditos assim do irmão Tiburto,
Gêmeos de sangue argeu, por densos dardos
Vêm correndo postar-se na vanguarda:
Qual nubígenas rápidos Centauros
680 Se do pico a descer o Homelo deixam
E Ótris nivoso; ao trânsito se arreda,
Com fragor do arvoredo, a basta selva.

Ceculo o autor não falha de Preneste,
Que em pegulhal montês e ao lar achado,
685 Rei prole de Vulcano hão crido as eras.
Rústica turba o escolta: os que as alturas
Cultivam prenestinas e a junônia
Gábios, o frígido Ânio, hérnicas penhas
De arroios orvalhadas; os que pasces,
690 Tu Amaseno pai, tu rica Anâgnia.
Carro, cota ou broquel, não soa a todos:
Uns lívidas espalham plúmbeas pelas,
Quais dois chuços empunham; fulvos gorros
De pele usam lupina; nus da esquerda,
695 Calçam de crua alparca a destra planta.

O neptúnio Messapo cavaleiro,
A quem prostrar não pode ou ferro ou fogo,
Chama a conflito os povos ociosos,
Instaura as armas. Fesceninas turmas
700 E Equos Faliscos, os que o monte e lago
Cimínio e as rochas do Soracte habitam,
Flavínios agros e capenos lucos,
Marchando em pelotões, seu rei cantavam:
Como, ao soltarem coli-longos cisnes,
705 Do pasto à volta, aos ares seus gorjeios,
O Caístro e a pulsada Ásia palude
Ressoa ao longe. Multidão confusa,
Ninguém julgara exército arnesado,
Mas, do alto pego às praias compelida,
710 Aérea nuvem ser de roucas aves.

Sangue antigo sabino, eis Clauso, donde
A tribo cláudia propagou no Lácio,
Dês que em parte aos Sabinos se deu Roma;
Valendo um batalhão, comanda imensos:
715 Quirites priscos, de Amiterno as hostes,
As de Ereto e olivífera Motusca;
Dos rosais do Velino e os de Nomento,
Dos penhascosos Tétrica e Severo,
De Fórulo e Caspéria; os que do Himela,
720 Tibre e Fabaris, bebem; quantos manda
Horta, o latino termo e Núrsia fria;
E os que o Alia entrelava, infausto nome!
Tantas no vítreo Líbio as vagas rolam,
Se Orion cruel se afunde em onda hiberna;(45)
725 Tantas o estivo Sol praganas torra,
Do Hermo ou de Lícia em lourejantes campos.
Do tropel treme a terra, escudos tinem.

O agamenônio Haleso, a Tróia infesto,
Ata ao carro os frisões, mil feros povos
730 Leva a Turno: os que o Mássico, mimoso
De Baco, à enxada cavam; Sedicinos
De beira-mar; serranos que expediram
Auruncos padres; íncolas de Cales,
Do vadoso Volturno os arraianos,
735 O Satículo acerbo, as oscas turmas.
Presa a lento flagelo, aclide jogam
Cilíndrica; na sestra, os cobres adarga;
Com terçado falcato ao perto ferem.

Nem te olvide o meu verso, Ebalo, que houve
740 Telon se afirma de Sebetis ninfa,
Já velho em Caprea os Télebas regendo.
Da herança não contente, o filho tinha
Muito à larga os Sarrates submetido,
E as sárnias frescas várzeas, os de Rufras,
745 De Batulo e Celena, e os que eminente
Olha Abela pomífera: catéias,
À teutônica, vibram; capacetes
De cortiça de sôvero os defendem;
Luz bronzeado broquel, luz brônzea espada.

750 Também te apronta a montuosa Nersas,
Famígero e pugnaz, próspero Ufente;
E, à caça endurecido, hórrido Equícola
De áspera gleba te obedece: armado
O chão labora, de rapina vive,
755 E sempre folga das recentes preias.

Té de Arquipo seu rei por ordem, o elmo
Lhe ornando fausta oliva, o dos Marrúbios
Sacerdote marchou, fortíssimo Umbro;
Que hidras, víboras de hálito empestado,
760 Afagando e a cantar adormecia,
Curava a mordidura, e as amansava:
Mas contra a choupa do rojão troiano
Suporíferos cantos nem potentes
Sucos dos marsos montes lhe valeram.
765 A ti de Angícia bosque, a ti choraram
Do Fucino o cristal e o fluido lago.

De Hipólito eis a prole, o estrênuo Vírbio
Que Arícia a mãe luzido o envia à pugna,
Do luco e, fonte Egéria, onde o criaram
770 E a placável Diana ara tem pingue.
Por dolos da madrasta, assim que Hipólito,
Dos medrosos frisões rojado, expia
Com sangue o erro paterno, é voz que às auras
E ao conspecto celeste o revocaram
775 Peônias ervas e amorosa Délia.
De que um mortal das sombras ressurgisse
Indignado o Tonante, o raio acende,
No Orco e Estige o Febígena despenha
Que descobriu tal arte e medicina.
780 A alma Trívia em secreto à ninfa Egéria
Hipólito encomenda, por que obscuro
E solitário em ítala floresta,
Mudada em Vírbio o nome, os dias passe.
Do bosque ou templo a Febe consagrado
785 Os cavalos cornípedes se expulsam,
Dês que, espantados por marinhos monstros,
Na praia o dono e o coche espedaçaram.
Árdegos brutos, não obstante, o filho
Exerce e à guerra precipita o carro.

790 De ponto em branco, à frente, na estatura
Formoso Turno sobreleva a todos.
O elmo sustém, cristado com três jubas,
A Quimera a expirar etnéias chamas:
Ignívoma, eferada, ela mais brame
795 Quanto em mais sangue o ataque se encruece.
Io em ouro entalhada (ilustre assunto)
Já peluda novilha, alçando os cornos,
O éreo pavês lhe timbra assacalado;
Argos vigia a moça, e entorna o rio
800 Da urna Inaco pai. Chuveiro espesso,
Ondeia a infantaria, e abroqueladas
Auruncas tropas, Rútulos, Sacranos,
Acaica estirpe, Sículos antigos,
Mais os Lábicos de pintado escudo:
805 Que, ó Tibre, aram-te os bosques e a numícia
Riba sacra; o Circeu cabeço rasgam
E as rútulas colinas; veigas onde
Jove Anxuro preside, com Ferônia
Amiga dos jardins; por onde a negra
810 Satura espraia, e vai gelado aos mares
Por imos vales desaguar o Ufente.

Eis Camila belaz, que o volsco impera
Bando eqüestre e o de pé de arnês lustroso.
Dura a virgem no prélio, em roca ou vimes
815 De Minerva não punha as mãos femíneas.
Pelo agro intacto, mais veloz que o vento,
A voar não lesara a tenra espiga;
Suspensa o pego túmido correra,
Sem que molhasse a desenvolta planta.
820 Dos tetos, ao passar, do campo os jovens
E esparsas mães, de hiante boca admiram
Como a grã vela e enfeita os ombros lisos,
Como as tranças lhe prende áurea fivela,
Como o lício carcás pendura, e brande
825 De enxerido ferrão mírteo cajado.

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eneida de virgílio:obra completa(6)

LIVRO VI

 

Assim pranteia, e às naus demite as rédeas;
Vai-se a Cumas eubóica e manso aborda.
Tenaz dente as fundeia; ao largo aproam,
E as curvas popas a ribeira cobrem.
5 Moços na praia hespéria ardidos saltam:
Quem sementes de chama em siliciosas
Veias cata; quem, denso alvergue às feras,
Esmoita a selva, e os rios mostra achados.
O piedoso varão penetra o alcáçar
10 Em que Apolo preside, e as profundezas
Onde à horrenda Sibila ânimo e alento
O délio vate inspira e abre os futuros.
Sobem da Trívia os lucos e áureos tetos.

Dédalo, é fama, dos minóios reinos
15 Fugindo, ao céu fiou-se em lestes penas,
Por via insólita ao gelado Arcturo
Audaz navega; e alfim na cidadela
Calcídica assentando, os remos de asas
Te sagra, ó Febo, e erige um bravo templo.
20 Nas portadas insculpe o morto Andrógeo,
E em castigo os Cecrópidas multados
Ah! na perda anual de sete filhos;
A urna está do sorteio. Ao mar soberba
Corresponde fronteira a gnósia terra:
25 Aqui do touro o amor cruel, e ao furto
Submetida Pasife, e a raça mista
Pôs, monumentos da nefanda Vênus,
Minotauro biforme; aqui da estância
Afadigosa o enredo inextricável,
30 Dolos que, da princesa apaixonada
Com pena, o mestre solve, e em tais desvaires
Cegos vestígios por um fio rege.
Não fosse, Ícaro, a dor, nessa obra-prima
Teu caso entrara: foi gravá-lo em ouro,
35 Duas vezes falece a mão paterna.
Mais perlustraram tudo, se expedido
Não regressasse Acates com Deifobe
De Glauco, a Febo e Apolo consagrada;
Que se endereça ao rei: “Não mais, Enéias,
40 De espetáculos basta; ora te cumpre
De intacta grei matar novilhos sete,
Sete ovelhas do rito.” E ao santuário,
Aviado o sacrifício, os Teucros chama.

Rasgou-se antro espaçoso em roca eubéia,
45 Com cem bocas, cem largas avenidas,
Donde oráculos cem troa a Sibila.
Já no limen(32) a virgem: “Toca os fados
A interrogar; o deus, eis o deus” clama.
Súbito, às portas, o semblante muda,
50 A voz não uma, não composta a coma;
Rábido(33) incha-lhe o peito, arqueja e ofega;
Maior parece, em tom mortal não soa,
Quando a bafeja de mais perto o nume:
“Tu cessas, Frígio, de orações e votos?
55 Cessas? pois de outro modo a casa atônita
Não se escancara.” Disse, e emudeceu.
Aos Teucros frio horror nos ossos côa,
E orou do íntimo o rei: “Febo, a quem sempre
D’Ílio o mal consternou, que a tróica frecha
60 De Páris dirigiste contra Aquiles,
Tua guia, o pélago arrostei que abrange
Terras tais, e os Massilos tão remotos,
E o dilatado chão que as Sirtes orlam:
Já que aportámos na arredia Itália,
65 De Pérgamo a desgraça aqui termine.
Vós ó deuses e deusas, que empecera
Dardânia e a glória sua, é justo que ora
Todos poupeis a geração dos Frígios.
E tu me dá, santíssima vidente,
70 (O indevido não peço) em Lácio os numes
Nossos fixar e os vagabundos lares.
De mármore maciço a Febo e à Trívia
Templos e festas criarei febéias.
A ti no reino espera-te um sacrário,
75 Que te guarde as respostas e os arcanos
Ditados, alma vate, à gente minha;
Hei de eleitos ministros dedicar-te.
Não confies, to rogo, às folhas versos,
Nem dos ventos ludíbrio aos ares voem:
80 Tu mesma os cantes.” À oração pôs termo.

Torva e indócil ao deus, por sacudi-lo
Do ansiado peito, a debacar braveja:
Tanto ele mais fatiga a boca irosa,
E o fero coração lhe oprime e doma.
85 Eis do antro os cem portões, de si patentes,
Vaticínios(34) despedem pelas auras:
“Oh! quite enfim do pego, em terra a transes
Mais graves te prepara. Hão de ir os Troas
A Lavino, sossega; antes contudo
90 Lá não ter ido: guerra, hórrida guerra,
Do sangue o Tibre inchado espumar vejo.
Nem dórios arraiais, nem Xanto ou Simois,
Te faltarão; também de deusa filho,
Há no Lácio outro Aquiles; nunca os Teucros
95 Tenaz deixará Juno. A quem, na angústia,
A que ítalas nações, a que cidades
Não tens de suplicar! E sempre a causa,
Uma hóspita mulher, um toro externo.
Tu não fraqueies; mais que a sorte ousado,
100 Resiste aos males. De livrar-te o meio
Te abre graia cidade, o que nem pensas.”
Do ádito canta ambages tais medonhos,
Muge na gruta, o vero embrulha em trevas:
À furibunda os freios bate Apolo,
105 N’alma excitada estímulos vertendo.

Muda a Sibila, mais quieta a sanha,
Começa o teucro herói: “Nenhum trabalho,
Por novo e inopinado, estranho ó virgem:
Um por um antevi, ponderei todos.
110 Pois que é do inferno a entrada e aqui, me afirmam,
Do revesso Aqueronte o lago obscuro,
Ir, só te imploro, ao caro pai me caiba:
Mostra-me e patenteia as sacras portas.
Eu, nestes ombros, dentre a chama e infindas
115 Chuças hostis o arrebatei, salvei-o;
Ele enfermo comigo afrontou mares,
O pélago aturava e o céu minazes,
Com mais vigor do que à velhice é dado.
Requerendo ordenou-mo, e humilde que hajas
120 Dó do filho e do pai deprecar venho:
Tudo se te faculta; Hécate embalde
Não te propôs, ó casta, ao luco averno.
Se Orfeu pôde avocar da esposa os manes,
Em trácia acorde cítara fiado;
125 Se, com alterna morte o irmão remindo,
Pólux tanto essa via anda e desanda,
(Por que a Teseu citar e o grande Alcides?)
Eu provenho também do rei supremo.”
Dest’arte orava, às aras apoiado;
130 E ela acrescenta: “Anquísea e diva estirpe,
Descer a Dite é fácil; dia e noite
Seus cancelos o Tártaro franqueia:
Tornar atrás e à luz, eis todo o ponto,
Eis todo o afã. Do reto Jove amados,
135 Ou por virtude ardente ao céu subidos,
Poucos, filhos dos deuses, o alcançaram:
Medeia um bosque, e sinuoso em torno
Enfuscado o Cocito a espreguiçar-se.
Mas vezes duas se tranar a Estige
140 E a lôbrega morada ver cobiças,
Se tanto folgas do ímprobo trabalho,
Ouve e à risca o executa. Árvore opaca,
Dicado à inferna Juno, oculta um ramo
N’haste e nas folhas áureo: em vale umbroso
145 O encobre e fecha a denegrida selva.
Sem que destronque o aurícomo rebento,
No Orco ninguém se interna: é dom que exige
E instituiu Prosérpina formosa.
Um fora, brota o novo, e do luzente
150 Metal frondesce a vara. Em alto a mira,
Indaga, e achando respeitoso o apanhes;
Que, a te ser destinado, ele espontâneo
Logo te cederá; senão, com força
Nem duro ferro poderás sacá-lo.
155 Porém, desta consulta enquanto pendes,
Ai! mal sabes que as naus te incesta agora
De amigo o exânime o feral cadáver:
No sepulcro o aposenta; em negras reses
Encete a expiação. É como aos vivos
160 O ínvio reino sombrio e estígios lucos
Hás de avistar.” Calou-se, e os lábios cerra.

De olhos fixos, tristonho, eventos cegos
A cogitar, a gruta Enéias larga:
Trilhando-lhe a pegada, o fido Acates
165 Volve iguais pensamentos. Sobre o sócio
Que, ao dizer da Sibila, enterrar devem,
Travam conversação comprida e vária;
Té que a Miseno vêem de indigna morte
Jazer em seco; o Eólides Miseno,
170 Sem superior com bronze alticanoro
No incitar os varões e acender Marte,
Pajem de Heitor, pugnava à sua ilharga,
No lítuo singular, na lança exímio.
Extinto o grande Heitor às mãos de Aquiles,
175 O fortíssimo herói juntou-se a Enéias,
Não somenos senhor. Mas quando, enchendo
Acaso o mar com ressonante concha,
Louco a tanger os deuses desafia,
À falsa fé, de inveja entre uns penedos
180 O afogou (se é de crer) Tritão nas vagas.
Todos, mormente o pio Enéias, fremem,
Cercam-no pranteando; e obedientes
À douta guia, ao céu funérea pira
D’árvores cumulada erguer porfiam.
185 Covil de feras, velha mata exploram:
Prostra-se o pinho alvar, grita o machado
No sobro rijo, nas fraxíneas traves;
O fendível carvalho as cunhas racham;
Vêm dos montes tombando ingentes ornos.
190 Primeiro no trabalho, exorta os sócios,
Dos mesmos instrumentos se arma Enéias;
E a mata olhando imensa, mil cuidados
No ânimo revolvendo, em preces rompe:
“Oh! se nesta espessura esse áureo garfo
195 Deparássemos nós; como ai! tão certa
Foi contra ti, Miseno, a profecia.”

Inda falava, e ante ele duas pombas
Do céu voando na verdura pousam.
As aves maternais o egrégio cabo
200 Conhece e brada: “Se há caminho, ó guias,
Inclinai vosso adejo aos bosques onde
Rico sombreia o ramo ao pingue solo!
No lance, ó diva mãe! não me faleças.”
Então retém-se a observar das pombas
205 A tendência e os sinais. Pascendo aos vôos,
Só quanto a vista alcance dos que as seguem,
Elas avançam: perto das gargantas
Do pestilente Averno, alando-se ambas,
Sulcam o etéreo fluido, e enfim descaem
210 Na dúplice anelada árvore, donde
Reluz discorde brilho entre a ramagem.
Qual visgo sói, no alheio pé gerado,
Verdecer e enramar-se ao brumal frio,
Nos troncos enrolando os cróceos gomos;
215 Na enzinha opaca tal vegeta esse ouro,
E a folheta crepita à branda aragem.
Dele, inda assim tardio, ávido Enéias
Pega, rápido o quebra, e à vate o leva.

Não menos a Miseno os seus lamentam,
220 Na praia honras prestando à ingrata cinza.
Formam de achas de roble e píceas teias,
De atras folhas tecida, a excelsa pira;
Põem-lhe adiante exequiais ciprestes,
No alto a decoram de fulgentes armas.
225 Aquecem caldeirões que em ondas fervem,
Lavam-lhe o frio corpo, e todo ungido,
A gemer e a chorar, no esquife o deitam;
Vestem-lhe o usado purpurino manto:
Outros o ingente féretro carregam,
230 Triste mister, sustendo, ao modo avito
Averso o rosto, os sotopostos fachos;
Conjunto na fogueira o incenso fuma,
Viandas, copas de infundidos óleos.
Com vinho, assente a cinza e queda a chama,
235 O borralho poroso e o resto apuram;
Corineu colhe a ossada em éneo cado:
De fausta oliva um galho ensopa n’água,
Três vezes borrifando asperge os sócios,
Três profere as novíssimas palavras.
240 Da campa sobre a mole impôs Enéias
O remo do varão, o arnês e a tuba,
No monte Aéreo, que é Miseno agora,
E há de este nome conservar perene.

Isto feito, prossegue e as ordens cumpre.
245 De amplo hiato espelunca alta e lapídea,
Fusca selva a munia e lago imano,
Sobre o qual transvoar impune as aves
Nunca puderam, tal das fauces turvas
Odor exala pelo azul convexo;
250 Donde em grego o lugar chamou-se Aornon.
Quatro almalhos ali tergi-nigrantes
A vate expõe, nos testos vinho entorna,
Entre os cornos tosquia, e em sacro fogo
Lança em primícia o pêlo; vocifera
255 Hécate no Érebo e nos céus potente.
Facas ao sangradouro, alguns em taças
Cruor tépido aparam. Mesmo à espada
Enéias das Eumênides à madre
E à Terra irmã cordeira preta imola,
260 E a ti fere, Prosérpina, uma toura;
Alça da Estige ao rei noturnas aras;
Em holocausto as vísceras bovinas,
Derrama azeite no debulho ardente.
Eis sob os pés, ao primo albor do dia,
265 A remugir o chão, mover-se os cumes
Do arvoredo; e na sombra, ao vir a deusa,
Surde um canino uivar. “Profanos, longe,
Oh! longe deste bosque, a vate exclama:
Tu, Frígio (aqui denodo, aqui firmeza),
270 Desembainha o ferro, a estrada invade.”
Nisto, furiosa entranha-se na gruta;
Com não tímido passo a iguala Enéias.

Deuses! que império sobre as almas tendes,
Caladas sombras, Flegetonte e Caos,
275 Taciturnos vastíssimos contornos,
Dai-me o que ouvi narrar, dai-me os arcanos
Do abismo descoser caliginoso.

D’erma noite iam sós no escuro envoltos,
Por vã plutônia estância e vácuos reinos,
280 Qual se anda à luz falaz da incerta Lua
Por matas, quando Jove embrusca o pólo
E às coisas tira a cor tristonha treva.

No vestíbulo mesmo, às fauces do Orco
Se aninha o ultriz Remorso, e o Luto e o Medo;
285 Pálidos Morbos e a Velhice triste, 
Má conselheira a Fome e a vil Penúria,
Visões de horror; da mente os ruins prazeres,
E a Morte e a Lida, e o Sono irmão da Morte:
Defronte a letal Guerra, e em férreo catre
290 As Fúrias, e a Discórdia insana que ata
Cruentos nastros na vipérea grenha.
No centro, anosos braços largo e opaco
Olmo expande, e nos ramos se diz moram
A cada folha os sonhos vãos pegados.
295 Monstros mil aos portais, biformes Cilas,
Os Centauros, as Górgonas se alojam,
Mais o animal de Lerna horri-stridente,
E o fantasma tricórpore e as Hárpias.
Eis de pavor o gume saca Enéias,
300 Tem-se à espera; e, se a mestra não lhe adverte
Que eram sem corpo avoejantes vidas
E ocas formas sutis, ele investira
E de aço inútil açoitara sombras.

Daqui parte o caminho do Aqueronte,
305 Que em funda bolha férvida voragem,
E ao Cocito arremessa areia e lodo.
Fero esquálido arrais guarda estas águas,
Caronte hediondo, cuja barba espessa
Branqueia inculta, os lumes lhe chamejam,
310 E aos ombros suja capa em nó lhe pende:
Puxando à vara, ou mareando as velas,
Em cimba enfarruscada os vultos passa;
Velho, mas como um deus, robusto e verde.
Tropel confuso às margens se arremessa:
315 Bravos guerreiros de alma luz privados,
Varões, meninos, mães, inuptas virgens,
Jovens ante seus pais à queima entregues:
Quantas no outono as despegadas folhas
Caem aos primeiros frios; ou quão bastas
320 Glomeram-se aves do alto pego à terra,
Quando além-mar a temperados climas
Gélido ano as envia e as afugenta.
No transporte rogando a preferência,
Ávidas mãos à oposta riba estendem:
325 Brusco admite o barqueiro estes e aqueles;
Muitos porém da praia arreda esquivo.
A Enéias o tumulto espanta e abala:
“Por que, ó virgem, das almas o concurso
Busca este rio? por que enxotam-se umas,
330 E o vau lívido a remo as outras varrem?”
Breve torna a longeva: “Ó nobre cabo,
Diva prole certíssima, o estagnado
Cocito vês profundo e a crua Estige,
Por quem temem faltar jurando os numes.
335 Pobre turba inumada é quanto avistas;
Caronte, o arrais; sepultos, os que embarcam.
Nem pode algum, se os ossos não descansam,
Montar a margem torva e rouca veia:
Cem anos volteando ansiosos vagam;
340 O estanque alfim rever, transpor conseguem.”

O Anquisíades pára, e a sorte iníqua
Detém-se a contemplar. Devisa(35) aflito
Mestos, sem funerais, Leucaspe e Oronte,
Chefes da lícia esquadra; os quais, de Tróia
345 Partidos, por tormentas soçobraram,
Austro n’água envolvendo a nau e a gente.
Seu piloto apresenta-se, que há pouco
Na rota líbia, enquanto observa os astros,
Da popa resvalou, foi de mergulho.
350 Na escuridão lhe grita ao lobrigá-lo:
“Que deus a nós roubou-te, ó Palinuro,
E te afundou no ponto? Nunca em falha,
Só nisto, Apolo achei, pois me cantava
Incólume n’Ausônia abordarias:
355 E ei-la a promessa!” O nauta replicou-lhe:
“Nem de Febo a cortina, ó forte Anquíseo,
Te iludiu, nem há deus que me afundasse.
Regendo o curso, ao leme eu me aferrava;
Arrancado com força, ele comigo
360 Se precipita. Aos crespos mares juro,
Nada temi por mim, senão que a tua
Nau, sem leme, sem mestre, perecesse,
Crescendo os escarcéus. Violento Noto
Me rojou pelo imenso equóreo gólfão
365 Três noites invernais: ao quarto lume
De cima de uma vaga enxergo a Itália.
Vou nadando, e em seguro já me agarro,
Grave e molhado, às quinas de um rochedo,
Quando, encontrar supondo grosso espólio,
370 Homens cruéis a ferro me acometem.
Ora o vento, a maré, me joga à praia.
Pela jucunda luz, celestes auras,
Pelo aumento de Iulo e por Anquises,
Desta ânsia me descarga: ou tu me enterra,
375 Que o podes indo a Vélia; ou, se há maneira,
Se a genetriz, invicto rei, t’a indica
(Nem creio navegar desassistido
Queiras tais rios e a palude horrível),
Dá-me a destra e me leva pelas ondas;
380 Do remanso da morte eu goze ao menos.”
“Donde, o atalha a Sibila, ó Palinuro,
Donde esse ímpio desejo? não mandado
A severa corrente olhar das Fúrias,
Traspassando insepulto a estígia borda!
385 Não penses em dobrar com rogo os fados.
Mas por conforto e alívio atento escuta:
Dessa comarca, instados por assombros,
Hão de os vizinhos sufragar teus ossos,
Com dons solenes tumular-te, e o sítio
390 Terá de Palinuro o nome eterno.”
Deste nome se paga, e um tanto as penas
Do coração modera e desafoga.

Marchando avante, às águas se apropínquam.
Do lago o arrais, que os avistou no mudo
395 Bosque andando, à ribeira encaminhados,
Os salteia e os exprobra: “Tu, quem sejas,
Nstas margens armado o que pretendes?
Nem mais um passo; aqui somente as sombras
E a soporosa Noite e o Sono habitam:
400 Os vivos não transporta o casco estígio.
Nem me gabo de haver tomado Alcides,
Piritôo e Teseu, bem que invencíveis
Prole fossem divina: aquele trouxe
Dos pés do trono o guardião do inferno
405 Tremente e agrilhoado; ao régio toro
Subtrair a senhora os dois tentaram.”
Curto responde a Anfísia: “Tais insídias
Não temas; estas armas não te ofendem:
No antro ladrando eterno, exangues sombras
410 Assuste o grã porteiro; ao tio casta,
Recatada Prosérpina se encerre.
Tão guerreiro quão pio, ao Orco Enéias
Desce ante o pai. Se a filial virtude
Não te abranda e comove, ei-lo (descobre
415 Na veste o ramo oculto), reconhece-o.”
De ira as entranhas túmidas se aplacam;
Nem mais tugiu. Da haste fatal mirando
O venerável dom, não visto há muito,
Volta a cerúlea popa e à riba encosta.
420 Abancadas ao longo afasta as almas,
Faz praça, e a bordo o capitão recebe.
Ao peso a barca nas costuras geme,
Rimosa da lagoa aos sorvos bebe;
Além depõe a salvo a guia e o Frígio,
425 Em morraçal verdoso e limo informe.
Com trifauce latir Cérbero ingente,
Deitado em cova oposta, o reino atroa.
Seus serpentinos colos já se erriçam;
Lança-lhe a vate um sonorento bolo
430 De mel e confeições, que, as três gargantas
Escachando glotão, raivoso engole;
E, os costados em terra, entorpecido,
Por toda a gruta o corpo enorme estira.
Sopito o monstro, a entrada ocupa Enéias,
435 E lesto evade a irremeável onda.

Logo se ouve ao limiar vagido e choro,
Tenros ais dos que ao seio em que mamavam
Arrebatou, privou do doce alento,
Imergiu dia infausto em luto acerbo.
440 Por crime falso à morte os condenados
Estão perto. Os lugares não se assinam
Sem sortes, sem juiz: rodando a urna,
Chama ao silente povo e inquire Minos,
E das vidas conhece e dos pecados.
445 Cá vizinham soturnos(36) os que, insontes
A luz odiando, as almas desataram,
Vítimas do suicídio. Oh! quanto agora
Prefeririam padecer no mundo
Cru trabalho e pobreza! Há lei que o veda,
450 E, em voltas nove circunfusa a Estige,
Triste e inamável, os refreia e prende.

Não mui distantes, os lugentes campos
(É seu nome) estendidos se dilatam;
Onde os que empeçonhou de amor a febre
455 Mirtedo cobre de secretas sendas,
Nem da paixão tirana a morte os livra.
Lá Prócris, Fedra, Erífile passeia,
Mesta do filho atroz mostrando os golpes;
Também Pasife, Laodâmia e Evadne;
460 Cênis, de fêmea transformada em homem,
Por fadário a seu sexo reduzida.
No bando, fresca a chaga, errava a Tíria
Nos desvios da selva: assim que Enéias
Ao pé chegou no escuro a distingui-la,
465 Qual do mês no começo alguém nas nuvens
Apontar vê Lucina ou cuida vê-la,
Meigo e amoroso lagrimando fala:
“Infeliz Dido! o núncio não mentiu-me,
Desesperada a ferro te finaste!
470 E autor eu fui! Rainha, aos céus to juro,
No imo centro se há fé, larguei teu porto
A meu pesar: forçaram-me os supremos,
Que, no império da noite me afundando,
Por brejos, por tojais, a andar me obrigam;
475 Nem cri tamanha dor causar partindo.
Tu foges? tu me esquivas? tem-te; os fados
Este último colóquio nos concedem.”
Tal a Dido, que irosa e torva o encara,
Embrandecia o herói com pranto e mágoas:
480 Ela aversa no chão pregava os olhos;
Nem mais seu rosto à prática se move
Que dura sílice ou marpésia rocha.
Infensa escapa-se, e em retiro umbroso
Do marido Siqueu se abriga ao peito,
485 Que terno corresponde a seus cuidados.
Longo trato, a chorar o injusto caso,
Compungido e saudoso o Teucro a segue.

Vão por diante; as veigas já pisavam
Só de claros guerreiros freqüentadas.
490 Aqui Tideu, Partenopeu famoso,
Adrasto ocorre de palente imagem.
Aqui, mortos no prélio e tão carpidos,
Em fileira os Dardânidas encontra:
Suspiroso a Tersíloco e Medonte,
495 Glauco e os três Antenóridas contempla,
E a Políbetes consagrado a Ceres,
E Ideu que inda meneia e o carro e as armas.
À destra e à sestra as almas se apinhoam:
Não basta olhá-lo, não; retê-lo agrada,
500 Achegar-se e indagar da vinda as causas.
Logo que, pela treva o arnês fulgindo,
O avistam graios cabos e as falanges
Agamenônias, trépidos recuam:
Uns, como quando aos barcos se acolheram,
505 Costas viram; no erguer a voz sumida,
A alguns na boca hiante o grito morre.

O Priâmeo Deífobo entre estes anda,
Lacero enormemente o corpo e a cara,
De beiços, mãos e orelhas cerceado,
510 E de um gilvaz deforme o nariz troncho.
Com vergonha o suplício infame encobre;
E a custo o reconhece o noto amigo:
“De Teucro ó sangue ilustre, armipotente,
A quem, Deífobo, tal crueza aprouve?
515 Quem tanto ousou? Na noite ouvi suprema
Que, de matar cansado, sucumbiras
Confundido no vasto morticínio.
No Reteu vezes três chamei-te a vozes,
Vão túmulo erigindo; que o teu nome
520 E armas protegem; nem te achei, nem pude
No pátrio chão depor-te em me ausentando.”

“Nada omitiste, o Priamides clama;
Tudo a Deífobo e aos manes seus pagaste.
Nestes males, amigo, me abismaram
525 Da Lacena o flagício e o meu destino:
Esta a memória que de si deixou-me.
Soubeste (e há quem se esqueça(37)) em gostos falsos
Passada aquela noite. O fatal bruto
Quando, prenhe de armada infantaria,
530 Árduos muros saltou; fingindo coros,
Ela as Frígias guiava em torno às orgias;
E, entre as evantes manejando um facho,
Do alto castelo os Danaos convidava.
No tálamo infeliz me deito, opresso
535 De pesadume e lida; e caio em manso
Letargo, semelhante ao sono eterno.
Põe-me a guapa consorte as armas fora,
E até da cabeceira a fida espada;
A Menelau acena e as portas abre;
540 Julgando assim mimosear o amante,
E o labéu extinguir da antiga ofensa.
Que mais? o quarto assaltam; a exortá-los
O Eólides malvado os acompanha.
Deuses! igual suplício os gregos lastem,
545 Se com justiça impreco esta vingança.
Mas vivo, eia também, que urgente caso
Te trouxe cá? dos manes foi capricho?
Mando celeste? por que azar à estância
Vens túrbida e funesta, ao Sol negada?”

550 Febo em rósea quadriga o meio do eixo
Pelo éter já transpunha, e em tais colóquios
Ia-se o tempo dado; a companheira
Em resumo os adverte: “Avança, Enéias,
A noite, e em choro as horas consumimos.
555 Parte-se a estrada aqui: de Dite aos paços
Corre à direita, e além nos fica o Elísio;
No ímpio Tártaro, à esquerda, os maus padecem.”
Deífobo então: “Sibila, não te agastes;
Ao número me agrego, e às sombras torno.
560 Vai, glória nossa, vai; logra outros fados.”
Nisto, o passo torcendo, se retira.

Repara, e em sestra penha o herói descobre
Tartárea trimurada fortaleza,
Que rápido a rolar sonantes pedras,
565 Cingem do Flegetonte ígneas torrentes.
De inteiriças colunas diamantinas
O portão da fachada, a demoli-lo
Nem vale humano esforço, nem divino:
Férrea torre se eleva; e de atalaia,
570 Traçada opa sangüenta, sempre alerta,
Lá Tisífone o pórtico defende.
Entram ais a estrugir, do açoite os golpes;
Arrastam-se grilhões; retinem ferros.
Pára, e assombrado o estrondo haurindo Enéias:
575 “Quais as culpas? quais delas os castigos?
Explica, ó virgem: que alarido aquele?”

E a vate: “Ínclito chefe, ao justo o limen
Celeroso é vedado; mas dos deuses,
Quando Hécate prepôs-me ao bosque averno,
580 Mostrou-me os tratos, me levou por tudo.
O duríssimo Gnósio Radamanto
É quem manda; e os indaga e pune os crimes,
E a confessar constrange os que expiá-los
Para a tardia morte diferiram,
585 De os ter furtado ao mundo em vão contentes.
Ultriz, logo insultando os azurraga
Tisífone; e a chamar as outras Fúrias,
Destorce com a esquerda e assanha as cobras.”

Ei-las de par em par as sacras portas
590 No quício horríssono a ranger. “Atentas
Qual, sentada ao vestíbulo, o vigia
Medonha catadura? pois mais seva
Cinqüenta atras goelas hidra enorme
Dentro arreganha; e o Tártaro em despenho
595 Se abisma, o dobro do que a vista abrange
Desde baixo ao luzente Olimpo etéreo.
Lá fulminados os Titãs mancebos,
Filhos da Terra, nas profundas rolam.
Vi de gigante corpo os dois Alóidas,
600 Que, o céu mesmo escalando, acometeram
Derribar do seu trono o rei supremo.
Vi Salmoneu penando, que o sonido
E os fuzis do Tonante arremedara:
Tocha a brandir, em carro de dois tiros,
605 Por Élide ia ovante, e à força os povos
O adoravam por deus; com o estrupido
Dos cornípedes néscio em érea ponte
Trovões fingia e o fogo inimitável:
Júpiter, fachos não, não fúmeas tedas,
610 Sim contorce um corisco dentre as nuvens,
E em turbilhão sulfúreo o precipita.
Também da mãe comum o aluno Tício
Por geiras nove, ó pasmo! estira os membros:
Rói-lhe abutre cruel de bico adunco
615 O fígado imortal; e, esquadrinhando
Para o suplício as vísceras fecundas,
A fome ceva, no âmago se encarna; 
De renascer as fibras não descansam.
Dos Lapitas, Ixion, de Piritôo
620 Que direi, sobre os quais já já desaba
Atra iminente rocha? Ante eles brilham
Em leitos geniais pilares de ouro,
Banquetes régios de esquisito luxo:
Perto encostada, a principal das Fúrias
625 Atingir lhes proíbe as iguarias,
Surge o facho a vibrar, minaz troveja.

Quem teve ódio aos irmãos, durante a vida,
Pôs mãos nos pais, urdiu contra o cliente;
Os que amuados tesouros incubando,
630 Máxima turba, nada aos seus partiram;
Os mortos no adultério; os de ímpias armas
Sequazes, desleais contra os senhores,
No encerro a pena aguardam. Não a inquiras,
Nem que sentença ou caso os tem submersos:
635 Qual pedra ingente galga, ou de uma roda
Estreito aos raios pende; está sentado
Preso o infeliz Teseu e estará sempre;
Flégias, misérrimo a bradar nas trevas,
Nunca cessa: “Aprendei no exemplo horrível
640 Justos a ser, a não zombar dos numes.”
Este vendeu a pátria a ruim tirano;
Leis, as fez e desfez peitado aquele;
Outro invadiu nefando o leito à filha:
Réus que a tenção danada executaram.
645 Nem com voz férrea, bocas cem, cem línguas,
Pudera eu numerar da culpa as formas,
A variedade e os nomes dos castigos.”

Depois a idosa Anfrísia: “Anda, acrescenta,
Acaba a empresa, a rota apressuremos.
650 Dos Ciclopes forjados vejo os muros,
No arco da frente as portas, onde a oferta
Depor se nos prescreve.” Disse, e opacas
Vias a par correndo, o espaço vencem,
Tocam já nos batentes. Ele a entrada
655 Ocupa; e, de água viva asperso o corpo,
No frontispício o ramo à deusa crava.

Completo o rito e o voto, enfim chegaram
A jucundos vergéis e amenas veigas,
Da bem-aventurança alegres sítios.
660 Éter mais largo purpureia os campos,
Que alumia outro Sol, outras estrelas.
Em gramínea palestra alguns se exercem,
Brincam na fulva areia em luta e jogos;
Parte o compasso bate, e baila e canta;
665 E ao Trácio, que dedilha ou pulsa as cordas
Com plectro ebúrneo, em roçagante loba,
A septívoca lira acorde fala.
Nota-se ali de Teucro a estirpe egrégia,
Nados em melhor quadra heróis magnânimos,
670 Dárdano autor de Tróia, Assáraco, Ilo;
Sem dono ao longe arneses, coches vagos,
Lanças no chão pregadas, e pascendo
Livres soltos corcéis pela campanha.
De armas e carros o que em vivos tinham
675 Gosto, amor de nutrir nédios cavalos,
Esse da terra ao seio os acompanha.

Eis em festins na relva, à destra e à sestra,
Ledo peã(38) em coro outros modulam
Num láureo bosque odoro, donde acima
680 O Erídano caudal volve entre selvas.
Lá, da pátria em defesa os vulnerados,
Os sacerdotes castos, os poetas
Que o puro estro febeu não profanaram,
Os inventores das polidas artes,
685 Os que renome obrando mereceram,
A todos nívea banda as frontes orna.
Circundada a Sibila os interroga,
E a Museu mais, que os ombros sobreleva
Do atento bando em meio: “Almas ditosas,
690 E tu profeta exímio, onde, ensinai-me,
Onde Anquises reside? em busca dele
Do Érebo os grandes rios trasnadámos.”
Foi breve o herói: “Nenhum tem certo o alvergue;
Sombrios lucos, vicejantes margens,
695 De arroios frescas várzeas habitamos.
Mas, se o folgais de achar (o atalho é fácil),
Esta encosta montemos”. E, a guiá-los,
Do cume ostende as nítidas campinas,
E a virente convale os vai descendo.

700 Meditabundo Anquises, nele inclusas,
As almas resenhava a tornar prestes
À luz superna; e dos queridos netos
O número talvez recenseava,
Seus costumes e ações, fortuna e fados.
705 Quando assomava Enéias pela grama,
O ancião jubiloso alonga as palmas,
E as faces rosciando a voz desprega:
“Venceste, enfim, piedoso a dura estrada,
Como esperava! És tu, meu caro Enéias?
710 Ouvir-te os notos sons, render-tos posso!
Para agora isto os cálculos me davam:
Certo não me enganou meu pensamento.
Por que terras jogado, por que mares,
Por que perigos, filho, eu te recebo!
715 Quanto receei que a Líbia te estorvasse!”
E ele: “A tua, meu pai, a tua imagem
Cá me atrai, ocorrendo austera e assídua.
Hei no Tirreno a frota. Ao nosso amplexo
Ah! não te esquives, destra a destra unamos.”
720 E ao discursar, em lágrimas desfeito,
Foi três vezes nos braços apertá-lo,
Três abarcada a sombra se lhe escapa,
Como aragem fugaz, ligeiro sono.

Ei-lo em secreto vale descortina
725 Selva escusa de arbustos sussurrantes:
Em torno ao brando Letes, que ali mana,
Voam povos sem conto; e, qual nos prados
Se em flores várias por sereno estio
Senta o enxame e se espalha entre açucenas,
730 Do estrépito murmura o campo todo.
Ínscio, atalhado, a causa indaga Enéias,
Que rio este é, que gente em cópia tanta
Lhe enche as ribas. “Aos corpos destinados,
Disse o padre, almas são que eterno olvido
735 N’água letéia descuidosa bebem.
Muito há que tas mostrar e expor-te anelo
Dos meus a descendência; a fim que ainda
Te regozijes mais da Itália achada.”
“Pois é crível, meu pai, que almas sublimes
740 Aos tardos corpos, ressurgindo, voltem?
Oh! desejo de vida insano e triste!”

“Não fiques mais suspenso; eu vou por ordem
Cada coisa expender-te: escuta, ó filho.
Desde o princípio intrínseco almo espírito
745 Céus e terra aviventa e o plaino undoso,
O alvo globo lunar, titâneos astros,
E nas veias infuso a mole agita,
E ao todo se mistura: homens e brutos,
Voláteis gera e anima, e o que de monstros
750 O cristal fluido esconde. Há nas sementes
Ígneo vigor divino, enquanto a nóxia
Matéria o não retarda, nem o embotam
Órgãos terrenos, moribundos membros.
Daqui vêm dor, prazer, cobiça e medo;
755 E à clara alteza os míseros não olham,
Em cega negregura encarcerados.
Nem perdem, quando a luz vital se extingue,
De todo as fezes e mundanos vícios:
Muitos, concretos longamente, é força
760 Que nelas durem por teor pasmoso.
Em tratos pois seus erros pagam todas:
Qual pende aos ventos; qual da culpa as nódoas
Lava em golfo espaçoso, ou dile ao fogo.
Cada um sofre em seus manes: poucos temos
765 Ao depois do amplo Elísio as doces veigas;
Té que, perfeito o giro, a mão do tempo
Gasta o impresso labéu, depura a flama,
O senso etéreo e simples aura afina.
Voltos mil anos, as convoca em turmas
770 Ao rio um deus; por que elas, do passado
Esquecidas, rever a esfera queiram,
E entrar de novo nas prisões corpóreas.”

Cessa Anquises; a Enéias e a Sibila
Traz ao mais basto da ruidosa turba;
775 Um combro toma; donde a extensa fila
Divise dos que vêm, e a todos possa
Os traços discernir. Então prossegue:
“Eia, a glória que os Dárdanos espera,
Do ítalo tronco os descendentes nossos
780 Que a fama ilustrarão dos seus maiores,
Hei de explicar-te, e aprenderás teus fados.
Notas? próximo à luz por sorte, um jovem
Se arrima em hasta pura: às auras, misto
Latino sangue, surgirá primeiro,
785 Sílvio, póstumo teu, de nome albano;
Que tardio, a ti já na eterna vida,
Te há de Lavínia produzir nas selvas;
Rei, de reis gerador, por onde os nossos
Têm de vir de Alba-longa a ser senhores.

790 Segue-se Procas, dos Troianos honra;
Cápis e Numitor mais Sílvio Enéias,
Que te avive e recorde, e, obtendo o reino
Cobrar, te imite belicoso e pio.
Olha, os mancebos quanta força ostentam!
795 Aos que civil carvalho ensombra as testas,
Esses Nomento e Gábios e Fidenas,
Esses Colácia te alçarão nos montes,
Exímia no pudor; Pomécia altiva,
Castro d’Inuo juntando, e Bola e Cora:
800 Ermos ignotos, no porvir famosos.

Será do avô refúgio o Márcio Rômulo,
De Ília, prole de Assáraco, nascido.
Vês que o elmo lhe adornam dois cocares,
E o padre o marca de esplendor sidéreo?
805 A ínclita Roma, por auspícios dele,
O orbe, Enéias, fecunda em grandes homens,
No império há de abranger, na mente o Olimpo,
Sete montanhas numa só cidade:
Oual torreada, ufana mãe dos deuses,
810 Corre em Frígia no coche a Berecíntia,
Que cem netos celícolas abraça,
Todos em alto grau, ditosos todos.

Volve os olhos, contempla os teus Romanos.
Júlio aí tens e a geração de Ascânio,
815 Para exaltar-se ao pólo. A ti bem vezes
Eis, eis o prometido, Augusto César,
Diva estirpe, varão que ao Lácio antigo
Há de os satúrnios séculos dourados
Restituir, e sobre os Garamantes
820 E Indos seu mando propagar; dos signos
Clima além situado, além das rotas
Do ano e do Sol, por onde aos ombros vira
O celífero Atlante o eixo ardente
De estrelas tauxiado. Os cáspios reinos
825 Já do agouro da vinda se horrorizam;
E a meótica plaga e as septiduplas
Fozes do Nilo túrbidas trepidam.
Nem o que a cerva erípede varara,
Que apaziguara as matas do Erimanto,
830 E a Lerna com seu arco estremecera,
Tanto peregrinou; nem vitorioso
Líbero, que do Nisa expede os tigres,
E dobra os cumes com pampíneas rédeas.
E inda estender a fama duvidamos,
835 Ou n’Ausônia assentar nos tolhe o medo?

Quem distante apresenta insígnias sacras
E ramos de oliveira? as cãs e a barba
Do rei conheço que primeiro em Roma
Legislará, da exígua e pobre Cures
840 Mandado a celso império. Ao depois Tulo
Irá da pátria quebrantar os ócios,
Mover às armas cidadãos remissos,
E as tropas aos triunfos desafeitas.
Anco sucederá mais presunçoso,
845 Que d’aura popular já nímio folga.
Ver queres os Tarquínios, e o severo
Vingador Bruto e os recebidos feixes?
Cônsul, tomando as sevas machadinhas,
Ai dele! imolará rebeldes filhos
850 À pulcra liberdade. Vário ajuízem
Disto os vindouros; há de o amor da pátria,
E o de glória vencer desejo imenso.
Nota os Décios ao longe, os Drusos nota,
Mânlio Torquato de cruel secure,
855 E o dos pendões recondutor Camilo.

De armas fulgindo iguais, os dois que observas,
Concordes hoje quando a noite os preme,
Ah! quanta excitarão, se a luz tocarem,
Guerra entre si, que estragos, que batalhas!
860 Dos muros de Moneco e das Alpinas
Serras baixando o sogro, instructo o genro
Dos opostos Eôos! A tais guerras
Não vos acostumeis, nem volteis, jovens,
Contra o seio da pátria o esforço vosso.
865 Tu, que provéns do Olimpo, antes perdoa;
Fora os dardos arroja, ó tu meu sangue.

De Aqueus pela matança aquele insigne,
Triunfada Corinto, ao Capitólio
Há de o carro subir. Micenas e Argos
870 De Agamenom, ess”outro há de estruí-las,
A Eacide abater, do armipossante
Aquiles garfo; os Teucros seus vingando,
E de Minerva o maculado templo.
Como olvidar-te, ó Cosso, ó Catão magno?
875 Como os Gracos, e os dois, terror da Líbia,
Cipiões, raios da guerra? e na pobreza
O potente Fabrício? e a ti, Serrano,
Semeando os sulcos? Onde absorto, ó Fábios,
Me arrebatais? só tu, Máximo, aos nossos
880 Detençoso a república restauras.

Hão de outros, sim, mais molemente os bronzes
Respirantes fundir, sacar do mármore
Vultos vivos; orar melhor nas causas;
Descrever com seu rádio o céu rotundo,
885 O orto e sidério curso: tu, Romano,
Cuida o mundo em reger; terás por artes
A paz e a lei ditar, e os povos todos
Poupar submissos, debelar soberbos.”
Com pasmo ouvido: “Atenta, ajunta o velho,
890 Do espólio opimo ovante, eis vem Marcelo,
E em talhe sobrepuja os varões todos.
Turbada em grã tumulto, há de este a Roma
Cavaleiro assistir; prostrar o Galo
Revolto e os Penos, e as terceiras armas
895 Ganhadas suspender ao pai Quirino.”

Nisto, Enéias descobre um lindo moço
De fulgurante arnês, mas pouco alegre,
De rosto e olhar caído: “Ao varão, padre,
Quem acompanha? é filho? é da prosápia
900 Dele talvez? Que séquito estrondoso!
Que ar de Marcelo tem! Mas noite escura
Triste voa e a cabeça lhe circunda.”
Em lágrimas Anquises: “Não me inquiras
Dos teus o luto ingente; apenas, filho,
905 À terra o mostrará destino avaro.
A durar este dom, creríeis, deuses,
Nímio possante a geração romana.
Que ais no campo vizinho aos márcios muros!
Ou de que funerais, entre o sepulcro
910 Recente resvalando, ó Tiberino,
Testemunha serás! Nenhum mancebo
Da gente ilíaca os avós latinos
Tanto há de esperançar, nem de outro aluno
O romúleo país jactar-se tanto.
915 Ó Piedade! ó fé prisca! ó destra invicta!
Ninguém impune o arrostaria armado,
Quer a pé remetesse, quer d’esporas
Os do espúmeo ginete ilhais picasse.
Qual! jovem miserando, ásperos fados
920 Se a romper chegas, tu serás Marcelo.
Dai-me às mancheias lírios, dai-me rosas:
De esparsas flores eu cumule o neto;
A alma do vão tributo ao menos logre.”

Assim, no espaço aéreo vagueando
925 Por essas regiões, tudo examinam.
Depois que o padre o instrui, e de renome
No ardor o abrasa, as iminentes guerras
Ao filho explana, e os povos de Laurento
E de Latino a corte lhe anuncia,
930 E como o risco evite e como o sofra.

Do Sono há dois portões: saída, contam,
O córneo facilita às veras sombras;
Do que é de alvo marfim, terso e nitente,
Mandam falsas visões à luz os manes.
935 Pelo ebúrneo, entretendo a vate e o filho,
Os encaminha Anquises e os despede.
Para as naus corta, aos seus reverte Enéias.
Corre a costa e a Caieta vai direito.
Da proa botam ferro, a popa atracam.

publicado por centrallgames às 00:49
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eneida de virgílio:obra completa(5)

 

LIVRO V

 

Firme o herói já dirige ao meio a frota,
Com o Aquilão talhando as negras vagas;
Olha atrás, e da pobre Elisa os muros
Em chamas vê luzindo. A causa os Teucros
5 De tanto incêndio estranham; mas conhecem
O amor poluto como dói, o que ousa
Femínea raiva, e triste agouro tiram.

Some-se a terra aos empegados lenhos,
Tudo é céu, tudo é mar; torvo negrume
10 Sobre as cabeças borrascoso pesa,
E horrenda espessa treva enoita as ondas.
Té lá da popa o cauto Palinuro:
“Hui! que feia tormenta enluta o pólo!
Tu que ameaças, Netuno?” Disse, e a tolda
15 Manda desempachar, pôr peito aos remos;
Mete à orça, e voltou-se: “Ínclito Enéias,
Nem que mo afirme Jove, eu não prometo
C’um tempo destes abordar a Itália.
De través salta o vento, engrossa e ruge
20 Do atro Vésper, e o ar se enubla e densa.
Nem agüentar-nos nem surdir podemos:
Quer e acena a fortuna, ora de rumo
Toca a mudar. Não longe as d’Erix julgo
Fraternas praias, a fiel Sicânia, 
25 Se os remedidos astros não me iludem.”
A quem Enéias: “Claro observo há muito
Que o pede o vento, e por demais resistes:
Ronda e curva o caminho. Onde mais doce
As lassas naus refocilar me fora
30 Que no grato país do tróico Acestes,
Dos ossos de meu pai jazigo amado?”
Zéfiro, então servindo, o pano atesa:
Por vagalhões a frota ao porto voa,
E alegre enfim atraca à nota areia.

35 De excelso cume enxerga os sócios vasos,
Admira a vinda, e em pele de ursa líbia
E em dardos ouriçado, acorre Acestes.
Que em mãe teucra o gerou Crimiso rio
Não lhe esquece: os parentes que ali tornam
40 Gratulando consola, e com refrescos,
Lhana agreste abundância, acolhe e trata.

O albor os astros mal do eôo expulsa,
De toda a praia os seus convoca Enéias,
E de elevado combro assim lhes fala:
45 “Dos deuses prole, ó Dárdanos sublimes,
A anual volta os meses completaram,
Dês que as relíquias de meu pai divino,
Fúnebre altar sagrando, sepultámos.
Se não erro, eis o dia (ó céu, quiseste-o)
50 Sempre agro para mim, sempre solene.
Fosse eu nas sirtes Gétulas banido,
No seio Argólico e em Micenas preso,
Celebrara com pompa o aniversário,
De aceitos votos cumulando as aras.
55 Não, dos deuses não foi sem providência
Esta nossa arribada a porto amigo:
Junto às cinzas de Anquises nos achamos.
Eia, a memória sua honremos todos:
Peçamos-lhe bom vento, e em novos muros
60 Templos dicar me outorgue, onde cad’ano
Estes meus sacrifícios lhe ofereça.
Duas reses por nau vos dá benigno
O hóspede e sangue nosso: os pátrios divos
Convidai para a festa, e os que ele adora.
65 E, se arraiando o mundo a nova aurora,
Limpo o dia trouxer, proporei jogos,
Pela esquadra ligeira começando:
Ouem ágil tenha o pé, quem destro e forte,
Ou tire o dardo e a seta, ou mais se atreva
70 A cru cesto(24) brigar, nenhum se exima;
Devido prêmio cada qual espere.
Orai, silêncio! as frontes enramai-vos.”

Cessa, e velou-se do materno mirto;
Helimo, o ancião Trinácrio, o moço Ascânio
75 Fê-lo, e a mais juventude. Infindo povo,
Mesto cortejo da assembléia o seguem
Para o sepulcro. Ali de mero baco,
Libando em regra, jarras duas vasa,
Duas de leite fresco, cheias duas
80 De cruor sacro, e esparge rubras flores:
“Salve, disse, alma santa, ó sombra salve,
Cinzas do caro pai, que em vão recobro!
Contigo não me coube entrar na Itália,
Gozar desse fatal ausônio Tibre.”

85 Súbito, em roscas sete e sete giros,
Sai do imo penetral vultosa cobra;
Mansa o túmulo abraça, pelas aras
Lúbrica resvalando: azul o dorso,
A maculada escama em áureas pintas
90 Fulgura acesa; o arco assim nas nuvens
Toma do oposto Sol mil várias cores.
Dela Enéias pasmou. Desenrolando-se
Entre os copos(25) serpeia e lisas taças,
E, iguarias e altares delibados,
95 Busca o túmulo e inócua se recolhe.

Incerto se é de Anquises a ministra,
Se o gênio do lugar, mais fervoroso
Ao pai renova as honras: cinco ovelhas
Bimas conforme ao rito, cinco porcos,
100 Tergi-nigrantes corta almalhos cinco;
Vinhos das copas verte, e a alma evoca
E do Aqueronte os remetidos manes
Do grande genitor. Segundo as posses,
Ninguém se escusa: as aras espontâneos
105 De dons oneram, vítimas derribam;
As caldeiras em fila outros colocam,
Ou, na relva espalhados, em brasidos
Viram espetos e as entranhas assam.

Alvo o dia anelado já conduzem
110 De Faetonte os cavalos; e os vizinhos
O ruído alvoroça, e o claro nome
De Acestes: quais por ver o herói e os sócios,
Quais prontos ao certame, a praia inundam.
Láureas no médio circo se alardeiam,
115 Trípodes sacras, preciosas palmas
Aos vencedores; vestes purpurinas,
Talentos de ouro e prata, e ricas armas:
D’alto apregoa a tuba e os ludos canta.

O páreo encetam com pausado remo
120 Quatro cascos irmãos, da frota eleitos.
Mnesteu, que de Ítalo o apelido teve,
Mnesteu, de Mêmio tronco, a veloz Pristis
Com acre chusma; e a grã Quimera Gias
Manda, móbil cidade e mole imensa,
125 Que os Teucros jovens de concerto impelem,
Com três aclamações às três pancadas
Da voga desferida: autor Sergesto
Dos nobres Sérgios, na Centauro ingente;
E na azul Cila embarca-se Cloanto,
130 Que é, Romano Cluêncio, a origem tua.

Contra a espumosa praia, além demora
Penedo, que submerso, enquanto o hiberno
Cauro os astros esconde, o açoitam vagas
Túmidas: calmo o tempo, adormecido
135 Cala, e da imóvel onda um campo surge,
De apriscos(26) mergulhões jucundo pouso.
Lá de frondente azinho o padre aos nautas
Pôs verde meta, que o regresso marque,
Depois de em longo cerco o tornearem.
140 Regra os postos a sorte; e à popa alçados,
Ostro e ouro trajando, os cabos fulgem.
De choupo engrinaldada, a mais companha
Nus reluzindo em óleo ostenta os ombros:
Abancam-se, estirando ao remo os braços
145 E ouvidos ao sinal; da ânsia de glória,
Do afogo e susto, os corações latejam.
Ao clangor da trombeta, ei-los despedem;
Os ares fere a náutica alarida;
Revolto o mar ao retrair dos buchos,
150 De iguais sulcos trilhado, alveja e ferve,
Dos remos todo e dos tridentes rostros
Convulso e hiante. Em bíjugo certame,
Carros do cárcere precipitados
Na liça menos desenvolto rodam;
155 Nem tanto aurigas, aos fogosos tiros
Undantes loros sacudindo, pendem
Pronos a verberar. Do estrondo e aplauso,
Do parcial favor consona o bosque:
O eco, nas praias côncavas rolando,
160 Repulsado retumba nos outeiros.

Entre os vivas da turba, avante Gias,
Primeiro escoa-se: ao depois Cloanto,
Melhor de remo, se o pinho o retarda
Ronceiro. À cola, a Pristis e a Centauro
165 Competem no marchar: vence ora a Pristis,
Ora a Centauro; ou pares, frente a frente,
Aram com buco extenso os vaus salgados.
Aproximam-se à meta, e ao pé do escolho,
Já no perau, o dianteiro Gias
170 Grita ao piloto: “À destra assim me empuxas?
Anda a bombordo; a pá que rasque as penhas;
Abeira a praia: quem quiser se amare.”
Ordens vãs; teme o velho oculto banco,
Desvia ao largo a proa. “Onde, Menetes,
175 Onde ao revés te vais? À esquerda, às pedras!”
Gias brama e rebrama; e olha a Cloanto,
Que interno, à sestra, forcejando o aperta;
Que entre as sonantes lages e a Quimera
Desliza, e a meta súbito pospondo,
180 O pretere, e em mais fundo vai nadando.
Nos ossos arde ao moço a dor violenta,
Não sem água nas faces; e esquecido
De si, do comum risco, o frouxo mestre
D’alta popa despenha, e salta ao leme:
185 Piloto, os nautas exortando, o clavo
Às praias torce. A custo acima veio
Menetes já pesado; e, gotejando
O mádido vestido, à roca trepa,
E em seco ali se assenta. A rapazia
190 Riu do seu tombo, do mergulho e nado,
Riu das salsas golfadas que alijava.

Atrás, Mnesteu, Sergesto aqui se inflamam,
A Gias contam superar moroso.
Junto ao cachopo, não com todo o casco,
195 Sergesto avança; em parte só, que em parte
O cerra com seu beque emula a Pristis.
Mnesteu de banco em banco a gente incita:
“Forçai-me a voga, Hectóreos verdadeiros,
Que de Tróia escolhi no extremo arranco:
200 Mostrai-me agora o brio, o alento agora,
Qual nas Líbicas sirtes, qual no Jônio,
Qual do Málea em correntes impulsoras.
Mnesteu já pela palma não contende:
Oh! se eu... primem, Netuno, os teus mimosos.
205 Ser derradeiro, amigos, é vergonha:
Poupai-nos o labéu.” Quem mais, se afanam
Deitados sobre o remo; aos vastos golpes
Retreme a brônzea popa, o chão subtrai-se;
Crebro o anélito abala os membros todos,
210 E as bocas seca; em bica o suor mana.
O acaso trouxe o lanço a que aspiravam:
Acostado Sergesto, avante a proa
Cose à rocha, e abocando um passo estreito,
Ai! que em recife pretendido pega.
215 Ao choque ronca a pedra, e numa ostreira
Pontuda os remos se estribando estralam;
Contusa a proa suspendeu-se. Em gritos
Consurge, pára a chusma, e os croques safa
E agudas varas; os partidos remos
220 Do pego apanha. Então, com mais veemência,
Ledo Mnesteu os ventos convocando,
Certa e basta a remada, ao som das ondas,
Fácil no aberto pélago decorre.
Qual a pomba, que aninha em oca lapa
225 Seus doces ovos, salteada ao campo
Foge, e ao sair com a asa dá medrosa
Rijo encontrão no teto; e escorregando
Pela fluida via, o ar sereno
Rasa, nem move as expeditas penas:
230 Tal Mnesteu, com tal ímpeto, enfiada
Pelas últimas águas, voa a Pristis.
Já deixa às lutas no rochedo e alfaques
A Sergesto, que auxílio em vão clamando,
A andar aprende com lascados remos.
235 Presto a Gias se bota, e a nau possante
Cede, que está sem mestre. Só lhe falta
Quase no fim Cloanto, em cujo alcance
Urge com sumo afinco. Esperta a grita,
Aura geral o instiga a lhe dar caça,
240 E ribomba o fragor no espaço etéreo.
Uns raivam de perder o ganho e as honras,
Trocam pela vitória a própria vida;
Alenta os outros o sucesso: podem,
Porque julgam poder. E compartiram
245 Parelhos esporões talvez o prêmio,
Se em rogos solto, ao ponto as mãos tendidas,
A si Cloanto os numes não chamasse:
“Ó deuses, cujo império equóreo trilho,
Voto alegre imolar-vos nestas praias
250 Branco touro, e entornando castos vinhos
As entranhas verter no salso argento.”
Disse: e o coro de Forco e das Nereidas
De baixo o atende, e Panopéia virgem;
Té do ancião Portuno o braço grande
255 O empurra: mais que Noto ou leve xara,
A nau se lança à terra, e o porto ganha.

Ao povo o Anquíseo, com pregões do estilo,
Então proclama vencedor Cloanto,
Venda-lhe a fronte com virente louro;
260 De prata um mor talento às naus, de mimo.
Três novilhos à escolha e vinhos manda;
Com dons especiais distingue os chefes.
Ao vencedor, orlando-a recamada
Púrpura melibéia em dois meandros,
265 Áurea clâmide anexa: inda na tela
Régio menino, sôfrego, açodado,
No Ida selvoso os despedidos cervos
Corre e a dardo os fatiga; e lá nas garras
Altaneira às estrelas o arrebata
270 A armígera de Jove; embalde as palmas
Velhos aios levantam, contra as auras
Dos galgos o ladrar se assanha embalde.
Ao segundo em valor, de fina malha,
Que o decore e defenda, auritrílice
275 Loriga dá, que a Demoleu vencido
Ante o rápido Simois, de Ílio às abas,
O herói tirou: multíplice a textura,
Mal carregavam-na ajoujados pajens
Sagaris e Fegeu; com ela o dono
280 Punha em vil fuga os Troas. O terceiro
Dois caldeirões de cobre e umas navetas
De prata obteve com gentis relevos.

Já se ia cada qual soberbo e rico,
De puníceos listões bandada a fronte,
285 Quando apenas Sergesto, à força de arte
Do sevo escolho despegado, a barca,
De remos falha, um bordo raso e débil,
Traz inglório entre vaias. Qual serpente,
Se no lombo da estrada a colhe oblíqua
290 Ênea roda, ou com seixo grave a esmaga,
Deixando-a semi-morta, o viandante;
Fugindo em vão se torce em largos orbes;
Parte feroz sibila, incende os olhos,
Altiva empina o colo; manca em parte
295 Pelo golpe, retém-se, e enovelada
Em seus membros se implica e se revolve:
Tal vogando a nau tarda se movia;
Mas, cheio o pano, à vela a foz remonta.
Salvos navio e gente, alegre Enéias
300 A Sergesto não falta: a Cressa Fóloe,
Perita escrava em obras de Minerva,
Doa-lhe, e os gêmeos filhos que amamenta.

Findo o jogo, a relvado ameno vale,
Que outeiros fecham curvos e frondosos,
305 Passa Enéias: milhares o acompanham
Ao circo teatral que entremeava,
E, a turba acomodada, o herói se assenta.
Com dons que expõe de preço, excita a quantos
Certar queiram na rápida carreira.
310 Mistos concorrem Teucros e Sicanos:
Primeiros Niso e Euríalo, este em verde
Juventude e beleza, aquele insigne
Do moço em pio amor; depois, Diores,
Priâmeo garfo egrégio; e logo Sálio
315 Com Patron, um Tegeu de arcádio sangue,
De Acarnânia o segundo; e os de Trinácria
Jovens monteiros, Hélimo e Panopes,
Que assíduos ao bom velho a selva batem;
E muitos que sepulta escura fama.
320 Deles o herói cercado: “Ouvi-me atentos,
Folgai, mancebos; que nenhum sem prêmio
De mim se irá: de assacalado ferro
A cada um darei dois gnósios piques,
E de entalhos de prata uma bipene.
325 Terão de flava oliva ornada a fronte
Os vencedores três: guardo ao primeiro
Magnífico ginete ajaezado;
Ao outro, cheia de treícias frechas
Uma aljava amazônia, à qual circula
330 Boldrié largo de ouro, e ata fivela
De arredondada gema; o derradeiro
Com este argólico elmo vá contente.”

Todos postados, ao sinal que escutam,
Solto chuveiro, à despedida rompem,
335 Do ponto pelo corro se desparzem,
Olhos fitos na meta. Os contendores
Transpõe Niso, e ligeiro deslumbrando
Excede os ventos e do raio as asas.
Segue-o, mas com larguíssimo intervalo,
340 Sálio. Não longe, Euríalo é terceiro.
Hélimo é quarto. Próximo Diores
Arranca, e ao ombro a vezes(27) se lhe encosta,
Roça-o de ilharga, artelho com artelho:
E houvesse espaço, avante escapulira,
345 Ou balançara ao menos a vitória.
Quando ao termo afrontados se apropínquam,
Niso escorrega dos novilhos mortos
No cruor que a verdura e o chão molhara.
Já de vencida e ovante, o infeliz moço,
350 Titubando-lhe os pés, de bruços tomba
Sobre o sagrado sangue e esterco imundo.
Mas não lhe esquece Euríalo querido:
A resvalar se erguendo, a Sálio opõe-se,
Que tropeça e revolto jaz na areia.
355 Salta Euríalo; e, graças à amizade,
Voa o primeiro com ruidoso aplauso.
Vence Hélimo em segundo, e alfim Diores.

A amplidão da platéia atroa Sálio,
Perante os padres reclamando a glória
360 Que se lhe rouba. A Euríalo defende
Geral favor, e as lágrimas decoras,
E a virtude mais bela em gentil corpo.
Gritando o apoia com fervor Diores,
Que, último vindo, a palma não consegue,
365 Se conferem a Sálio as mores honras.
Decide Enéias: “Sossegai, mancebos,
Que do triunfo a ordem não se altera:
Compadecer me caiba o insonte amigo.”
E a Sálio dá velosa e de áureas unhas,
370 A de um leão numídio ingente pele.
Niso aqui: “Dos vencidos que resvalam
Se hás dó tamanho, a Niso o que reservas,
Que, a não ter ao de Sálio igual desastre,
Merecera a coroa e a primazia?”
375 E ao falar mostra a cara e os membros torpes
De atra sangueira. O padre riu benigno,
E um, que do umbral sagrado de Netuno
Os Danaos despregaram, trazer manda
Broquel didimaônio, obra excelente
380 Com que brinda e compensa o moço egrégio.

Quando os cursos termina e os dons reparte:
“Agora quem valor no peito encerra
Sus, os braços levante, as mãos ligadas.”
Então propõe dois prêmios da peleja:
385 De ouro coberto e fitas, um novilho
Ao vencedor; fino elmo e fina espada,
Ao vencido conforto. Sem demora
Dares, entre murmúrios e alvoroto,
Sai a terreiro, válido e robusto:
390 É quem soía combater com Páris:
E a Butes giganteu, que vir de Amico,
Rei de Bebrícia, invicto blasonava,
Junto à campa do excelso Heitor ferindo,
Moribundo o estendeu na fulva areia.
395 Tal o campeão se ostende: espadaúdo,
Alta a cabeça, alterno os braços tesos
Esgrime, e açoita os ares com punhadas.
Buscam-lhe um contendor: nenhum de tantos
Ousa contra o varão travar dos cestos.
400 Triunfo pois cantando, aos pés de Enéias
Ficou; sem mais detença, ao touro os cornos
Da esquerda ferra e diz: “Se a contrastar-me
Ninguém, filho da deusa, aqui se afouta
Que me retém? que espero? O touro ordena
405 Me conduzam.” Nos seus lavra um sussurro,
Querem que se lhe entregue. Eis volto Acestes
A Entelo ao pé sentado em leito ervoso,
Turvo o acoima e aguilhoa: “Ó dos antigos
Tu fortíssimo herói, sofres, Entelo,
410 Que prêmios tais se levem sem combate?
Onde Erix, nosso deus, frustrado mestre,
Onde o renome teu, que enche a Trinácria,
E os cem troféus que nos salões penduras?”

“O medo, retorquiu-lhe, o amor da glória
415 Não me embotou; mas tardo gela o sangue,
E o vigor se me esfria e se entorpece.
A me assistir a idade em que ora ufano
Confia esse arrogante, eu sim viera,
Não do preço movido ou guapo touro:
420 De interesses não curo.” E nisto à praça
Dois cestos arrojou desmesurados,
Que o bravo Erix nos prélios maneava,
No duro tergo os braços enlaçando.
Tudo enfiou: de bois sete amplos coiros
425 Reforçava cosido o ferro e o chumbo.
Dares é que mais pasma e até recusa:
O bizarro Anquisíades sopesa,
Volve a enleada massa e vulto enorme.
“Quanto mais, torna o velho, se alguém visse
430 Os de Hércules tremendo, e a luta infausta
Sobre esta mesma praia! Ei-las, Enéias,
Do teu valente irmão contempla as armas,
De cérebro e de sangue inda com laivos.
Com elas arrastou-se ao próprio Alcides;
435 Servi-me eu delas, quando me aquecia
O verdor, nem velhice porfiosa
Pelas fontes esparsa branquejava.
Mas se rejeita o Frígio as armas nossas,
Com Enéias se aprova o autor Acestes,
440 Não temas, renuncio os coiros D’Erix;
Despe esses teus: iguale-se a contenda.”

Do ombro dúplice capa então desprende,
Desnuda a ossada, as juntas e os lagartos;
Musculoso e nervudo está na arena.
445 Cestos iguais presenta o Anquísio padre,
E ata-os às palmas de ambos. Sobre os dedos
Cada qual se endireita, e no ar os pulsos
Vibra intrépido e firme. Árdua a cabeça
Do vulnífico aceno atrás afastam;
450 Misturam mãos com mãos, e a pugna incitam(28).
Um por moço é ligeiro; outro é forçoso,
Grande e membrudo, mas dos joelhos frouxo,
Tardo e tremente, a vastidão lhe agita
Egro anelar. Muita ferida baldam,
455 Muita no lado côncavo amiúdam;
Os peitos aos varões harto rouquejam;
O punho erra por fontes, por ouvidos;
Ao crebro áspero embate os queixos ringem.
Afincado num posto, o grave Entelo
460 Aos tiros vigilante o corpo furta.
Dares, como quem bate uma alta praça,
Ou rouqueiro castelo opugna e cerca,
Por esta aberta e aquela, o assalta e urge;
Frustra os tentames, os ardis malogra.

465 Minaz Entelo se alça, e a destra brande;
O outro prevendo o sobranceiro bote,
Num salto o esquiva: Entelo pelas auras
Derrama as forças, por si mesmo em terra
Com o vasto peso mais pesadamente
470 Rui, como em cimos do Ida ou no Erimanto
Desraigado baqueia oco pinheiro.
Frígios, Trinácrios, êmulos consurgem;
Monta o clamor ao céu; primeiro acode
E ergue Acestes com pena o eqüevo amigo.
475 Sem perturbá-lo a queda, o herói mais agro
Volta impávido à luta, e a ira o esforça;
Pejo, cônscio valor o abrasa, e ardendo
Rápido pelo campo acossa a Dares:
Ora a destra, ora a esquerda os golpes dobra.
480 Nem respiro, nem pausa: qual nos tetos
Saltão granizo crepitando chove,
Tal com uma e outra mão basta pancada
Desfecha, e traz num vórtice o contrário.
Que o furor se encrueça, e Entelo em sanha
485 Mais se exaspere, o padre o não consente:
À pugna se interpondo, ao moído jovem
Salva, e o mitiga assim: “Que insânia a tua!
Triste! um poder não sentes sobre-humano?
Cede ao nume.” E falando a briga aparta.
490 Fiéis sócios com Dares, que a nutante
Cabeça e os fracos joelhos mal sustendo,
Mistos coalhado sangue e dentes cospe,
Vão-se às naus; advertidos, com a espada
O elmo tomando, a rês e a palma deixam
495 Ao vencedor, que altivo se ufaneia:
“Olhai, de Vênus filho, e vós Troianos.
O que eu seria em moço, e a morte certa
De que o livrastes.” Pára, em se afrontando
Ao touro, prêmio seu, que em pé se tinha,
500 Libra-se a prumo, atrás retira a destra,
Entre os cornos assenta os duros cestos,
Quebra-lhe o crânio, o cérebro esmigalha:
Prostra-se, arca e no chão se estira o boi.
Sobre ele o herói exclama: “Em vez do Frígio
505 Melhor te sagro est’alma; os cestos, Erix,
E a arte vitorioso aqui reponho.”

Já, com dons, a quem jogue a seta alada
Convida Enéias; faz que a gente erija
Do baixel de Seresto um mastro, e apensa
510 Do tope num cordel volante pomba,
Alvo dos tiros. Os varões concorrem,
E em brônzeo capacete as sortes lançam:
Começou pelo Hirtácio Hipocoonte
Com ruidoso favor; Mnesteu seguiu-se,
515 Mnesteu que inda cingia a verde oliva
Do certame naval; saiu terceiro
Seu(29) irmão Euricion, Pândaro exímio,
Que, mandado a romper outrora os pactos,
Contra os Aqueus a vira disparaste:
520 Do elmo ficou no fundo o velho Acestes,
Que lidas juvenis tentar ousava.

Com ânsia cada qual seu fléxil arco
Forte encurva, e da aljava o tiro apronta.
Primeiro o Hirtácio, o nervo rechinando,
525 Zimbra agilíssimo as volúveis auras,
E no fronteiro mastro a ponta ferra:
Treme a árvore, assustada esvoaça a pomba,
E em roda estronda o aplauso. Árdego e lesto,
Arma o lanço Mnesteu, põe alto a mira,
530 Olhos estende e a seta: ah! que não pôde
Na ave tocar; do pé só quebra os fios
De que inexa pendia: ela adejando
Por entre notos e negrumes foge.
Mas, prestes e embebida a frecha tendo,
535 Invocando Euricion fraterno auxílio,
Fita a que o céu fendendo aleia e exulta,
E sob a nuvem bruna a encrava: a pomba
Cai morrendo, e nos astros larga a vida,
E traz caindo a farpa atravessada.
540 Resta Acestes sem palma; e o tiro aos ventos,
Do arco sonoro e de arte gloriando,
Enfim remete. Aqui súbito ocorre
Monstro e agouro espantoso, que o futuro
Vindo aclarar, terrífícos os vates
545 Tarde o cantaram; pois que ardeu, voando,
E ígneo sulco traçou na etérea via
A haste arundínea, e em ar se esvaiu tênue:
Qual se descrava a estrela, o céu transcorre,
E no vôo inflamada arrasta o crino.
550 Frígio ou Trinácrio, estáticos de assombro,
Levantam preces: nem repulsa o aviso,
Mas a Acestes abraça o herói prestante,
Largo o premeia, e ajunta: “Aceita, ó padre,
Senão da sorte, por insigne auspício
555 Do sumo rei do Olimpo, esta esculpida
Cratera, deixa do longevo Anquises;
Gage, com que o prendou Cisseu de Trácia,
De amizade e lembrança.” E às fontes o orna
De verde louro, vencedor o aclama:
560 Sem ciúme Euricion, que só das nuvens
A ave precipitou, de grado acede.
Entra o que o nó desfez próximo em honras;
Último, a frecha quem pregou no tronco.

Inda os certames não despede Enéias;
565 Chama a Epítides; aio e companheiro
Do impube Iulo, e diz-lhe à puridade:
“Anda; e Ascânio, se instruto o eqüestre ludo
E os meninos já tem, que as turmas guie,
E em memória do avô se mostre em armas.”
570 Dali faz que esvazie o infuso povo,
E haja campo. Ante os pais, medindo o passo,
Por igual em cavalos enfreados
Os meninos relumbram. Surpreendida(30)
Freme a sicana e teucra mocidade.
575 Do uso os coroa tonsa rama: trazem
Dois hastis de corniso em férreas choupas,
E alguns ao ombro aljavas luzidias;
Retorcida lhes desce áurea cadeia,
Do colo ao peito em círculo flexível.
580 Três as turmas, três chefes as percorrem;
Sob cada chefe doze cavaleiros
Bizarreiam, fulgindo em sua esquadra.
Uma folga, ó Polites, de que a reja
O teu Príamo, herdeiro de um tal nome,
585 Que há de a Itália aumentar: cavalga em trácio
Ginete bicolor de brancas malhas,
Que a mão calça de branco, e fero ostenta
Branca silva na testa. O guia é de outra,
Caro ao menino Iulo, Átis menino,
590 Átis o tronco dos Latinos Átios.
Mais que todos formoso, o lindo Ascânio
Trota postremo num corcel fenício,
Que em monumento e prova de ternura
Deu-lhe a cândida Elisa. O resto monta
595 Em trinácrios frisões do velho Acestes.
Pávidos marcham; dos avós retratos,
Com júbilo os aviva o tróico aplauso.

Depois que alegres ante os seus campeiam,
Prontos à senha, Epítides gritando
600 Longe o flagelo estala. A par desfilam,
Formam-se em corpos três, e à voz dos cabos
Infestas lanças, desandando, enristam.(31)
Carreiras a carreiras contrapondo,
Voltas impedem com trocadas voltas;
605 Baralham-se em renhida escaramuça,
De um conflito arremedo: ora dão costas,
Ora atacam de frente; ou, pazes feitas,
Levam-se emparelhados. N’alta Creta
O labirinto, é fama que o teciam
610 Paredes cegas, mil dolosas ruas
De incompreendido error, que inextricável
Enganados vestígios transviava:
Não com diverso enredo embaraçada,
A prole teucra folgazã correndo,
615 Fugas urde e pelejas; como a nado,
No úmido pélago os delfins brincando,
Ondas carpátia e líbica retalham.

Ao munir Alba-longa, estes Ascânio
Cursos, torneios, quais jogou na infância,
620 No prisco Lácio introduziu: de Albânia
Transmitiram-se a Roma; e Roma augusta
Em honra avita os guarda: o jogo Tróia,
O pueril esquadrão se diz Troiano.

Ao divo padre a festa ia findar-se:
625 Instável a fortuna então falseia.
Durante os ludos fúnebres Satúrnia
Envia à tróica armada Íris celeste,
Com ventos a aligeira, e em cem projetos
A inveterada queixa não sacia.
630 Pelo arco multicor, de golpe a virgem
Ganha um declive atalho; atenta invisa
Tropel tão basto, e vê, lustrando as praias,
Deserto o porto, abandonada a frota.

Lá sós, em borda escusa, o morto Anquises
635 As Troades choravam, e o profundo
Ponto olhavam chorando: “Ai! tão cansadas
Que abismo que nos resta!” à uma exclamam.
Pedem cidade; a rota longa entejam.
Nada inóxia, deposto e o trajo e o vulto,
640 Chega-se a deusa, em Béroe disfarçada,
Cônjuge anosa do Ismaro Doriclo,
Célebre dantes por fecunda e nobre;
Entre elas se insinua, e diz: “Mesquinhas!
Que às mãos gregas a morte não tragámos
645 Sob os muros da pátria! Infeliz gente!
A que exício a desgraça te reserva?
Volvem sete verões que, acesa Tróia,
Fretos medindo, inóspitos rochedos,
Climas tantos e céus, por mar tamanho
650 Da fugitiva Itália em busca, vamos
Pelas ondas rolando. Hóspede Acestes,
D’Erix quem lhe obsta no país fraterno
A nos fundar cidade? Ó pátria! ó numes
Do inimigo sem fruto arrebatados!
655 Nunca um sítio verei que eu chame Tróia?
Nunca os rios de Heitor, um Xanto, um Simois?
Presto, abrasai comigo infaustas popas.
Cassandra em sonhos, dando acesas tochas,
Me bradava esta noite: Ílio aqui tendes,
660 Aqui vossa morada. Obrai, que é tempo;
Nem tais prodígios dilação permitem:
Eis sacros a Netuno altares quatro;
O mesmo deus ministra ânimo e fachos.”

Nisto, agarrando infenso, a destra eleva,
665 Brande um tição com força, e coruscante
O propele. As Ilíades suspensas
De espanto enfiam. Pirgo, a mais idosa,
Que tantos filhos a seu rei criara:
“Esta, ó matronas, disse, a de Doriclo
670 Béroe não é Retéia: o ar divino,
O garbo lhe notai, da vista o fogo,
O hálito, o som da voz, o andar e o gesto,
A Béroe eu venho de deixar doente,
Pesando-lhe só ela em tais exéquias
675 Faltar com dons e merecido pranto.”

Cala; e as matronas os malignos olhos
Nos lenhos cravam, balançando ambíguas
Do ficar entre o mísero desejo
E as fatídicas ordens; quando as asas
680 Libra e desfere a deusa, e à retirada
Assinala entre as nuvens arco ingente.
Em fúria, do prodígio estupefactas,
Do imo foco bramindo a chama tiram:
As aras despojando, às naus remessam
685 Galhos, folhas, tições: Vulcano em bancos
E em remos enfurece, à rédea solta
Raiva de abeto nas pintadas popas.

Ao sepulcro, à platéia, Eumelo a nova
Do incêndio leva; e em rolo atra fagulha
690 Se enxerga a revoar. Primeiro Ascânio,
Quão ledo conduzia a eqüestre pugna,
Ágil galopa aos arraiais turbados;
Aios retê-lo exânimes não podem.
“Que tentais, cidadãs? que insânia! ai tristes!
695 Não pavilhões hostis, não graias quilhas,
Queimais vossa esperança. Aqui me tendes,
Eis vosso Ascânio.” E aos pés o elmo vão lança,
De que armado exercia a falsa guerra.
Enéias se acelera, e o frígio bando.
700 A buscar brenha ou lapa em que se escondam,
Pelas praias com medo elas se esgarram:
À luz fogem de pejo, e arrependidas
Juno removem d’alma, aos seus tornadas.
Nem por isso domou-se a voraz peste:
705 Sob o molhado roble viva a estopa
Tardo fumo vomita, e o vapor lento
Rói os porões, no âmago se ateia;
Não valem jorros d’água e heróico esforço.
Dos ombros rasga a veste, e aos céus Enéias
710 Súplice as palmas tende: “Ó Jove excelso!
Se um por um, padre, os Frígios não detestas,
Se inda humanos trabalhos te apiadam,
Da chama agora a frota me preserves,
D’Ílio a tênue relíquia ao menos poupes;
715 Ou, que mais resta? esmague-me o teu raio,
Mata-me, se o mereço.” Acaba; e ronca
Desmedida, furiosa, atra procela,
Dos trovões estremece o monte e o vale;
Turvo, engrossado pelos densos austros,
720 Aguaceiro estupendo alaga as popas:
Semi-ardidos carvalhos se umedecem,
Té que extinto o vapor, tragadas quatro,
No corpo das demais cessa o contágio.

Do agro desastre Enéias combatido,
725 Cem razões versa n’alma, hesita incerto
Se na fértil Sicília esqueça os fados,
Ou se à Itália prossiga. O velho Nautes,
Sábio adivinho de Minerva aluno,
Tramas de irosos deuses explicando
730 E o que ordena o destino, assim o anima:
“Da fortuna aos vaivéns nos resignemos,
Ó dionéia prole; em todo aperto
Sofrendo é que se vence a adversidade.
Tens cá divina estirpe, o tróico Acestes:
735 Consulta o seu querer. Das naus combustas
Lhe confia o sobejo, e os que se anojam
Da empresa tua; as aborridas madres,
Decrépitos e inválidos segrega,
E os que afrontar contigo os riscos temem:
740 Em terra hajam descanso; ergam cidade,
A que Acestes conceda o nome Acesta.”
Nos conselhos do amigo o herói se acende;
Mas os projetos seus medita e pesa.

Na biga a parda Noite o pólo ocupa:
745 Eis do céu deslizando a sombra anquísea
Tais vozes difundir se lhe afigura:
“Filho, que em vida mais amei que a vida,
Filho, a quem de Ílion molesta o fado,
A ti me expede Jove, que do Olimpo
750 Doeu-se e desviou da armada o incêndio.
De Nautes o maduro aviso adota:
Vais debelar gente áspera indomada;
Dos teus conduz ao Lácio a flor guerreira.
D’antemão baixa a Dite e ao centro escuro;
755 Pelo alto Averno, ó filho, vem falar-me:
Não no ímpio Tártaro, entre os manes tristes;
Moro sim, entre os bons, no Elísio ameno.
Muita rês negra fere, e a mim te guie
Casta Sibila; aprenderás teus netos,
760 E o dado império. Adeus, que úmida a noite
Vira e descai, e já do sevo oriente
Respirando os Etontes me bafejam.”

Disse, e em ar se esvaece. “Onde, onde partes?
Tem-te, espera; a meus braços quem te arranca?”
765 Tal Enéias discorre, e esperta o lume
Sopito em cinza; humilde à branca Vesta
O sacrário venera e os teucros lares,
Com turíbulo pleno e farro pio.
Depois consulta o rei, declara aos sócios
770 De Jove o mando, os paternais preceitos,
E o seu pensar. De pronto anui Acestes.
Para a cidade o vulgo e as mães se alistam,
Almas a quem não toca o amor da glória.
Gastos robles da chama outros renovam,
775 Remos, bancos, enxárcias aparelham;
Poucos sim, mas de vívida coragem.

Risca os muros Enéias com o arado;
Sorteia as casas; manda ali ser Tróia,
Pérgamo ali. Do aumento folga Acestes;
780 O senado institui, regula o foro.
Templo, aos astros vizinho, à deusa Idália
No Erix se eleva; ao túmulo de Anquises
Um luco amplo se anexa e um sacerdote.

Festins e oblatas novenais se fazem,
785 Enquanto aragem meiga aplane as vagas.
Fresco ao largo de novo o sul convida:
Nas curvas praias se ouve um mesto choro;
Dia e noite abraçados se demoram.
E agora as mães, e aqueles que assustava
790 Do áspero mar a torva catadura,
As fadigas do mar padecer querem.

Terno os conforta, e lagrimoso Enéias
Ao régio consangüíneo os recomenda.
A Erix vitelos três e às tempestades
795 Cordeira imola, e vai desamarrando.
Tonsa oliva na testa, em pé na proa,
Taça na destra, as vísceras despeja,
De estremes vinhos o salgado asperge.
De popa o vento surge; e os navegantes
800 Varrem, qual mais, as percutidas ondas.
Entretanto, a Netuno aflita Vênus
Tais queixas despregou: “Senhor, a ativa
Atroz ira de Juno insaciável
Me abate a suplicar. Nem dó, nem tempo,
805 Jove nem destino, infandos ódios
Quebra ou lhe adoça. Haver não basta aos Frígios
Consumido e apagado a grã cidade,
E as relíquias trazer de transe em transe;
De Tróia inda persegue a cinza e os ossos:
810 Desta sanha o motivo ela que o saiba.
Longo não há que em Líbia (és testemunha)
Mal afouta em Eolo, o pego em brenhas,
Misturou de repente os céus e os mares:
E isto ousar em teus reinos! Ei-la, oh crime!
815 Iliça as Teucras, incendeia as popas,
Naus estraga, e a largar meu filho obriga
Sócios em terra estranha. O resto, ó padre,
Possa, eu to rogo, navegar seguro;
Aborde, se é que as Parcas lho concedem,
820 Ao Tibre laurentino e assentos funde.”

Do alto oceano o domador Satúrnio:
“É justo, respondeu, que em mim confies
E em reinos, Citeréia, origem tua.
Mereço-o; que não raro hei por teu filho
825 Marulhos comprimido e o céu raivoso.
Nem menos (testefique o Xanto e o Simois)
Dele em terra curei: quando às muralhas
Pálidas turmas rebatendo Aquiles,
Milhares dava à Estige e o Xanto, os rios
830 Entulhados gemendo, não sabia
Como volver-se ao mar; eu mesmo em nuvem
Cava ao Pelides fero Enéias roubo,
Que, ímpar em força e divos, o acomete;
Bem que anelasse, destas mãos erectos,
835 D’Ílio extirpar os fementidos muros,
No mesmo ânimo estou; bane os temores.
Aportará no Averno quem desejas:
Deve um só perecer no aquoso fundo;
Uma cabeça pagará por todos.”

840 Tendo assim animado a leda Vênus,
Junge os brutos, e impondo espúmeos freios,
Ele a brida relaxa, e à tona equórea
Voa de leve no cerúleo carro:
Cai sob o eixo tonante o inchado argento,
845 Amansa a vaga, espalham-se os negrumes.
Surde a marinha escolta: Glauco e Forco,
Seu velho coro, formidáveis cetos,
Tritões ligeiros, Melicerta Inôo;
Tétis à esquerda, Pánope e Niséia,
850 Melite e Spio, Cimódoce e Tália.

Brandos gostos revezam-se de Enéias
Na mente absorta: erguer faz logo os mastros,
Desenvergar o pano e desfraldá-lo.
Toda a frota num ponto escotas ala;
855 Solta a bombordo os seios, a estibordo;
Árduos os lais braceia, rebraceia;
Té que o sopro à feição lhe enfuna as velas.
Palinuro abre o rumo à densa armada;
De lhe irem na conserva os mais têm ordem.

860 Da celeste baliza ao meio a noite
Já rórida atingia; de cansaço
Por duros bancos a maruja os membros
Em seus remos pousava: é quando o Sono
Do éter sidéreo plácido escorrega,
865 Afugenta e dissolve a espessa treva;
Busca-te, Palinuro, a ti mesquinho
Funestos sonhos traz: na popa, em Forbas
Transformado, se assenta, e arteiro fala:
“Iaside Palinuro, ao som das águas
870 Desliza a frota; a viração é certa;
Encosta a fronte, as pálpebras descansa,
Furta uma hora ao trabalho: espaço breve
Tomo o teu cargo.” Palinuro os olhos
Descerra a custo: “Queres que eu, lhe torna,
875 Creia em tal monstro, em céu risonho estribe?
Que entregue Enéias a traidores austros?”

Em discursando, ao clavo mais se aferra,
Fito os astros contempla: as fontes ambas
Eis lhe borrifa, em Letes embebido,
880 Por força estígia um ramo soporado;

Nadam-lhe os frouxos renitentes lumes.
Indo-lhe adormecendo o corpo laxo,
Morfeu se achega; ao líquido elemento,
Com pedaço da popa e o leme, o empurra:
885 Despenha-se ele, em vão clamando aos sócios;
O deus nos ares desapareceu.

Inda assim, em Netuno assegurada,
Sulca impávida a frota o plaino amaro:
Já remonta os cachopos das Sereias,
890 Que, então riscosos, de ossos alvejavam;
Roucas do salso choque as rochas soam.
Sem piloto à matroca o barco Enéias
Sente, e em pessoa por noturnas ondas
Magoado o rege, lamentando o amigo:
895 “Ai! nu, que em céu fiaste e em mar tranqüilo,
Jazerás, Palinuro, em praia ignota”.


 

publicado por centrallgames às 00:47
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LIVRO IV

 

Já traspassada, em veias cria a chaga,
E se fina a rainha em cego fogo.
O alto valor do herói, sua alta origem
Revolve; estampou n’alma o gesto e as falas;
5 Do cuidado não dorme, não sossega.
A alva espanca do pólo a noite lenta,
Lustrando o mundo a lâmpada febéia;
Louca à irmã confidente então se explica:
“Suspensa que visões, Ana, me aterram?
10 Que hóspede novo aporta às nossas plagas?
Quão gentil parecer! que ações! que esforço!
Creio, nem creio em vão, provém dos deuses.
Temor vileza argúi. Dos fados jogo,
Ai! que exaustas batalhas decantava!
15 Se em grilhões nupciais não mais prender-me
Fixo não fosse em mim, dês que traiu-me
Com morte o amor falaz; ao toro e fachas
Tédio se não tivesse, eu talvez, Ana,
A esta só culpa sucumbir pudera.
20 Depois que o meu Siqueu me foi roubado,
Mão fraterna os penates cruentando,
Este único abalou-me, eu to confesso,
E a vontade impeliu-me titubante:
Sinto os vestígios da primeira chama.
25 Mas engula-me o abismo, antes me arroje
Do Onipotente um raio às sombras fundas,
Pálidas sombras do enoitado inferno,
Que eu te viole, ó Pudor, e as leis te infrinja:
Quem a si conjuntou-me e a flor colheu-me,
30 Consigo minha fé sepulto guarde.”
Cala, e em seu seio as lágrimas borbulham,

E Ana: “Ó mais do que a vida irmã dileta,
Murcharás teu verdor, viúva e triste,
Sem de Vênus gozar, sem doces filhos?
35 Crês disto a campa cure e a cinza e os manes?
Bem: magoada enjeitaste esposos tírios,
E há pouco Iarbas e outros que em triunfos
África nutre: pois também repugnas
Ao grato amor? Nem onde estás refletes?
40 Cá te cerca a pugnaz Getúlia invicta,
E a Sirte inóspita e Numídia infrene;
Lá por sequiosa a região deserta,
E à larga soltos os Barceus furentes.
Das guerras que direi que em Tiro engrossam?
45 Das ameaças do irmão? Divino auspício,
Mercê de Juno, esta arribada julgo
Das quilhas de Ílion. Como a cidade
Verás crescer? com tal consórcio, quantos
Reinos pular? A que auge irá das armas
50 Teucras a glória púnica ajudada?
Vênia, irmã, pede aos céus, e abençoados
Os sacrifícios, o hóspede agasalha;
De o reter causas tece, até que as ondas
A invernada embraveça e Orion chuvoso,
55 E, em destroço os baixéis, embrusque o tempo.”

Com tais razões lhe atiça o interno incêndio,
E alenta de esperança o ânimo dúbio,
E desata o pudor. Primeiro correm
Aos delubros, e a paz nas aras catam:
60 Bimas ovelhas rituais degolam
À legífera Ceres, mais a Febo
E ao pai Lieu, mormente a Juno, guarda
Dos vínculos jugais. Taça na destra,
Por entre os cornos de alvadia vaca
65 Verte-a Dido pulquérríma, ou dos deuses
Passeia em face pelas aras pingues;
Sagra o dia a oblações; consulta as reses
Pelos peitos abertas, respirantes
Entranhas, congoxosa. Ai! néscios vates!
70 Delubros, votos, à paixão que montam?
Rói as medulas mole flama, e a chaga
No âmago vive tácita. A rainha
Arde insana, e infeliz vaga a cidade;
Qual cerva, a quem de sibilante seta,
75 A atirar o pastor nos créssios bosques,
Varou de longe incauta, e ínscio o volátil
Farpão lhe prega e deixa: ela na fuga
Discorre as selvas e dictéias matas;
A letal cana ao lado se lhe aferra.
80 Ora o guia entre as obras, e as riquezas
Tírias e prestes a cidade ostenta:
Vai falar, e se atalha a voz troncando;
Ora, o Sol descaindo, à mesa os casos
D’Ílio outra vez sem tino ouvir demanda,
85 E da narrante boca outra vez pende.
Já retirados, quando à Lua obscura
Encolher toca o lume e sono infundem
Cadentes astros, só na vácua sala
Mesta ao sofá se encosta em que ele esteve:
90 N’ausência o escuta e o vê n’ausência; ou tendo
No grêmio Ascânio, enleva-se na imagem
Do pai, como iludindo o amor infando.

Nem medram torres, nem se exerce em armas
A mocidade; os portos não consertam,
95 Nem, defensas da guerra, os baluartes;
Impendentes merlões, fábricas param;
Já não labora a máquina altaneira.

Tanto que a persentiu da peste iscada,
Sem à paixão a fama obstar, Satúrnia,
100 Cara esposa de Jove, nestes termos
Comete a Vênus: “Tu e o teu menino,
Certo, exímio louvor e espólios amplos
Ganhais e grã renome, a ser vencida
Uma mulher por dolo de dois numes!
105 Não me escapou, receaste os nossos muros,
D’alta Cartago a estância te é suspeita.
Onde isto irá? tantas contendas onde?
Por que antes não firmamos paz eterna
E ajustes conjugais? Lograste o intento:
110 Ama Dido, o furor nos ossos prende.
Os povos em comum, partindo o auspício,
Rejamos pois: servir marido frígio,
Com seus Tírios dotar-te, se lhe outorgue.”

Vênus, sentindo-a cavilar, da Itália
115 Por que o reino transfira às margens líbias,
Retorque assim: “Quem há que a tal se furte,
Ou doido queira guerrear contigo?
Seja o que lembras, se a fortuna o aprova.
Mas traz-me o fado incerta se é do gosto
120 De Júpiter manter numa cidade
Com os de Tróia os Tírios, ou lhe apraza
Os povos confundir ou federá-los.
És consorte: com preces a ti cabe
Tentar seu pensamento. Anda, eu te sigo.”

125 “Tomo isso a mim, replica a real Juno:
De efeituar o que urge ao plano atende.
A misérrima Dido ir com Enéias
Caçar propõe-se, mal Titã no oriente,
O orbe arraiando, crástino desponte.
130 Eu com basto granizo atro chuveiro,
No açodar-se o tropel de alãos e tralhas
Cingindo a mata, soltarei das nuvens,
Crebros trovões estremecendo o pólo.
Derramada a companha, há de abafá-la
135 Noite opaca: o Troiano ir-se-á com Dido
À mesma gruta. Eu lá, se teu consenso
Me asseguras, atada em jugo estável
Lha ofertarei, sendo Himeneu presente.”
Não adversando, ao rogo Citeréia
140 Anui, e riu do solapado engano.

A aurora do oceano entanto surge:
Dos mancebos a flor madruga às portas,
Com laços, redes raras, com venábulos
De larga choupa; os éqüites massilos
145 Com farejantes cães de trote rompem.
No camarim detendo-se a rainha,
À entrada os Penos principais a esperam;
Em ostro e ouro o palafrém cosido,
Tasca o freio espumante, árdego e fero.
150 Assoma alfim da corte ladeada:
A clâmide sidônia lhe circunda
Multicor franja; à banda aljava de ouro,
Trança em ouro a madeixa, e lhe conchega
Fivela de ouro a purpurina veste.
155 Não falta a frígia companhia, e alegre
Marcha Iulo. Galhardo mais que todos,
Sócio Enéias se agrega, e a sua escolta.
Febo, quando abandona a Lícia hiberna
E o caudal Xanto; e, ao visitar a Delos
160 Materna, instaura os coros, pelas aras
Mistos Cressos e Dríopes fremindo
E Agatirsos pintados; por cabeços
Do Cinto airoso pisa, e o crino undante
Atilando, enredado em mole folha,
165 De ouro enastra; o carcás aos ombros tine:
Não menos senhoril Enéias ia;
Tanto garbo transluz no egrégio rosto!

Chega-se a alpestres montes e ínvias furnas:
Eis, de íngreme rochedo despenhando-se,
170 Bravias cabras pelos picos pulam;
D’além cervos, ligeiros a planície
Transpondo, aos esquadrões pulverulentos
Enovelam na fuga, e as brenhas deixam.
Mas no ardido ginete(17) o moço Ascânio
175 Dos vales folga em meio; e aqueles passa,
Estes pretere, e anela que um javardo
Surda espumante dentre o bando inerte,
Ou que fulvo leão da serra desça.

Entra a embrulhar-se o céu múrmuro e rouco:
180 De envolta cai saraiva e grossa chuva;
E a tíria comitiva e os jovens teucros,
Do medo atropelados, e o dardânio
De Vênus neto, agreste abrigo esparsos
Buscam: ribeiras das montanhas ruem.
185 Vão-se à mesma caverna Dido e Enéias;
Telus sinal deu logo e Juno prônuba:
Corisca, e o éter sabedor das bodas
Fulge, e no cimo as ninfas ulularam.
Este o dia letal, dos males causa:
190 Reputação, decoro, nada a move;
Nem mais Dido medita amor furtivo;
Chama-o consórcio, e o nome é véu da culpa.

Já corre a Fama as líbicas cidades;
Nem há contágio mais veloz que a Fama.
195 Móbil vigora, e força adquire andando:
Tímida e fraca, eis se remonta às auras;
No chão caminha, e a fronte enubla e esconde.
Da ira dos deuses Terra mãe picada,
Póstuma a Celo e Encélado, é constante,
200 De pés leve engendrou-a e de asas lestes:
Horrendo monstro ingente, que, oh prodígio!
No corpo quantas plumas tem, com tantos
Olhos por baixo vela, tantas línguas,
Tantas bocas lhe soam, tende e alerta
205 Ouvidos tantos. Pelo céu de noite
Revoa, e ruge na terrena sombra,
Nem os lumes declina ao meigo sono:
De dia, em celsa torre ou sumo alcáçar,
Sentada espia e as capitais aterra;
210 Do falso e ruim tenaz, do vero núncia.
Vária e palreira então com gáudio os povos
Aturde, e o feito e por fazer pregoa:
Que o varão teucro é vindo, ao qual dignava
Juntar-se a bela Dido; e, longo o inverno,
215 Em braços da volúpia, em luxo torpe
Se acalentando, os reinos esqueciam.

Isto de boca em boca a feia deusa
Difunde, e o curso para Iarbas torce;
Brada, inflama-lhe o peito, iras cumula.
220 De Amon filho e da rapta Garamante
Ninfa, em amplo domínio ao pai cem bravos
Templos, cem aras pôs; e um fogo eterno
Sagrou, dos deuses vivas sentinelas;
E o solo pingue do cruor das reses,
225 E em mil festões florentes liminares.
Fora de si, da nova amarga aceso,
É voz que aos céus humilde alçara as palmas:
“Soberano, a quem brinda a maura gente,
Banqueteada em marchetados leitos,
230 Reparas nisto, ó padre? ou com torcidos
Raios, cegos fuzis, trovões ruidosos,
Por demais nos assustas e apavoras?
Mulher que merca, errante em nossa extrema,
Para exígua cidade um chão foreiro
235 E ara uma praia, as bodas repulsou-nos,
No reino admite por senhor a Enéias!
E esse Páris, guiando uns semíviros,
Guedelha mádida em meônia mitra
Sob o mento enlaçada, o rapto logra:
240 Templos encher-te, fomentar nos baste
Estéril nome!” — Assim queixoso, e às aras
Pegado, ouvido foi do Onipotente;
Que os olhos volve à corte em que os amantes
A fama esquecem: “Vai, Mercúrio, invoca
245 Os zéfiros, nas penas te desliza,
Filho; e a Birsa, onde aguarda em ócio Enéias,
Sem respeito às muralhas concedidas,
Sobre as asas do vento este recado
Leva-lhe. Tal a genetriz formosa
250 Não no-lo prometeu, nem duas vezes
Para isso o vindicou das armas gregas;
Antes seria quem regesse a Itália
De impérios grávida e a bramir por guerras,
Quem, propagando o altivo sangue teucro,
255 Avassalasse o orbe. Honra tamanha
Se o não incende, nem se afana e lida
No alcance do louvor; é pai de Ascânio
E lhe inveja as romanas fortalezas?
Que faz? que espera entre inimiga gente?
260 Nem lhe importa Lavino e a prole ausônia?...
Navegue: em suma, esta a messagem; parte.”

À voz do excelso pai se inclina e apresta:
Calça os áureos talares com que adeja
Sublime sobre as terras, sobre os mares,
265 Como rápido sopro. A vara empunha,
Com que as pálidas almas do Orco evoca,
No Tártaro sombrio, outras afunda,
Tira e dá sonos, e da morte o selo
Nas pálpebras imprime. Afoito as brisas
270 Com ela parte, e os nevoeiros trana.
E já no surto avista o pino e encostas
Árduas de Atlante duro, que em seu tope
Agüenta o firmamento; o velho Atlante
Que de assíduos bulcões tolda a cabeça
275 Pinífera, açoitado de aguaceiros
E vendavais: de infusa neve a espádua
Forra, do queixo precipita rios,
E em caramelo enrija hórrida barba.
Mercúrio, equilibrando-se nas asas,
280 Paira; de chofre atira o corpo às ondas:
Qual gaivota que, as praias e piscosos
Cachopos rodeando, humilde aleia
À flor das águas; entre o céu e a terra
Cilênio, ao longo da arenosa costa,
285 Do avô desce materno e os ares sulca.

Assim que a planta alada os palhais toca,
A fundar casas, torreões, castelos,
Descobre Enéias(18), cuja espada o fulvo
Jaspe estrelava, e aos ombros a descuido
290 A capa em tírio múrice lhe ardia,
Lavor das próprias mãos da rica Dido,
De áurea tela a mais fina entrelaçado:
“Que! lanças de Cartago os alicerces
E lindos muros maridoso traças?
295 Teu reino, ah! tudo esqueces! O alto nume,
Cujo acenar abala o Olimpo e o mundo,
Veloz do claro pólo a ti me envia:
Que meditas? na Líbia com que intuito
Gastas esse vagar? Se não te excita
300 Glória tanta, nem lidas e te afanas
Trás o louvor, no teu herdeiro atenta,
No pululante esperançoso Iulo,
De Itália ao cetro e a Roma destinado.”
Nem acaba o Cilênio, e os mortais visos,
305 Depondo, em fumo se esvaece tênue.

Deste aspecto hirta a coma, a língua presa,
Do aviso e mando sumo o herói pasmado,
Ir-se e largar anseia as doces margens.
Ai! que ousará? frenética a rainha,
310 Com que ambages dispô-la, com que exórdios?
Aqui e ali, por tudo a mente versa;
Muda, varia, alterna, enfim resolve.
Cloanto convocou, Mnesteu, Sergesto;
Que, à surda aparelhando e a marinhagem
315 À frota recolhendo, aprontem armas,
Da novidade a causa dissimulem:
Que ele, como romper-se amor tamanho
A boníssima Dido não receie,
De conversá-la o ensejo tentaria,
320 A senda mais suave e o melhor jeito.
Todos com alvoroço as ordens cumprem.

Mas a rainha os dolos (quem a amante
Pode enganar!) pressente, e o que se urdia
Primeiro aventa, e o mais seguro teme.
325 Ímpia a Fama a exaspera, e lhe delata
Que a vogar se arma a frota. Urra, chameja,
Debaca pelas praças, pelas ruas:
Qual Tias quando, ao sacudir dos vultos
E tirsos incitada, evoé bramindo,
330 Trietéricas orgias a estimulam,
E o Citeron noturno a invoca a brados.
Topa a Enéias por fim: “Pérfido, exclama,
Poder inda encobrir tão feio embuste
E te escoar do meu país contavas?
335 Nosso amor, a fé dada não te embarga,
Nem de Elisa a funesta morte crua?
E até na hiberna quadra as naus fabricas,
E na força dos áquilos te apressas
A emarar-te, cruel? Que! se não fosses
340 A estranho solo e clima, Tróia antiga
Se em pé tivesses, pelas crespas vagas
Navegaras a Tróia?... A mim me foges?
Por este pranto meu, por essa destra
(Pois nada já me reservei mesquinha),
345 Por nosso matrimônio, pelas núpcias
Encetadas, se um’hora te fui doce
Ou bem te mereci, doa-te a minha
Casa em ruína; e, se é que as preces valem,
Despe tal pensamento, eu to suplico.
350 Por ti me odeiam nômades tiranos,
E a Líbia inteira, infensos os meus Tírios;
Por ti mesmo extinguiu-se o pejo, e aquela
Fama que dantes me elevava aos astros.
Moribunda em que mãos me desamparas,
355 Hóspede?... Este só nome à esposa resta.
Que mais me falta? que os fraternos muros
Pigmalião me tale? que à Getúlia
Seu rei me leve escrava? Antes da fuga,
Se de ti concebera, se em meus paços
360 Pequenino outro Enéias, cópia tua,
Me brincasse, eu de todo escarnecida
Nem em tanto abandono me julgara.”

Disse. Ele, imota a vista e a mente em Jove,
Sopeia a dor a custo, enfim responde:
365 “Eu nunca negarei favores tantos,
E outros que enumerar, senhora, podes;
Nem de Elisa a lembrança há de enfadar-me,
Enquanto eu mesmo for de mim lembrado,
E est’alma o corpo reja. A escusa é breve.
370 Nem a furto ausentar-me, tal não penses,
Cuidei; nem pretendi jamais as tedas,
Ou vim nunca em firmar esta aliança.
Se a meu gosto compor se me outorgasse
Da vida o curso, preferira em Tróia
375 As dos meus cultivar doces relíquias;
Refizera de Príamo os palácios,
Reconstruíra Pérgamo aos vencidos.
Mas Grineu Febo a Itália, a Itália agora
As sortes lícias demandar me ordenam:
380 Este o amor, esta a pátria. As líbias torres
De Cartago se a ti Fenisa prendem,
Na Ausônia estranhas que os Troianos fundem?
Novos reinos é lícito habitarmos.
A mim do padre Anquises, quantas vezes
385 De úmida sombra a noite enluta o globo,
Quantas surgem igníferos luzeiros,
Insta em sonhos, me aterra a torva imagem;
Turba-me o tenro Ascânio, o vitupério
De cabeça tão cara, a quem defraudo
390 Do hespérico domínio e fatais campos.
Inda há pouco, da parte do Tonante
O intérprete divino (ambos atesto)
Frechando as auras trouxe-me recados:
Às claras eu vi mesmo entrando os muros
395 O deus, bebi-lhe a voz nestes ouvidos.
De inflamar cessa a mágoa tua e minha:
Não espontâneo para Itália sigo.”

Enquanto ele discorre, aversa o encara;
Tácitos lumes volve, e o mede e estronda:
400 “Nem mãe deusa, nem Dárdano hás por tronco;
Gerou-te o Cáucaso em penhascos duros,
Traidor! mamaste nas hircanas tigres.
Que dissimulo? a que desdém me guardo?
Deu-me ao pranto uma lágrima, um suspiro?
405 Da amante se doeu?(19) dignou-se olhar-me?
Que afronta é mais pungente?... Ah! que até Juno
Nem Satúrnio isto vê com retos olhos.
Fé segura não há. Náufrago e pobre
O recolhi, demente o pus no trono,
410 Do estrago as naus remi, da morte os sócios.
Ai! que incendida as fúrias me arrebatam!
Ora agoureiro Apolo ou sortes lícias,
Ora expedido o intérprete de Jove
Traz pelas auras hórridos mandados.
415 Dos supremos que emprego! uma tal ânsia
Quebra o seu repousar. Nem te detenho,
Nem te refuto. Para Itália segue,
Sim, busca impérios pelas bravas ondas.
Se os numes valem pios, certo espero
420 Que entre escolhos suplícios mil devores,
E invoques amiúde o nome Dido.
Com negro facho ao longe hei de acercar-te;
E, quando a morte fria aos órgãos solva
O almo alento, ser-te-ei contínua sombra;
425 Terás o pago, hei de, perverso, ouvi-lo,
A nova há de baixar-me ao centro escuro.”

Nisto, corta-lhe a prática, à luz foge,
Some-se aflita, e o deixa embaraçado,
Muito dizer querendo e receando.
430 Levam-na em braços à marmórea alcova,
E a deitam nos coxins desfalecida.

Bem que deseje mitigá-la Enéias
E remover-lhe as penas compassivo,
Solto em ais, do amor grande combalido,
435 Cumpre as ordens contudo, as naus revista.
Afervoram-se os Teucros, desencalham
Celsos baixéis; crenado o casco nada;
Frondentes remos trazem, toscos robles,
No afogo de abalar. De muda os viras,
440 Da cidade em torrentes borbotando.
Em tulha assim de farro dão formigas
E em casa o põem, do inverno precatadas;
Campeia o negro exército, entre as ervas
Por trilha estreita acarretando a presa:
445 Parte ombros mete e grossos grãos empurra;
Parte urge os pelotões, pune as ronceiras:
Da pressa e afã toda a vereda ferve.

Ao contemplá-lo, que sentias, Dido?
Quais teus gemidos, de cimeira torre
450 Das praias enxergando o borborinho
E antolhando com grita o mar fundir-se?
Os mortais, fero amor, a quanto obrigas!
De novo ao rogo, às lágrimas recorre,
Do amor se humilha ao jugo; por que ao menos
455 Por tentar nada fique antes que expire.
“Ana, eis revolto o litoral; de roda
Concorre a chusma; o brim convida as auras,
E as popas já coroa o alegre nauta.
Se eu esperasse, irmã, sofrera o golpe.
460 Ana, um serviço: o ingrato, que te estima,
Só contigo se abria, só conheces
O modo e ensejo de amolgar esse homem;
Ao soberbo inimigo vai, suplica,
Por mim lhe fala, irmã: que eu nunca aos Danaos
465 Em Aulíde jurei de Tróia o excídio,
Nem contra Pérgamo esquipei navios,
Nem os ossos cavei do padre Anquises;
Por que duro a escutar-me se recusa?
De tropel onde corre? À triste amante
470 Renda um favor: monção aguarde e fuja.
O traído himeneu já não requeiro;
Nem do reino desista e pulcro Lácio.
Curto espaço ao furor, vã trégua peço,
Té que a sorte me vença e à dor me aveze.
475 Da irmã tem pena, esta mercê me obtenhas;
Ser-lhe-á paga sobeja a morte minha.”

Tais lamentos, misérrima, tais preces
Ana leva e releva; ele inconcusso
Razões nem choro admite: os fados obstam,
480 Um deus lhe obstrui os plácidos ouvidos.
Se, de anos rijo o válido carvalho,
Daqui dali soprando alpinos bóreas,
Extirpá-lo porfiam, berram, silvam,
E, do tronco as entranhas sacudidas,
485 Juncam o solo as folhas; aos rochedos
Ele se agarra, e quanto com seu pico
Penetra o etéreo céu, tanto profunda
No Tártaro a raiz: não de outro modo
Assíduas vozes mil o herói combatem,
490 E a grande alma suspira; a mente imóvel
Persiste, e rodam lágrimas baldias.

Dos fados treme Dido e a morte exora;
Da azul abóbada aborrece o aspecto.
Na tenção mais se afinca e a luz detesta,
495 Quando o leite (que horror!) nos sacros vasos
Vê negrejar, e os derramados vinhos
Irem-se convertendo em sangue impuro.
Tal visão cala, nem da irmã confia.

Ao defunto Siqueu nos paços houve
500 Marmóreo templo, em que ela se esmerava,
De velos níveos e festões ornado.
Ali, tanto que a noite obumbra as terras,
Crê perceber queixumes e o marido
Mesto chamá-la, e solitário bufo
505 Nas grimpas feral verso estar carpindo
E com tristura em flébil tom piando:
Cem velhas predições a atemorizam.
Enfurecida, o mesmo fero Enéias
Em sonhos a perturba, e se imagina
510 Sempre sozinha, ao desamparo sempre,
Ir por veigas extensas, por desertos,
Em busca dos seus Tírios. Tal, demente,
Penteu figura batalhões de Eumênides,
Gêmeo o Sol, duas Tebas: tal, nas cenas,
515 Da mãe foge aos brandões e às negras serpes
Vexado o Agamenônio, e as flagelantes
Erinies topa ao limiar sentadas.

Mal que à dor cede e, as fúrias concebendo,
Morrer decreta, e como e o quando elege;
520 E a triste Ana acorrendo, com disfarce,
De serena esperança a fronte ameiga:
“Os parabéns, irmã, que achei maneira
De atraí-lo ou soltar-me desse ingrato.
Nos confins do Oceano, para o ocaso,
525 Um lugar derradeiro há na Etiópia,
Onde o máximo Atlante ao ombro o ardente
Eixo estrelado vira. Entre os Massilos
Dali sacerdotisa me inculcaram
Do templo das Hespérides, que os sacros
530 Ramos guardando n’árvore, a comida
Ao dragão ministrava, untada em suco
De mel e dormideiras. Com seus carmes
Solver, gerar paixões; rios promete,
Astros atrás tornar, e infernos manes
535 Revocar: sob os pés mugindo a terra,
Verás descerem da montanha os ornos.
Pelo céu, cara irmã, por vida tua,
Juro que invita à mágica recorro.
Tu lá dentro ergue ao ar secreta pira,
540 E a roupa e as armas sobrepõe desse homem,
Que ímpio as deixou na câmara pregadas,
E o toro em que eu perdi-me: do malvado,
A maga o ordena, apaguem-se as memórias.”
Cala e tingiu-se de palor. Contudo
545 Que os funerais no sacrifício encubra
Nem Ana o crê, nem tal furor suspeita,
Ou nada mais sinistro que na morte
De Siqueu teme: tudo enfim prepara.

Ao ar, com achas de azinheira e pinho,
550 Num claustro escuro ereta ingente pira,
Colgado de capelas, a rainha
De rama fúnebre o lugar coroa;
Não do futuro ignara, sobre o leito
Coloca a teucra espada, a roupa, a efígie.
555 De altares cerca-se, e em cabelo a saga
Toa a invocar trezentas divindades,
O Érebo, o Caos, e a trina Hécate virgem,
Tergêmina Diana. Ali despeja
Simulado licor da fonte Averna;
560 Segadas ao luar com foice aênea,
O leite espreme de pubentes ervas,
Veneno tétrico; extraído ajunta
O amor da fronte de nascente poldro
E subtraído à mãe. Frouxa a petrina,
565 Mola nas pias mãos, de um pé descalça,
Dido, entre as aras morredoura, os deuses
Atesta e os astros, do seu fado cônscios;
E, se há nume que amantes patrocine,
Da ingratidão vingança lhe depreca.

570 Era noite, e em sossego os lassos corpos
Descansam: dorme a selva, o mar sanhudo;
Em meio giro os astros escorregam;
Todo o campo emudece; as alimárias
E as aves de cores mil, quanto povoa
575 Líquidos lagos, ásperas charnecas,
No silêncio noturno os seus trabalhos
Adormentando, a pena aliviavam.
Só nos olhos ou peito a insone Tíria
Não colhe a noite: as aflições lhe brotam;
580 Surgindo e ressurgindo o amor braveja,
Num fervedouro de iras flutuando,
E a mente em si volteia: “Que! zombada,
Requestando os primeiros pretendentes,
Hei de em Numídia mendigar consórcios
585 Tão rejeitados? ou partir na frota,
Conforme às teucras derradeiras ordens?
Gratos ao benefício, oh! quão lembrados
Dos meus favores são! E há, quando eu queira,
Quem mo consinta, ou nos soberbos lenhos
590 Execrada me aceite? Nem tu sabes,
Nem inda sentes, mísera, os perjúrios
Da raça laomedôncia? E então! sozinha
Irei atrás de aventureiros nautas,
Ou com todo o poder dos meus Sidônios?
595 E os que arranquei de Tiro, hei de arriscá-los
De novo, e dar as velas?... Antes morre,
Que o mereces; com ferro a dor atalha.
Tu por meu pranto, irmã, tu me agravaste
O furor e ao tirano me expuseste.
600 Não pudera eu viver de crime isenta,
Como fera, solteira e sem martírios?
Fementida a Siqueu manchei as cinzas.”
Tais do seu peito as queixas rebentavam.

Já, tudo a ponto, certo de ir Enéias
605 Adormecia a ré. Torna-lhe em sonhos
E o repreende a visão: Mercúrio é toda
Em vulto, em cor, em voz, na loura coma,
No talhe esbelto e juvenil meneio.
“Como! filho da deusa, em tal perigo
610 No sono pegas? nem, demente! enxergas
O que há de roda? os zéfiros suaves
Não ouves respirar? Perecedoura,
Ela enganos rumina e atroz maldade,
E num fluxo e refluxo irosa ondeia.
615 Podes inda, e o fugir não precipitas?
Com madeiros verás turbar-se o pego,
Tochas luzir, ferver em fogo as praias,
Se a aurora aqui te apanha. Eia, a tardança
Rompe: é sempre a mulher vária e mudável.“
620 E assim na treva se envolveu da noite.

Espavorido acorda: “Acima, alerta,
Brada o herói; panos fora, gente aos remos:
Insta comigo o mensageiro etéreo
A que abale no instante e pique amarras.
625 Nós, santo deus, quem sejas, te seguimos,
E ovantes outra vez te obedecemos.
Oh! sê propício e plácido, e nos tragas
Faustas estrelas.” Disse, e da bainha
Saca o fulmíneo gume e os cabos talha.
630 Tudo arde, à faina acode; as bordas largam:
De naus coalha-se o pélago; estribados,
Varrendo a azul campina, a espuma enrolam.

Já, de Titon deixando a crócea cama,
A Aurora de luz nova alaga o mundo:
635 Mal Dido alvorecer e arfar em cheio
Viu da atalaia a frota, e a praia e os portos
Nus da chusma sentiu, quatro e mais vezes
Lacera o belo peito e os áureos fios
Arrepela: “Ó deus sumo! há de um estranho
640 Ir-se do nosso reino escarnecendo?
Meu povo armas não toma, e o corre e os vasos
Dos arsenais despede?... Já, de pronto,
Brandi fachos, dai velas, forçai remos.
Que profiro? onde estou? desvairo insana?
645 Ai! Dido, hoje em ti pesa a mão do fado!
Quando entregaste o cetro, é que era tempo.
Que fé, que destra aquela! E é quem se afirma
Que da pátria os penates conduzira,
Que o pai caduco aos ombros carregara?
650 E empolgá-lo não pude, esquartejá-lo,
Pelo mar desparzi-lo, os seus à espada
Passar, e o mesmo Ascânio, e por comida
Pô-lo à paterna mesa? Mas do prélio
Fora a fortuna duvidosa... Fosse:
655 Vou morrer; qual o medo? Às naus, de assalto,
De fogo enchera o bojo; com tal raça
Pai e filho extinguira, e a mim com eles.

Sol, que lustras o globo e tudo aclaras;
Juno, intérprete e cônscia destas penas;
660 Pelas cidades em noturnos trívios
Tu Hécate ululada, ultrices Fúrias,
Ouvi-me, ó deuses da expirante Elisa,
Vosso nume volvei contra os perversos,
E atendei nossos rogos. Se é fadado
665 E quer Jove que o monstro, em fixo termo,
Poje em terra, audaz povo o ataque e avexe;
E errante, foragido, arrebatado
Dos abraços de Iulo, auxílio implore,
Veja dos seus os funerais indignos;
670 Ou, curvo à iníqua paz, não goze o reino
E apetecida luz; mas ante tempo
Caia, e insepulto sobre a areia jaza:
Com meu sangue esta praga última verto.
Tírios! vosso rancor lhe acosse a estirpe,
675 De oferta à cinza minha: aliança os povos(20)
Nunca irmane. Dos ossos tu me nasces,
Tais colonos persegue a fogo e ferro,
Ó vingador: já, logo, em todo o sempre
Que haja forças, com praias travem praias,
680 Ondas com ondas guerras, armas com armas;
Com seus netos, impreco, os meus pelejem.”

Por tudo o ânimo versa, e a teia odiosa
Traça em breve troncar. A Barce fala,
Do bom Siqueu nutriz, que em pó na antiga
685 Pátria a sua ficou: “Nutriz querida,
Chama cá minha irmã; que asperja o corpo
Com água fluvial; não tarde, e as reses
Venham com ela e as purgações prescritas:
E tu com pia fita as fontes venda.
690 Os que encetei solenes sacrifícios
A Jove Estígio concluir tenciono,
Findar meus males e entregar à pira
A imagem do infiel.” Termina; a serva
Com senil zelo acelerava o passo.

695 Trépida e em fera empresa encarniçada,
Vibrando olhos sangüíneos, e às trementes
Faces de nódoas salpicada, o interno
Claustro penetra, pálida a rainha
Já da futura morte, e furibunda
700 Sobe à fogueira, o tróico ferro despe,
Não para tal crueza reservado.
No ilíaco despojo e nota cama
Depois que atenta, em lágrimas, cuidosa,
Um pouco está suspensa, e reclinada
705 Finais vozes repete: “Ó doces prendas,
Quando o queira um deus e o fado, est’alma
Recebei, libertai-me de pesares.
Vivi, perfiz o destinado curso:
Grande irá minha sombra agora ao Orco.
710 Fundei clara cidade, eu vi meus muros;(21)
No truculento irmão vinguei o esposo.
Feliz, ah! mui feliz, se as quilhas teucras
Aqui nunca abordassem!” Disse, e o rosto
No leito impresso: “inulta morreremos?...
715 Pois morramos, sussurra; assim aos manes,
Assim desço contente. O cru Dardânio
Do mar embeba os olhos nestas chamas,
E estes mortais agouros o acompanhem.”

Não acabava; e sobre o estoque as damas
720 A vêem cair, de sangue as mãos tingidas
E a lâmina espumando. O clamor altos
Átrios atroa; às tontas corre a Fama
De cabo a cabo; com soluços, gritos,
Com femíneo ululado os tetos fremem;
725 Todo o ar retumba do alarido e pranto:
Qual, de hostil assaltada, se em ruínas
Cartago, ou Tiro antiga ardesse em alas
Furentes, ateadas nas dos homens,
Nas cumieiras dos deuses. Aturdida,
730 A irmã convulsa, exânime, açodada,
Carpe-se, afeia o rosto, os peitos fere,
Rompe o tropel, à moribunda exclama:
“Irmã, tu me iludias? Que! foi isto(22)
Que aras, tochas, fogueiras me aprestavam?
735 Qual mais dói? o abandono, o desprezares
Por sócia a irmã? Teus fados repartisses;
Uma hora, um ferro, uma ânsia nos tragasse.
Armei-te a pira eu mesma, e os deuses pátrios
Invoquei, para assim, cruel, jazeres
740 Na minha ausência? A mim e a ti mataste,
E o povo e os padres e a cidade tua.
Dai-me água, eu lave o golpe; e nos seus lábios,
Se alento algum vagueia, os meus o colham.”
Não mais, e os degraus salva; ao colo aperta,
745 Beija a irmã semiviva; entre ais enxuga
Na touca o tetro sangue. Os olhos graves
Quis ela alçar, desmaia: a chaga dentro
Range a golfar. Três vezes, arrimada
Ao cotovelo foi-se erguer, três vezes
750 Rolou no toro; e, baça a vista errante,
A luz no céu procura, e achando-a geme.

A onipotente Juno da agonia
E angústia longa então comiserada,
Do Olimpo Íris despacha, que a luctante(23)
755 Alma desate dos liados membros:
Pois nem de merecida ou fatal morte,
Mas súbito imatura, ah! perecia
De ira acesa; tirado a flava coma
Não lhe tinha Prosérpina, e a cabeça
760 À Estige condenado. Em cróceas penas,
Cambiando cores mil do Sol oposto,
Róscida a núncia vem parar sobre ela:
“O tributo a Plutão mandada levo;
Do corpo eu to desligo.” Disse, e o corta:
765 Foi-se o calor e evaporou-se a vida.

publicado por centrallgames às 00:45
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eneida de virgílio:obra completa(3)

LIVRO III

 

Depois que em mal os deuses derribaram
Ásia e a nação priaméia, altivos muros
E Ílio a neptúnia em fumo resolvendo,
A buscar nos suadiu celeste aviso
5 Vários desterros e desertos climas;
E no Ida frígio, ao pé da mesma Antandro
Fabricámos as naus, do fado incertos,
Do rumo e pousadia. Alisto os sócios;
E, entrada a primavera, ordena Anquises
10 Velas dar à ventura: então da pátria
Deixo os portos chorando, a borda e campos
Onde foi Tróia; com Iulo e os Teucros
Exul me engolfo, e os divos e os penates.

Campinas que regera o audaz Licurgo,
15 Vasta mavórcia terra, os Traces lavram:
Nela doce agasalho e amigos lares,
Enquanto quis fortuna, achava Tróia.
Ruim fado aí me aporta, e em curvo seio
Planto Enéia e do meu seu nome formo:
20 Aos de começo tais auspices numes
E à mãe Dionéia sacrifico, e um touro
Nédio imolo na praia ao deus superno.

Um combro ali, coroava-o de hastes crespa
Densa touça de murta e pilriteiro.
25 Cheguei-me, e no arrancar o verde mato,
Para os altares enfolhar com ramos,
Assombroso portento arrepiou-me:
O arbusto que primeiro desarreigo
De negro-rubras gotas o terreno
30 Tábido mancha. Os membros me convulsa
Frígido horror, coalhado gela o sangue.
Puxo outro lento vime, o arcano sondo;
Atro cruor de novo a casca estila.
Mil cuidos penso; às Hamadrias oro,
35 Ao do gético chão fautor Gradivo,
Que a visão ominosa em bem convertam.
Firmo os joelhos na areia, o esforço envido,
Terceira haste acometo; eis de um sepulcro
(Falar devo ou calar?) imo suspiro,
40 Gemente som, no ouvido me estremece:
“Ai! por que me laceras? poupa, Enéias,
Um finado; as mãos pias não profanes.
Gerou-me Tróia, nem te sou estranho,
Nem este humor do tronco mana. Ah! foge,
45 Foge o país cruel, a avara praia.
Sou Polidoro: aqui varou-me e cobre
De hastas férrea seara, que em vergônteas
Agudas verdeceu.” De susto opressa
Títuba a mente, estaco horripilado,
50 Presa a voz à garganta. Ao rei treício
Com grande peso de ouro às escondidas
Mandara o infeliz Príamo este filho
A se educar, já quando, estreito o assédio,
Do sucesso das armas receava.
55 Tróia abatida, o pérfido servindo
A vitória e fortuna agamenônia,
Degola o moço e empolga-lhe o tesouro.
Os corações mortais a que os não forças,
De ouro fome execranda! Assim que os ossos
60 Deixa o pavor, consulto os mais conspícuos,
E primeiro a meu pai conto o prodígio.
Convêm todos que, à frota os austros dando,
Do malvado lugar, poluto hospício,
Nos afastemos. Logo a Polidoro
65 O funeral se instaura, e amontoamos
Sobre o túmulo terra. Altar aos manes,
De azuis listões e exequial cipreste
Enlutado, elevamos; destrançadas,
Como é rito, as Ilíades o cercam.
70 Tépido espúmeo leite e de hóstias sangue
De navetas e taças lhe infundimos;
A alma a vozes no túmulo encerramos,
Três vezes proferindo o extremo vale.

Mal abonança o mar, segura o tempo,
75 E Austro brando sussurra e ao largo invita,
Em nado a praia enchendo, as naus velejam;
Vai recuando a praia e os novos muros.
Sacra à mãe das Nereidas e a Netuno
Egeu, ilha gratíssima cultivam;
80 Que a errar boiava, e o pio arcitenente
Com Mícon celsa atou-a e com Giaro,
E a fez imota, que dos ventos zombe.
Lá fui ter; placidíssima cansados
Nos recebe e agasalha. Ao desembarque
85 A cidade acatamos apolínea.
Ânio rei, que une o cetro e o sacerdócio,
Do febeu louro e fitas adornado
Sai, reconhece o amigo velho Anquises,
Nos toma a destra, nos recolhe e hospeda.
90 Venero o templo ereto em penha antiga:
“Laços(14) dá-nos, Timbreu, dá-nos progênie
E estáveis muros; salva est’outra Pérgamo,
Restos dos Gregos e do imite Aquiles.
Quem nos guia? onde ir cumpre? onde assentarmos?
95 Padre, em nós te insinua, o agouro aclara.”
Então, sinto agitar-se e tremer tudo,
Portas, louro do deus, e o monte em roda;
Muge a cortina, aberto o santuário.
No chão prostrados esta voz nos soa:
100 “O ubérrimo torrão, Dárdanos duros,
Vossa origem primeira, há de acolher-vos:
Ao grêmio vos tornai da prisca madre.
A casa ali de Enéias no orbe inteiro
Tem de imperar, e os filhos de seus filhos,
105 E os que deles nascerem.” Tal anúncio
Ledo alvoroto inspira; indagam todos
A que paragem Febo os mande errantes
E a reverter convide. Anciãs memórias
Recordando meu pai: “Ó chefes, disse,
110 Ouvi-me, roborai vossa esperança.
Creta, berço de Tróia e do alto nume,
Equórea jaz, com o Ida e estados pingues
E amplas cidades cem; donde abordando
Junto ao Reteu, se a tradição me lembra,
115 Teucro, avô nosso, ao reino escolheu sítio.
Ílio nem seu castelo inda existia,
Inda em profundos vales se habitava.
Daqui Réia cultora, e os coribântios
Sistros, e o monte Ideu; fiel silêncio
120 Daqui veio aos mistérios, e jungidos
Leões tirarem de senhora o carro.
Eia, o céu quer, os ventos aplacando,
Vamos já demandar as gnósias ribas:
Não distam muito, com favor de Jove
125 Lá podemos surgir à luz terceira.”
Termina; e um touro mata, honras devidas
A Netuno; a ti outro, ó belo Apolo;
Rês negra aos temporais, branca aos favônios.

Expulso Idomeneu do pátrio sólio,
130 Corre que, evacuada de inimigos,
Livre Creta ficou. Largando Ortígia,
No pélago a voar, passamos Naxos
E os montes seus que em bacanais ressoam,
Donisa verde, Olearo e a nívea Paros,
135 Na azul campanha as Cícladas esparsas,
Fretos de bastas ilhas semeados.
Na faina se ergue a náutica celeuma.
Vozes cruzam: “À Creta, ao ninho avito”.
De ré nos venta a brisa, e dos Curetes
140 A vetérrima plaga enfim tocámos.
Ávido a nova Pérgamo começo;
E, ufana com tal nome, incito a gente
A exalçar o castelo e amar seus fogos.

Já varadas em seco as popas eram;
145 Cuida-se em bodas, cuida-se em lavouras;
Casas regulo e marco: eis plantas e homens
Salteia corrupção que infecta os ares,
Triste ano, peçonhento às sementeiras.
Ia-se a doce vida, ou se arrastavam
150 Corpos a definhar: queimando Sírio
Estéreis agros, ressequidas ervas,
Enfezada a seara o pão negava.
Que eu, ressulcando o mar, de novo em Delos
Consulte humilde a Febo exorta Anquises:
155 Onde o refúgio, o termo a tanta angústia,
Convém tentar; que rota nos prescreva.

Noite era, e o sono os animais prendia:
As divinas efígies e os penates,
Que o ilíaco incêndio ressalvámos,
160 Resplendecendo em sonhos me aparecem,
Donde pelas janelas mal cerradas
Cheia a Lua enfiava o argênteo raio;
Ei-los que do cuidado assim me tiram:
“Não mais o ortígio oráculo demandes;
165 Por nós de grado Apolo aqui to envia:
Nós, Tróia em chamas, sob as armas tuas,
Remedimos contigo o inchado pélago;
Aos teus glória perene, eterno império
Daremos nós: tu longo afã não temas,
170 Procura a tal grandeza igual cidade.
Muda-te, parte, o Délio o determina;
Nem ele aconselhou-te a vir a Creta.
Um país há vetusto, em grego Hespéria,
Fecundo e belacíssimo, colônia
175 De Enótrios a princípio; Itália é fama
Que, de um rei seu, modernos a nomeiam:
Lá, por Dárdano e Jásio, a estirpe nossa
Origem teve; o assento lá teremos.
Vai-te ledo ao bom velho, e o desengana;
180 Sus, de Corito e Ausônia a rota segue.
Júpiter nega-te as dictéias lavras”.

Desta fala e visão estupefato
(Nem foi letargo, não; veladas comas,
Vultos, feições, eu divisar cuidava,
185 E em suor frio o corpo me escorria),
Da cama salto; ao céu tendendo as palmas,
Oro, e holocausto intemerato libo.
Completo o sacrifício, expendo alegre
Tudo a meu pai; que os troncos dois e a prole
190 Ambígua reconhece, e o novo engano
Em que antigos lugares o induziram.

“Filho, a quem de Ílion persegue o fado,
Rememorando ajunta, só Cassandra
Tal me predisse, e uns reinos prometeu-nos,
195 Que ou Hespéria ou Itália apelidava.
Mas quem tão longe crera a estância nossa?
E a quem jamais persuadiu Cassandra?
Febo o melhor nos mostra, eia, cedamos.”
Tudo ovante obedece. Alguns se ficam;
200 Os mais soltamos novamente as velas,
Cursando em cavo lenho o imenso plaino.
Ao largo os barcos, desparece terra,
Céu daqui, mar dali. Bulcão cerúleo
Feia borrasca sobre nós carrega,
205 Treva e horror pelas águas estendendo.
O vento em brenhas escarcéus levanta,
Nos joga e espalha pelo vasto pego.
Tolda-se o dia, e pluviosa a noite
Nos rouba a luz polar; rasgadas nuvens
210 Trovejam, relampeiam. Flutuamos
Sem rumo à toa; Palinuro mesmo
Perde o tino, e confunde a noite e o dia.
Nem fulge estrela nas opacas horas,
E em cerração três dúbios sóis vagamos:
215 Ao quarto, arrumação, que a olho aumenta,
Serros descobre, os topes já fumeiam.
O pano arreia-se, a vogar surdimos:
Estribada a maruja a espuma estorce,
Varre o páramo azul. Das ondas livre,
220 Ilhas do grande Jônio, em grego Estrófades,
Nas praias me recebem: nestas ilhas
Mora a cruel Celeno e as mais Hárpias,
Dês que, enxotadas, os festins medrosas
E a vivenda finéia abandonaram.
225 Monstro maior, nem divinal flagelo,
Nem peste mais voraz brotou da Estige:
Tem laxo imundo ventre e garra adunca,
Aves nojosas, com virgíneos rostos,
Magros, pálidos sempre e esfomeados.

230 No arribar, gordo armento se oferece,
Fato, sem pegureiro, pelo prado:
Investimos a ferro, e aquinhoamos
Na presa o mesmo Jove e os outros numes.
Camilhas na enseada construímos;
235 Regalado manjar nos banqueteia.
Súbito em lapso horrífico as Hárpias
Descem dos montes, a adejar ruidosas;
Pilham tudo, enxovalham, contaminam,
Mesclando a tetro odor funestos gritos.
240 Sob sáxea lapa ao longe retirados,
Cobertos de arvoredo e escura sombra,
N’ara o fogo outra vez e as mesas pomos:
De outro escond’rijo lôbrego, estrondando,
Revoa a turba em roda, e as iguarias
245 Polui com boca impura e tortas unhas.
Arma, arma, à dirá gente eis guerra intimo.
Dito e feito; escondemos sob a relva
Prestes gládios e escudos. Mal deslizam
Por curvas praias a grasnar, Miseno,
250 Que do alto espreita, o cavo bronze entoa:
Tenta-se, estranho ataque! a ferro obscenas
Marinhas aves escalar; mas golpes
No dorso ou plumas nem lesão consentem,
E em fuga, alando-se às estrelas, deixam
255 A presa mossegada e infecto rasto.
Num alcantil Celeno só pousando,
Rompe aziaga em tais vozes: “Guerra, em cima
De novilhos e bois nos estragardes!
Guerra e esbulhar quereis do pátrio reino
260 As insontes Hárpias! Pois ouvi-me,
Gravai n’alma o que a Febo, ó Laomedôncios,
O sumo rei predisse, e a mim Apolo,
E eu rainha das fúrias vos declaro.
Itália demandais, à Itália os fados
265 Com viração galerna ir vos concedem;
Mas antes que mureis o assento vosso,
Desta matança em pena, há de obrigar-vos
Crua fome a roer as próprias mesas.”
Cala, e de surto à selva se recolhe.
270 Gélido o sangue, esmorecemos todos.
Armas não mais; com votos paz rogamos,
Sejam déias, ou fúrias, torpes aves.
Da praia as mãos levanta, e os grandes numes
Com devida oferenda implora Anquises:
275 “Deuses, fora o ameaço, arredo o agouro;
À vossa pia gente auxílio, ó deuses!”

Depressa faz colher a amarra, e soltos
Os calabres safar. Noto incha as velas;
Arando o espúmeo golfo, navegamos
280 À discrição do vento e do piloto.
Já surge à flor Zacintos nemorosa,
Dulíquio e Samos, Néritos alpestre:
Do Ítaco sevo a praguejar o berço,
Os laércios cachopos esquivamos.
285 Descobrem-se de Leucate os nimbosos
Topes, e Apolo aos nautas formidável:
Subimos lassos o pequeno burgo.
Da proa âncora deita-se, amarramos
À borda as popas. Do insperado solo
290 De posse enfim, celebro o lustro a Jove,
Com votos ara acendo, e em tróicos ludos
A acíaca ribeira festejamos;
Taís, nus e ungidos, pátria luta exercem:
É grato, a salvo de inimigos, termos
295 Tanta cidade argólica passado.

Do ano maior a volta o Sol completa,
Gelo hiemal com nortada encrespa os mares.
O éreo cavo broquel do grande Abantes
Do portão prego em meio, e em baixo inscrevo:
300 “Ao Danao vencedor ganhou-o Enéias.”
Largar mando, e em seus bancos os remeiros
Varrem, qual mais, as percutidas vagas.
Dos Feaces escondo aéreos cimos,
Costeio o Épiro, aporto na Caônia,
305 Monto à celsa Butroto. Incrível soa
Que reina aqui Priamides Heleno,
Que do Eacide o toro e graio cetro
Ele os desfruta, e Andrômaca de novo
A cair veio a natural marido.
310 Confuso e em curiosa ânsia abrasado
De escutar ao varão tamanhos casos,
Traspasso o porto, praia e naus deixando.
N’aba de um Simois falso, à hectórea cinza
Festim solene acaso e dons funéreos,
315 Num luco fora, Andrômaca libava,
Os manes evocando ao que de ervosa
Céspide vácuo túmulo sagrara,
E altares dois, a prantear motivo.
Ao distinguir-me e ao ver troianas armas,
320 Se espanta e embaça, atônita desmaia;
Só quando os ossos o calor cobraram:
“Vives? murmura; és tu, divina prole?
Ou se incorpóreo núncio a luz não gozas,
Que é de Heitor?” E inundando-se-lhe as faces,
325 De lamento enche o bosque e de suspiros.
Bem pouco respondendo a seus transportes,
Conturbado boquejo em troncas frases:
“Sim vivo, e a todo o extremo arrasto a vida;
É real quanto vês. Ai! despenhada
330 Do ínclito esposo a tanto aviltamento,
Como o decoro enfim recuperaste?
Andrômaca de Heitor, inda és de Pirro?”

De pejo o rosto abaixa, e em tom submisso:
“Ó só feliz a priaméia virgem
335 Que imolada morreu sobre hostil campa
Nos pátrios muros! Não provou da sorte
Lance algum, nem cativa a heril alcova
Tocou do vencedor! Nós, Tróia em fogo,
De mar em mar rojadas, suportámos,
340 Na servidão parindo, o fausto e orgulho
Do Aquileu caprichoso; o qual à Esparta
Indo aliar-se a Hermione Ledéia,
Escrava me transmite a Heleno escravo.
Mas, do roubo da esposa ardendo em zelos,
345 Das fúrias agitado, o atroz Orestes
De improviso o degola às pátrias aras.
Recaiu, morto Pirro, em parte o reino
A Heleno, que chamou Caônio o campo,
Caônia a terra, de Caon Troiano;
350 Pérgamo, Ílio, é no morro a cidadela.
Qual porém te dirige ou vento ou fado?
Que deus te arroja ignaro às nossas praias?
Onde o que te nasceu já Tróia em sítio?
D’aura mantém-se Ascânio? inda saudoso
355 Da mãe se lembra que perdeu na infância?
Hombridade lhe inspira e esforço antigo
Ser Enéias seu pai e Heitor seu tio?”

Tal num contínuo choro em vão carpia;
Quando com toda a corte o herói priâmeo
360 Das muralhas se adianta, e prazenteiro,
Os seus reconhecendo, os encaminha,
E entre falando largo pranto verte.
No irmos, deparo as tênues Ílio e Tróia,
E árido arroio que simula o Xanto;
365 Abraço-me aos umbrais da porta Scéia.(15)
Desta sócia acolhida os meus se logram:
Régios pórticos amplos os recebem.
Copos do paço em meio a Baco encetam,
Sobre ouro comem, taças de ouro empunham.

370 Corre dia após dia: ao sopro austrino,
Que nos convida, o cárbaso intumesce.
Entro a Heleno e o conjuro: “Ó tróico vate,
Que, dos divos intérprete, os influxos
Do Clário Febo, as trípodes, os louros,
375 Que os astros, que dos pássaros as línguas
Sentes, e avisos da ligeira pena
(Pois feliz curso oráculos me cantam,
E, a ir dos deuses todos persuadido
Da Itália em busca a regiões remotas,
380 Celeno só me augura um monstro infando,
E iras fatais e depravada fome),
Dize, eia, que perigo evitar urge?
Como superarei trabalhos tantos?”

Já do uso as reses mata, e exora o antiste
385 Aos divos paz, da fronte sacra a touca
Desata, e a mim venerabundo e absorto
Pela mão, Febo, ao templo teu me guia,
E a profética boca desencerra:
“Com mor auspício é fé que tu navegas,
390 Filho de Vênus: tal baralha as sortes,
E as encadeia e liga o rei dos numes,
Por que sulques melhor ignotos mares,
E ancores a teu salvo em porto ausônio,
Vai do muito expender-te um pouco Heleno;
395 Que o mais, sabê-lo as Parcas me proíbem,
Ou falar veda-me a Satúrnia Juno.
Primeiro, a Itália próxima, onde cuidas
Que aportas breve, t’a separa e afasta
Com longas terras ínvia longa via.
400 N’água sicana o remo vergar deves,
E o salso golfo Ausônio, o lago Averno,
E a ilha percorrer de Circe Eéia,
Antes que assento firme estabeleças.
Dou-te os sinais, conserva-os: quando achares,
405 Cuidoso à margem de secreto rio,
De enzinha litoral deitada à sombra,
Grande e recém-parida, uma alva porca
A trinta alvos leitões amamentando,
Ali terás descanso, ali cidade.
410 Quanto a roer as mesas, não te assustes:
Rumo há de achar o fado e ouvir-te Apolo.
Destas partes porém, da extrema Itália
Que as das marés do Jônio enchentes lavam,
Safa-te; são de Gregos infestadas.
415 Aqui fixaram-se os Narícios Locros,
E o Líctio Idomeneu cercou de tropas
Os campos de Salento; aqui munida
A pequena Petília Filoctetes
Melibeu tem. Mas quando, além dos mares
420 Surta a frota e na praia erguidas aras,
Os votos cumpras, de purpúreo amicto
Vela a cabeça; a fim que hostil aspecto
Não turbe o agouro. Aos teus nos sacrifícios
Tal seja o rito, observa-o; permaneçam
425 Nesta religião sem falha os netos.

Como à Sicânia te aproxime o vento,
Já claro o estreito passo do Peloro,
Costeia à esquerda com circuito longo,
A destra borda foge e destras ondas.

430 Por convulsão violenta e vasta ruína,
Este lugar, se conta, há largas eras
(Do tempo o que não muda a vetustade?)
Se espedaçou, formava um continente:
Neptunina irrupção rasgou da Hespéria
435 Sicília; augusto braço as lavras parte,
Banha as cidades e limita as praias.
Cila a direita ocupa; e d’água, à sestra,
Grandes golpes três vezes no atro abismo
Caribdes implacada a pique sorve,
440 Três revessa e esguichando açouta os astros.
Presa arreganha a boca e as naus às pedras
Cila atrai, em cego antro: cara de homem,
Do colo ao púbis moça linda, em ceto
Remata enorme, e em útero de lobos
445 Se lhe articulam de delfins as caudas.
O Pachino(16) dobrado, em roda a viagem
Antes ir prolongando, que a disforme
Cila encarar sequer, e a furna horrenda
Com seus cerúleos cães saxissonante.
450 Sobretudo, se hás fé no auspice Heleno,
Se prudência lhe assiste e o enche Apolo,
Só te isto, ó prole diva, amoesto e prego,
E repito e reitero: a Juno excelsa
De grado o nume adora, e a soberana
455 Preces, votos e súplicas abrandem:
É como finalmente vitorioso,
A Trinácria trasposta, irás à Itália.

A Cumas tu chegado, e aos lagos santos
Lucrino e Averno de sonoras matas,
460 Verás no imo rochedo a vate insana
Que os fados canta, e letras, nomes, carmes
Grava e encomenda às folhas, e os numera.
Na gruta eles fechados, não se bolem,
Em ordem se mantêm; mas, se uma aragem
465 Da porta os gonzos vira, encana, e as tenras
Folhas baralha, avoejar a virgem
Pela caverna os deixa, nem mais cura
De arranjar, de os colher: e os inconsultos
Vaõ-se, a cova e a Sibila esconjurando.
470 Posto que da tardança os teus murmurem,
Que plenas velas amarar te possam
Boleadas à feição, dali não partas,
Sem que a teus rogos ela a voz desprenda
E oráculos resolva. Há de a Cuméia
475 As guerras te explicar, d’Itália os povos,
Trabalhos como evites, como os sofras;
E obter-te venerada o salvamento.
Basta; nem de al me é lícito avisar-te.
Anda, engrandece a Tróia, aos céus te exalça.”

480 Tal profetava amigo, e às naus dons manda
Graves de ouro e elefântico embutido,
De argênteos vasos e dodôneos cassos
Abarrota os porões; de malha ajunta
Loriga auritrílice e um capacete
485 De comante cocar, cimeira insigne,
De Pirro arnês. Presentes faz a Anquises.
De práticos nos supre e de remeiros,
Cavalos doa, os sócios provê de armas.

Meu pai de verga d’alto apresta a frota,
490 Que os ventos de servir não desperdice.
Cortês o augur o acata: “Aceito esposo
Da Cípria em celso toro, ó caro aos deuses,
Das perdas ambas de Ílion salvado,
Ei-la, à fronteira Ausônia aproa e voga.
495 Todavia hás mister passar avante:
Dista a paragem que te Apolo inculca.
Vai-te, ó pai venturoso de um tal filho!...
Que! tardo, estorvo os astros que já surgem?”

Não menos boa Andrômaca, à partida,
500 Frígia clâmide a Ascânio traz saudosa,
E roupas de matiz de áureo brocado;
De finas teias o acumula, e fala:
“Do próprio meu lavor, toma estes mimos,
Que testifiquem sempre e te relembrem
505 Da viúva de Heitor, filho, a ternura:
Dos teus recebe as derradeiras prendas,
Só do meu Astianaz tu viva imagem:
Tinha teus olhos, tuas mãos, teu rosto,
E eqüevo hoje contigo enrubescera!”

510 O adeus lhes digo, em lágrimas desfeito:
“Vivei felizes, vosso fado encheu-se;
De transe em transe o nosso nos repulsa.
Já descansais; de arar não tendes mares,
Nem de ir à Itália, que se furta e alonga:
515 D’Ílio e do Xanto contemplais a efígie,
Feitura vossa; com melhor auspício,
Oh! menos seja exposta ao dolo argivo!
Se os campos chego a ver que banha o Tibre,
E à minha gente os prometidos muros,
520 Das propínquas cidades consangüíneas
E dos povos irmãos, no Lácio e Épiro,
Faremos na harmonia uma só Tróia:
Guarde-se este cuidado aos nossos netos.”

Os litorais Cerâunios perpassamos,
525 Donde à Itália é brevíssimo o trajeto.
Cai o Sol, cobre a treva opacos montes:
Sorteiam-se os remeiros, e encostados
No seco doce grêmio, à borda, em ranchos
As forças reparamos; lassos corpos
530 Rega um sono ferrado. Em meio giro
Nem inda a noite as horas conduziam:
Da cama esperta Palinuro; explora,
Cata os ventos, fareja e escuta os ares;
Fita as constelações que resvalavam
535 No mudo espaço; as Híadas chuvosas,
Os gêminos Triões, o Arcturo observa,
E Orion de alfanje de ouro. O céu sereno
Acha; e ao claro sinal que fez da popa,
Tentando a via, os arraiais movemos,
540 E às naus as pandas asas desfraldamos.
Já rubra aurora afugentava os astros,
Quando obscuros outeiros enxergamos
E a baixa Itália. Itália eis brada Acates;
Todos Itália a jubilar saúdam.
545 Uma grande cratera o padre Anquises
Então coroa, do mais puro cheia,
E em pé na celsa popa: “Ó deuses, clama,
Que regeis mar e terra e tempestades,
Fácil caminho e sopros dai favônios.”
550 Refresca o vento; e, a barra já patente,
Num morro o templo de Minerva alteia.
Colhida a vela, ao porto proejamos:
Ele ao nascente arqueia; em face, espúmea
Salsi-aspergida rocha o esconde, o abrangem
555 Com duplo muro torreadas penhas,
Vai-se da praia o templo retirando.
Primeiro agouro, aqui ginetes quatro,
Alvos de neve, o prado à larga tosam.
E meu pai: “Guerra inculcas; para a guerra
560 Se armam, solo hospedeiro, esses cavalos;
Guerra o armento ameaça. Ao carro afeitos
Todavia os quadrúpedes no jugo
Inda podem sofrer concordes freios:
Esperança há de paz.” À deusa oramos
565 Armíssona, que à entrada agasalhou-nos
Ovantes; e, ante as aras frígio amicto
Nos velando as cabeças, como Heleno
Prescrevera, incensada especialmente
Juno honramos Argiva. À risca e em ordem
570 Cumprido o voto, as pontas reviramos
Das antenas velíferas, suspeitos
Sítios que habitam Gregos desertando.
De Tarento se avista o seio, hercúlea,
Se é vera a fama: em frente se levanta
575 Lacínia diva, e o Cilaceu navífrago,
E as torres de Caulon. Distante assoma
O sículo Etna: ouvimos longe o equóreo
Rouco gemido, o embate nos cachopos,
Quebrado o eco na praia; os vaus ressaltam,
580 As areias remexe a marulhada.
E Anquises: “Não me engano, esta é Caribdes,
O de Heleno cantado imano escolho.
Certa a voga puxai, livrai-nos, sócios.”
Disse e cumprem: no instante Palinuro
585 Contorce à esquerda a rugidora proa;
Mareia à esquerda a frota, à esquerda rema.
Curvado o pego ao éter já nos sobe,
Já desfeito o escarcéu nos baixa aos manes.
O sáxeo boqueirão três vezes ronca;
590 Três espadana a espuma e os céus orvalha.

Fatigados nos deixa o Sol e o vento:
Dos Ciclopes à costa arribo às cegas.
Vasto e abrigado o porto, ao pé, cimeiro
Com horríficas ruínas o Etna toa:
595 Ora, atra pícea fumegante nuvem
E candentes fagulhas borbotando,
Flâmeos globos despede e os astros lambe;
Ora extirpadas vísceras do monte
Vomita e expulsa, e a lava no ar glomera,
600 E a mugir no imo abismo o vulcão ferve.
De um raio chamuscado, é voz que pesa
Sobre Encélado a mole do Etna ingente,
Que das rotas fornalhas fogo expira;
E, se de lado por cansaço muda,
605 Do rebramar toda a Trinácria treme
E o céu do fumo tolda. A noite, ocultos
Nas selvas, tais fenômenos curtimos,
Sem do horroroso estrondo a causa vermos;
Que astro nem ar sidéreo esclarecia
610 O carregado pólo, e envolta a Febe
Tinha em manto nimboso a escuridade.

O albor já despontava, e a nova aurora
Removera a noturna umente sombra:
Da mata rompe estranha forma de homem,
615 Magro e mirrado, inculto e miserando;
E às praias suplicante as mãos estende.
Olhamos: sujo, ascoso, hirsuta a barba,
De espinhos cobre-o andrajo apontoado;
Grego no mais, dos que invadiram Tróia.
620 A armadura avistando e o frígio trajo,
Retém-se um pouco, aterrorado estaca;
Logo precipitando-se, a nós corre
Com pranto e rogo: “Pelos céus obsecro,
Pelos deuses e est’aura que respiro,
625 Por onde fordes me levai, Troianos:
É quanto basta. Fui da armada grega,
Sim fiz guerra aos ilíacos penates:
Se é tamanho o meu crime, ao ponto fundo
Atirai-me, afogai-me nestas vagas.
630 De homens se morro às mãos, contente morro.”
Prostra-se, os pés me abraça, e tem-se às voltas,
A confessar quem seja o acorçoamos,
Qual sua origem, que fortuna o agite.
Sem mais demora dá-lhe a destra Anquises;
635 Deste penhor se anima, e diz afoito:
“Ítaco sou, do infortunado Ulisses
Companheiro, Aqueménides me chamo:
Pobre (oxalá durara nesse estado!)
Adamasto meu pai fez-me ir a Tróia.
640 Na pressa de escapar da estância crua,
Os meus cá me olvidaram, do Ciclope
Na cova. Opaca, enorme, em sânie escorre
Da carniça: ele (ó céus, bani tal peste!)
Árduo empinando-se, as estrelas pulsa;
645 Taciturno, feroz, desconversável,
Cruor o ceva e entranhas de infelizes.
Eu mesmo o vi, na furna ressupino,
A mão disforme a dois lançar dos nossos,
Num rochedo esbarrá-los, e em sangueira
650 A espelunca nadar; vi mastigados,
Tábido humor os membros estilando,
Tépidos entre os dentes lhe tremerem,
Que impune folgue, Ulisses não suporta,
Nem de quem é se esquece em tanta afronta.
655 Mal, sepulto em vinhaça e farto impando,
Pousa o inflexo pescoço e jaz na gruta
Imenso, e carnes e o bebido e o sangue
Alija a ressonar; por sorte a postos,
Orando, a um tempo e em roda o acometemos;
660 E, em vingança dos manes dos amigos,
D’haste aguda o só lume lhe furamos,
Na torva testa oculto, e na grandura
Broquel argivo ou lâmpada febéia.
Sus a amarra picai, fugi, mesquinhos;
665 Pois tais, qual Polifemo em antro escuro
O lanígero gado amalha e munge,
Moram Ciclopes cem por essas praias,
Descompassados pelos montes vagam.
Três luas têm de luz enchido os cornos,
670 Dês que entre brenhas por covis me arrasto,
De um serro espreito os monstros, e estremeço
Do estrupido e da voz. Mísero pasto,
Colho bagas, pilritos lapidosos,
De ervas e raízes arrancadas vivo.
675 Sempre alerta, avistando a frota vossa,
De ir-me a ela assentei, qualquer que fosse:
Não é pouco evadir-me à gente infanda.
Matai-me, se o quereis; prefiro a morte.”

Nem acabava, e num cabeço vemos,
680 Entre os gados movendo a vasta mole,
O pastor Polifemo, às notas praias
A descer; monstro horrendo, informe, ingente,
A quem vazou-se o olho, e tenteando
Num pinheiro esgalhado se abordoa.
685 Grei lanosa o acompanha, o só deleite,
O alívio seu: do colo a flauta pende.
Depois que as águas toca e mais se engolfa,
Do olho escavado lava o humor cruento,
E a gemer range os dentes. Já no meio
690 Anda, e as altas espáduas não molhava.
Acelerando a fuga, o suplicante
Com razão recolhido, nós cortamos
Tácitos as amarras, e encurvados
Remando à competência, o mar varremos.
695 Sentiu-nos, e ao sonido os passos torce.
Mas, deitar-nos a destra não podendo,
Nem ao alcance igualar do Jônio a altura,
Desmarcado urro dá, com que de espanto
Tremeu toda a Trinácria, e o ponto e as ondas;
700 Do Etna as cavernas ocas remugiram.
Da espessura e montanhas rui e acode
Dos Ciclopes a raça e inunda as praias.
Quedos e embalde a olhar com torvo lume,
Esses etneus irmãos, congresso horrível!
705 Mostram-se desferindo aos céus as frontes:
Quais aéreos carvalhos, no mor auge,
Ou ciprestes coníferos topetam,
De Jove em mata ou luco de Diana.
Urge o medo a soltar cabos e velas,
710 E ir à feição dos ventos. Mas Heleno
Entre Cila e Caribdes proibiu-nos
Seguir a letal via: à orça o linho,
Toca a virar. Eis Bóreas venta amigo,
Do estreito do Peloro: a foz transponho
715 Do Pantágias aberta em roca viva,
E o sino de Megara e Tapso humilde.
Tendo a costa Aqueménides corrido
Com o Ítaco infeliz, tudo apontava.

Contra o Plemírio undoso, ilhota ao golfo
720 Sículo opõe-se: a Ortígia dos antigos.
O Alfeu d’Élide, é fama, aqui rompera
Submarino; hoje mescla-se, Aretusa,
Por tua boca nas sicanas ondas:
Lembrado, os numes do lugar venero.
725 Passo do Heloro o pingue alagadiço;
Terra a terra, os penedos do Paquino
E o saliente cabo. A não mover-se
Fadada, lá nos surge Camarina,
De Gela os campos e a cidade amplíssima,
730 Que do rio que os banha se apelidam.
O árduo Agragante, gerador outrora
De briosos corcéis, de longe ostenta
Grã muralha. De ti me aparta o vento,
Palmífera Selinis; e traspasso
735 Os parcéis lilibeus de escolhos cegos;
Drépano desalegre enfim me aloja.
Aqui, repulso à força de borrascas,
Ah! perco o genitor, na angústia e penas
Meu só conforto: a mim desconsolado
740 Ai! tu, de riscos mil vãmente ileso,
Aqui, ótimo pai, tu me abandonas.
Tais lutos, augurando Heleno horrores,
Não mos predisse, nem a infausta Hárpia.
Eis o último trabalho, eis a baliza
745 De navegações longas. Deste porto
Um deus fez-me arribar às vossas praias”.

Assim, tudo em silêncio, o padre Enéias
Divinos fados enarrava, e expunha
Tanto peregrinar. Calou-se a ponto,
750 E, findo o seu dizer, foi repousar-se.

publicado por centrallgames às 00:44
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eneida de virgílio:obra completa(2)

LIVRO II

 

Prontos, à escuta, emudeceram todos,
Ao passo que exordia o padre Enéias
Do excelso toro: — Mandas-me, ó rainha,
Renove a dor infanda; o como os Danaos
5 D’Ílio a pujança e o reino lamentável
Derrocaram; misérias que eu vi mesmo
E em que fui grande parte. Ao relatá-las,
Dolope ou Mirmidon, de Ulisses duro
Há soldado que as lágrimas estanque?
10 E úmida a noite já do céu descamba,
E as estrelas caindo ao sono induzem:
Mas, se é teu gosto ouvir os nossos casos,
E em breve o extremo afã saber de Tróia,
Bem que à lembrança luto e horror me esquivam,
15 Narrá-los vou. Repulsos, quebrantados,
Pós tantos anos de fatais reveses,
Os Danaos um cavalo em ar de monte,
Divina arte de Palas, edificam,
Lavram de abeto as intecidas costas:
20 Ser da tornada um voto à surda espalham.
No cego lado, os bravos sorteando,
A escolha incluem, de hoste armada enchendo
O antro profundo e lôbregas entranhas.

Jaz Tenedos à vista, ilha famosa,
25 Próspera à sombra do priâmeo cetro;
Hoje ermo porto, às quilhas mal seguro:
Numa abra ali se escondem. Nós os cremos
Velejando na rota de Micenas.
Têucria do largo nojo enfim respira:
30 Abrem-se as portas, vai-se ao dório campo;
Grato é vê-lo deserto e a praia nua:
“Os Dolopes aqui, Pelides fero
Se abarracava; aqui das naus a estância;
Combatia-se aqui.” Mirando a turba
35 A oferta exicial da inupta deusa,
A mole a espanta: e lembra-nos Timetes,
Ou fosse dolo ou sina já de Tróia,
Dos muros pô-lo dentro e no castelo;
Mas Cápis aconselha, e os de mais tino,
40 Que ao pego o dom suspeito e grega insídia
Se atire ou queime em sotopostas chamas,
Ou se broque e tenteie o bojo escuro.

Enquanto incerto e vário alterca o vulgo,
Ardendo Laocoon da cidadela
45 Corre com basto séquito, e de longe:
“Míseros cidadãos, que tanta insânia!
De volta os Gregos ou de engano exemptos(8)
Seus dons julgais? desconheceis Ulisses?
Ou este lenho é couto de inimigos,
50 Ou máquina que, armada contra os muros,
Vem cimeira espiar e acometer-nos.
Teucros, seja o que for, há dano oculto:
No bruto não fieis. Mesmo em seus brindes
Temo os Danaos.” De esguelha, assim falando,
55 À curva liação do ventre eqüino
Com braço válido hasta ingente arroja:
Pregada está tremendo, e ao rijo encontro
Longo geme e retumba a atra caverna.
E, a não ser o destino e a mente avessa,
60 Nos movera os argólicos recantos
Com ferro a devassar: e inda em pé Tróia,
Inda, alcáçar de Príamo, estarias.

Eis atrás maniatado alguns pastores
Ao rei com vozeria um moço trazem;
65 Que arteiro, ignoto, adrede os encontrara,
De ânimo firme em dar aos Gregos Tróia,
Ou na empresa acabar. Curiosa acode,
E ávida se atropela e o cerca e apupa
A rapazia. Agora ouve a tramóia,
70 Por um crime avalia os Danaos todos.
Perante a multidão, turbado, inerme,
Pára, e olhando circunda as frígias turmas:
“Que mar, grita, ou que terra há de acolher-me?
Ai! que me resta? A pátria proscreveu-me,
75 E os Dárdanos meu sangue infensos pedem!”

Tal pranto nos demove e o furor quebra:
Sua estirpe o exortamos a contar-nos;
Que intento o conduziu, que fé mereça.
Perde o susto o cativo, e assim responde:
80 “Toda a verdade, ó rei, sincero expendo.
D’antemão que sou Grego não to nego:
Tornar pode a Sinon fortuna escassa
Mísero sim, mas embusteiro nunca.
Talvez já te soasse o nome e a glória
85 Do afamado Belides Palamedes;
Que, sendo oposto à guerra, atroz calúnia
O acusou de traição, e hoje os Pelasgos
Com tardio pesar extinto o choram:
Pobre meu pai, com ele seu parente,
90 Mandou-me inda novel seguir as armas.
Quando o reino o atendia e assim medrava,
De algum nome e esplendor também gozámos:
Depois que a inveja do manhoso Ulisses,
Deste mundo o tirou, como é notório,
95 Mesto arrastando a vida em treva e luto,
O suplício traguei do insonte amigo;
Té que, insano a bramir, vingá-lo juro,
Se vencedor voltasse ao grêmio de Argos,
E ásperos ódios imprudente afio.
100 Daqui mana meu mal: daqui terrível
Sempre a assacar-me Ulisses novos crimes,
A espargir pelo vulgo ambíguas vozes;
Sempre em remorsos e a tecer meu dano.
Não descansou, sem que o ministro Calchas...
105 Mas que importuna história em vão recordo?
Por que deter-me? Se os Aquivos todos
Tendes na mesma conta, assaz ouvistes,
Em mim puni-os: o Ítaco o deseja,
Pagá-lo-ão por bom preço os dois Atridas.”

110 Do ardil pelasgo e infâmia tanta ignaros,
Com ardor à porfia o interrogámos.
Pávido o gesto, e pérfido prossegue:
“Lassos da guerra, o assédio erguer tentaram...
Oxalá que os Argivos o acabassem!
115 Mas, no abalar, os retiveram sempre
Crespas tormentas, carrancudos austros.
Pronta essa mole de tecidos lenhos,
Mais borrascoso trovejou. Perplexos,
Ao délio templo Eurípilo enviámos;
120 Que este oráculo triste anunciou-nos:
“Com sangue, ó Danaos, de imolada virgem,
Ao vir a Tróia, os ventos aplacastes;
Sangue requer a volta, e de hóstia grega.
Divulgada a sentença, o espanto cala,
125 Gelo os ossos traspassa, e tremem todos
Sobre a quem busque a Parca e o deus condene.
Então com grande estrondo ao campo Ulisses
Traz Calchas, e insta que o mistério aclare:
Muitos, já do perverso lendo n’alma,
130 Em silêncio o porvir me adivinhavam.
Dez dias encerrado, o vate abstém-se
De delatar alguém e à morte expô-lo.
Do Laércio ao clamor, como por força,
A voz desata enfim, me fada às aras.
135 O assenso foi geral: cada um tolera
Que a sorte que temia em mim recaia.
Negreja o dia infausto: o rito encetam,
Cingem-me a venda, o salso farro aprestam.
Rompo as cordas, confesso, a morte evito;
140 Nos juncos de um paul me abriga a noite,
Enquanto às velas davam, se é que as deram.
Nem mais espero ver meu ninho antigo,
Nem meu querido pai, meus doces filhos,
Que vítimas quiçá por mim padeçam,
145 Esta fuga expiando. Pelos deuses
Que atesto, exoro, se entre humanos inda
Há limpa fé, tem mágoa de ânsias tantas,
Perseguida inocência te comova.”

De puro dó a vida lhe outorgámos;
150 E o mesmo rei, mandando aliviá-lo
De algemas e prisões, lhe disse afável:
“Qual sejas, serás nosso, os teus deslembra.
Quem, fala-me a verdade, o imano vulto
Fabricou desse monstro? a que o destinam?
155 É religião? é máquina de guerra?”

Imbuído o falsário em dolo argivo,
Soltas palmas levanta, e aos astros clama:
“Eternos fogos, inviolável nume,
Aras, cutelos, que evadi, nefandos,
160 Mortal banda que a fronte me adornavas,
Testemunhas me sede: os meus renego;
Traído eu possa ao claro descobri-los:
Juramento nem lei me liga à pátria.
Se alto arcano revelo, em ti fiado,
165 Tu, salvada por mim, salva-me, ó Tróia.
Sempre a Grécia no auxílio de Tritônia
Estribou seu triunfo, até que ousaram
Ímpio Tidides, celeroso Ulisses,
Matando os guardas, o fatal paládio
170 Roubar do santuário, e à deusa as fitas
Virgíneas profanar com mão cruenta.
Os Danaos, da esperança decaídos,
Afrouxam de energia. Bem mostraram
Vários prodígios a aversão de Palas:
175 Posta a efígie entre nós, dos hirtos lumes
Fuzis desprega, em salso humor escorre,
Do chão três vezes, ó milagre! pula,
E a rodela desfere e a lança trêmula.
Que o mar se tente asinha o canta o vate:
180 Que em vão dardejam Tróia, se indo em Argos
O auspício renovar, não reconduzem
O em curvos bojos transportado nume.
E, se à pátria Micenas já navegam,
Vão refazer-se e granjear os deuses;
185 Mas, repassando o pélago, improvisos
Serão convosco: a profecia é esta.
Da diva em desagravo, amoesta-o Calchas.
De lígneas traves, em lugar da estátua,
Esta mole estupenda construíram;
190 Que pelas portas, altaneira às nuvens,
Nem possa entrar na praça, nem do povo,
Segundo a crença antiga, ser custódia:
Pois, se braço troiano o dom violasse...
(Antes ao vate o agouro os céus convertam)
195 Raso iria este império; e, se vós mesmos
Dentro o metêsseis, desceria armada
Ásia em peso às muralhas pelopéias,
Fado que abarcaria os nossos netos.”

Do perjuro Sinon foi crido o engano;
200 E aos que Tidides, nem o Larisseu,
Dez anos, quilhas mil, nunca domaram,
Vencem dolos e lágrimas traidoras.

Nisto, o monstro maior, mais formidável,
Impróvidos nos turba. À sorte eleito,
205 O antiste Laocoon com sacra pompa
A Netuno imolava um touro ingente.
De Tenedos (refiro horrorizado)
Juntas, direito à praia, eis duas serpes
De espiras(9) cento ao pélago se deitam:
210 Acima os peitos e as sangüíneas cristas
Entonam; sulca o resto o mar tranqüilo,
E se encurva engrossando o imenso tergo.
Soa espumoso o páramo salgado:
Já tomam terra; e, em sangue e fogo tintos
215 Fulmíneos olhos, com vibradas línguas
Vinham lambendo as sibilantes bocas.
Tudo exangue se espalha. O par medonho
Marchando a Laocoon, primeiro os corpos
Dos dois filhinhos seus abrange e enreda,
220 Morde-os e come as descozidas carnes:
E ao pai, que armado ocorre, ei-las saltando
Atam-no em largas voltas; e enroscadas
Duas vezes à cintura, ao colo duas,
O enlaçam todo os escamosos dorsos,
225 E por cima os pescoços lhes sobejam.
De baba e atro veneno untada a faixa,
Ele em trincar os nós com as mãos forceja,
E de horrendo bramido aturde os ares:
Qual muge a rês ferida ao fugir d’ara,
230 Da cerviz sacudindo o golpe incerto.
Vão-se os dragões serpeando ao santuário,
E aos pés da seva deusa, enovelados,
Sob a égide rotunda ambos se asilam.

Cresce o pavor, os corações retremem:
235 Pregoam justa a pena ao temerário
Que a ponta de ímpia lança no costado
Fincou do sacro roble; e o simulacro
Bradam que se recolha e se ore a Palas.
Ferve a gente; a muralha e as portas rasga,
240 Leves rodas por baixo e ao colo ajeita
Cabos tendidos. Prenhe de armas, sobe
A máquina fatal: em torno a coros
Cantam meninos e devotas virgens,
De tocarem na corda mui contentes.
245 Através da cidade ela soberba
Vai minaz resvalando. Ó pátria! ó Ílio!
Invictos muros, divinal estância!
Berço de heróis! À entrada quatro vezes
Pára, e quatro restruge um rumor de armas.
250 Surdos, cegos instando, o monstro infausto
Ah! no augusto recinto o colocamos.
Fadada a não ser crida, então Cassandra
Abre o futuro; e os templos nós dementes
Naquele de Dardânia último dia,
255 De virentes festões velando fomos.

Vira o céu, no oceano a noite cai,
E em basta sombra envolve a terra e o pólo
E a mirmidônia astúcia: ante as muralhas
Derramada em silêncio, a tróica gente
260 Em modorra ensopava os lassos membros.
Já, da tácita Lua ao mudo amparo,
De Tenedos partia às notas praias
A instructa armada, e a capitânia régia
Sinal flâmeo iça à ré. De iníquos deuses
265 Sinon valido, a furto os píneos claustros
Laxa; e o cavalo, devassado, às auras
Rende as falanges que no ventre aloja.
Por um calabre escorregando, alegres
Baixam do cavo seio os cabos Toas,
270 Tissandro e Stenelo, o maldito Ulisses,
Atamante e Pelides Neoptolemo,
E Macaon primeiro e Menelau,
E autor da máquina o engenheiro Epeu.
Tróia invadem sepulta em sono e vinho:
275 Matam a guarda, os seus na brecha esperam,
E os batalhões de acordo se encorporam.

Era quando aos mortais começa e côa,
Divino dom, gratíssimo descanso:
Tétrico Heitor em sonhos se me antolha,
280 Debulhando-se em pranto; como outrora,
Negro do pó cruento a biga o arrasta,
Os loros arrochando os pés tumentes.
Ai! quão mudado! Aquele Heitor não era
Que no espólio volveu do próprio Aquiles,
285 E lançou teucra flama às popas graias.
Pegada a grenha em sangue, a barba esquálida,
Crivam-no golpes cem, que junto aos muros
Paternos recebeu. Chorando eu mesmo
Parecia arguí-lo em mesto acento:
290 “Ó luz dardânia, segurança e apoio!
Donde vens? que detença! Em tal estado
Só te avistamos, caro Heitor, agora
Oue a cidade agoniza e os teus perecem?
Que ato indigno afeou teu rosto ameno?
295 Que feridas são essas?” Ele nada,
De vãs queixas não cura, e grave arranca
Fundo suspiro: “Hui! foge, o incêndio medra,
Foge, filho da deusa: em preia aos Danaos
Rui do fastígio Tróia. Assaz fizemos
300 Pelo rei, pela pátria. Esta só destra,
A haver defensa, defendera Pérgamo.
Seu culto Ílio te fia e seus penates:
Toma-os contigo; o pélago discorram,
Té que lhes fundes majestoso alcáçar.”
305 Disse, e tirou dos penetrais as fitas
E a poderosa Vesta e o fogo eterno.

A cidade se afunde em grita e pranto;
E, inda que num retiro entre arvoredos
Meu pai habite, mais clareia o estrondo,
310 Recresce mais e mais o horror das armas.
Sacudo o sono, ao píncaro da torre
Trepo, ouvidos apuro. Tal, se a queima
Soprando o bravo sul cai na seara;
Tal, se grossa torrente despenhada
315 Arrasa o campo e as ledas sementeiras,
Prostra o lavor dos bois, aluídas selvas
Arrebatando; lá do sáxeo cume
Pasma néscio o pastor que o ruído escuta.
Ei-la a fé grega manifesta, e nua
320 A traição: de Vulcano ao vivo impulso
A ampla casa a Deifobo(10) já desaba;
Já próximo arde Ucalegon; ao largo
Nos fretos do Sigeu reluz a flama:
Clangor de tubas e alaridos soam.
325 Das armas ferro, desatino, e em armas
Doido onde vá não sei; mas na ânsia fervo
De socorrer com gente a fortaleza:
A ira me precipita; e quanto é belo
O morrer pelejando à mente ocorre.

330 Eis Panto escapo dentre aquivas lanças,
Panto, filho de Otreu, de Febo antiste,
Com sacro espólio, com vencidos numes,
Do alcáçar pela mão traz um netinho,
Fora de si vem vindo à estância minha.
335 “Ah! Panto, que é da pátria? onde o conflito?
A que posto acudir?” E, ele em soluços:
“O termo veio, o inelutável dia;
Já fomos, Tróia foi-se e a glória sua:
A Argos transferiu tudo o fero Jove;
340 Na cidade combusta a Grécia impera.
Assoberbando a praça, o monstro eqüino
Batalhões verte; e ufano ateia incêndios
O insultante Sinon: da gran’(11) Micenas
Quantos jamais vieram, se apinhoam
345 Nas bipatentes portas, e aos milhares
As gargantas e ruas pejam de armas:
O gume do aço agudo a ferir prestes
Nu lampeja: o combate apenas tentam
Das portas as primeiras sentinelas,
350 E em cego marte resistir se atrevem.”
O Otríades me instiga e etéreo influxo:
Vôo, entre o ferro e o fogo, onde a sinistra
Erínis por mim chama, onde o bramido,
Onde o clamor nos astros retroando.
355 Com Rifeu se me agrega o estrênuo Ifito,
E em reforço ao luar Dímas e Hípanis
Reconheço, e o Migdonides Corebo;
Jovem que, por Cassandra insano ardendo,
A Ílion pouco havia era chegado
360 Em auxílio do sogro e do seu povo:
Ai! que a pressaga voz descreu da esposa.

Ao ver tão nobre audácia: “Ó peitos, brado,
Fortíssimos em vão, se a todo o extremo
Vosso anelo é seguir-me, o torvo aspecto
365 Olhai das coisas. Deste império esteios,
Os deuses, desertando aras e templos,
Foram-se todos: à cidade acesa
Tarde acorreis: morramos, pelas armas
Rompamos. Salvação para os vencidos
370 Uma, esperarem salvação nenhuma.”

Isto os provoca e atiça. Quais rapaces
Lobos que, cegos de faminta raiva,
Saem por névoa escura, ávidas crias
De goelas secas nos covis deixando;
375 De morrer certos, por dardos, por hostes,
Tróia, abrindo caminho, atravessamos:
Circunvoa atra noite em ouca sombra.
Quem poderá contar o estrago horrendo,
Quem dessa noite as fúnebres tragédias,
380 Ou lágrimas terá que a pena igualem?
A soberana antiga das cidades
Baqueia; e de cadáveres sem conto
Ruas, casas, vestíbulos sagrados
Se alastram. Nem só mana o teucro sangue;
385 Brio inato os vigora: a terra mordem
Os vencidos de envolta e os vencedores:
Tudo é luto e pavor, crueza é tudo;
Multiplica-se a morte em vária forma.

Cópia a guiar de Aqueus, primeiro Andrógeos,
390 Do seu bando nos crendo: “Avante, amigos,
Avante ó bravos; que moleza e inércia!
Outros saqueiam Pérgamo abrasada;
Vós de alterosas naus desceis agora?”
Disse, e a resposta ambígua o desengana;
395 Em laço hostil sentiu-se: estupefato
Reprime o passo e a língua. O viandante,
Que entre áspero sarçal em cobra oculta
Senta o pesado pé, trépido salta,
Foge ao réptil, que desenrola as iras
400 E incha o cerúleo colo: assim tremendo
Recua Andrógeos. Pela férrea mata
Arremetemos, e aos montões prostramos
Gente ignara do sítio e espavorida.

Deste ensaio e bafejo da fortuna
405 Animado Corebo, exulta e grita:
“Por onde, ó sócios, fado amigo aponta,
Eia, sigamos. Os broquéís mudemos,
E insígnias graias adaptemos. Vença
Manha ou valor, quem do inimigo o exige?
410 Eles armas nos dêem”. Logo o de Andrógeos
Luzido escudo enfia, e o elmo enlaça
Comante, e ajusta ao lado argiva espada.
Rifeu, Dímas, o imita; os moços folgam;
Do recente despojo armam-se todos.
415 Entre a caterva hostil, sem fausto nume,
Por cega noite prélios mil travamos;
Remetemos ao Orco infindos Gregos.
Uns às praias fiéis e às naus se acolhem;
Parte com torpe medo o bruto escalam,
420 E entram de novo o conhecido bojo.
Ah! sem querer divino o que é seguro?
Do ádito de Minerva eis desgrenhada
Cassandra arrastam priaméia virgem,
Debalde ao céu levando ardentes olhos;
425 Olhos, que as tenras mãos lhe atavam cordas.
Não o sofreu Corebo, e em fogo e sanha
Perecedouro aos esquadrões se atira;
E após vamos forçando um bosque de armas.
Do sumo templo os nossos, enganados
430 Pela armadura e argólicos penachos,
Nos despedem chuveiros de arremessos,
E misérrima clade se origina.
Num corpo os Danaos, retomada a virgem,
De ira a gemer, daqui dali carregam;
435 Acérrimo insta Ajax e os dois Atridas,
E a hoste dolopéia. Assim contendem
Soltos num turbilhão Zéfiro e Noto,
E o Euro ovante nos frisões da Aurora:
Zune a selva; Nereu braveja e espuma,
440 De tridente remexe o equóreo seio.

Quantos pela cidade afugentámos
Entre a noturna treva, outra vez surdem;
Por nosso estranho acento o embuste e as armas
Descobrem. Turba imensa nos esmaga:
445 Primeiro, às mãos de Peneleu, Corebo
De bruços ante a deusa armipotente
Tomba, e sucumbe o espelho dos Troianos,
O único justo, eqüíssimo Rifeu:
Divino alto juízo! O mortal trago
450 Bebe a golpes dos seus Dímas e Hípanis:
Nem singular piedade, nem te vale
Na queda, ó Panto, a ínfula de Apolo.
Dos meus última flama e pátrias cinzas,
Testemunhai que nunca em vosso ocaso
455 Dardo ou risco evadi; que, a ser meu fado
Morrer então, meu braço o merecia.

Eu dali me desprendo, e Ifito e Pélias,
Pesado e anoso Ifito, e Pélias tardo
De Ulisses vulnerado. À estância régia
460 Nos tira o ruído: a guerra se encruece,
Qual se, o restante em paz, lá só reinasse
Toda a matança e horror: o infrene Marte
Compele os Danaos, que o palácio atacam
E a testudem cerrando as portas cercam.
465 Árduas escadas fixam nas paredes,
E junto aos postes nos degraus se entribam;
A sinistra no escudo apara os tiros,
Cimalha e capitéis a destra aferra.
Os Dárdanos de cima, as cumieiras
470 E as torres demolindo, com tais armas,
Vendo-se já no extremo, se defendem;
E áureas traves, de avós decoro e pompa,
Devolvem; densa intrépida coorte
Dentro a fios de espada o ingresso embarga.
475 De socorrer o paço o ardor nos toma,
De esforçar os vencidos e ajudá-los.

Atrás comunicava os edifícios
Postigo inoto e corredor escuso,
Por onde, ai dela! aos sogros vir soía,
480 Durante o reino, Andrômaca sozinha,
Seu Astianaz no caro avô trazendo.
Lá monto ao cimo, e estavam pobres Teucros
Sem fruto a dardejar. Torre em declive
Pendente, às nuvens sobre o teto alçada,
485 Tróia estendida, a frota e arraial grego
Descortinava: em cerco das junturas,
Onde as vigas do solho a enfraqueciam,
A investimos a ferro, e do alto assento
Destroncada impelimo-la. De chofre
490 O baque estronda: a ruína ao longe abafa
Turmas de Argivos; mas sucedem outras:
Nem dardo ou pedra cessa, é tudo tiros.

Pirro à entrada no pórtico ufaneia,
Como o aço e brilho aêneo relumbrando:
495 Tal, cevada em má grama, à luz a cobra,
Que prenhe o brumal frio a soterrava,
Nova a pele, se empina, e moça e nédia,
Lúbrico dorso enrola, árdua o Sol mira,
Fulge e vibra a trissulca ardente língua.
500 Com Perifas membrudo e a flor dos Scírios,
Assalta o paço Automedonte o pajem,
Que os de Aquiles picava árdegos brutos;
Lançam fachos ao cume. À frente Pirro
A machadadas racha os umbrais duros,
505 E éreos portões descrava da couceira;
Traves descose, firmes robles fende,
E cava ampla abertura. O interno centro
Aparece, e átrios longos patenteia;
Aparecem de Príamo os retretes,
510 Mansões de priscos reis; e um corpo em armas
Cobre o limiar. Envolta a casa em prantos
Longo ecoa; as abóbadas ululam
Com femíneo gemer, triste alarido,
Que áureas estrelas fere. Apavoradas
515 Andam mães pelas vastas galerias,
E ósculos pregam nos portais que abraçam.
Pirro, emulando o pai, no ataque insiste;
Nem há barreira ou guardas que o sustenham.
Do crebro aríete abolada a porta,
520 Rui dos gonzos rendida. À força rompem;
No ádito em postas aos primeiros talham,
E tudo enchem de tropas e de estragos.
Bem menos, quando inchado o espúmeo rio
Marachões quebra e valos sobrepuja,
525 Agros furioso inunda, e na torrente
Roja armento e currais de campo em campo.
Eu vi Pirro na brecha encarniçado
E os dois Atridas; Hécuba e as cem noras,
E o rei no altar vi mesmo com seu sangue
530 Maculando os que ali sagrara fogos.
Os tálamos cinqüenta, em que esperava
Tantos netos, magníficas portadas
De ouro e espólio barbárico, arruinam:
Possui o Danao quanto poupa a chama.

535 Talvez de Príamo o destino inquiras.
Tróia em destroço, o paço contemplando
Derruído e hostilmente profanado,
De ociosa armadura o velho os ombros
Trêmulos veste, inútil ferro à cinta,
540 Entre basto inimigo a morrer parte.
Num pátio, exposto ao eixo nu celeste,
Louro antigo os penates obumbrava,
Sobre ara ingente os ramos espalmando.
Qual da borrasca fugitivas pombas,
545 Num grupo ali pousando, Hécuba e as filhas
Consigo em vão seus divos apertavam.
Sob armas juvenis ao rei que assoma:
“Que dira insânia! diz; mísero esposo!
Onde em bélico apresto assim caminhas?
550 Tal defensa não basta e humano auxílio;
Nem que o meu próprio Heitor surgisse agora.
Vem nesta ara abrigar-te, ou vem conosco
Morrer.” Nisto, ao longevo a mão pegando,
Em sagrada cadeira a par o assenta.
555 Fugindo à morte um filho seu, Polites,
Eis ferido, entre lanças, entre imigos,
Por átrios longos, pórticos desertos,
Gira: de golpe feito, o acossa, o apanha
Já já Pirro feroz, de um bote o aterra:
560 Ao tempo que ante os pais ia chegando
Baqueia, e dessangrado a vida exala.
A sua o rei sentiu no extremo fio,
Mas reprimir não pôde a voz e a ira:
“Pelo atentado, exclama, e audácia tanta,
565 Se há no céu providência e piedade,
Pague-te o céu com merecido prêmio,
A ti que o matas às paternas barbas,
E estas cãs me funestas e enxovalhas!
Não, tal não se houve Aquiles, meu contrário,
570 De quem te finges prole: ao suplicar-lhe
Enrubeceu, direito e fé guardou-me;
Sepultar permitiu-me Heitor exangue,
Rever meus reinos.” Disse, e arroja o velho
Dardo imbele sem gume, que repulso
575 Pelo rouco metal, à superfície
Do embigo do broquel frustrado pende.

“Pois vai contá-lo ao genitor Pelides;
Núncio narrar te lembre estas baixezas,
E o quanto o degenero. É tempo, morre.”
580 Falando Neoptolemo o arrasta às aras
Tremebundo, e do filho em quente sangue
A resvalar: na esquerda a coma enleia;
Com a destra saca a lâmina fulgente,
No vazio lha embebe até aos copos.
585 De Príamo este o fado, assim finou-se
Tróia arder vendo e Pérgamo assolar-se:
Quem d’Ásia em povos cem reinou soberbo
É cadáver; na praia o tronco informe
Jaz sem nome, e a cabeça decepada.

590 Pasmei de horror, confesso: o pai querido,
No eqüevo rei que derramava o alento
Pela crua estocada, eu me figuro;
Figuro ao desamparo o tenro Ascânio,
Creusa em pranto, os lares saqueados.
595 Olho atrás, e procuro os companheiros:
Todos lassos e em dor me abandonaram,
Despenhando-se em terra ou sobre as chamas.
Já só de amigos, ao clarão do incêndio
Erro, e em torno espreitando a cada passo,
600 No santuário escondida e taciturna
A Tindárida enxergo aos pés de Vesta:
Dos nossos pela queda exasperados,
Dos seus medrosa, do ofendido esposo,
Essa Erínis comum de Grécia e Tróia,
605 Execrada, entre as aras se acoutava.
A alma abrasou-se-me; iracundo anseio
Vingar na infame a pátria agonizante.
“Que! soberana ir esta à sua Esparta?
Incólume, em triunfo, entrar Micenas?
610 Ver a casa, o marido, e os pais e os filhos?...
E ornem-lhe a pompa iliacas escravas!
E a ferro acabe o rei, queime-se Tróia,
E suem teucro sangue as teucras praias!...
Não: se é nula a vitória, se é desdouro
615 Punir de morte a feminil fraqueza,
Louvor seja extinguir este ímpio aborto;
Farto ao menos a sanha e ardente sede,
Saciarei de prazer dos meus as cinzas.”

De fúrias transportado isto profiro,
620 Quando a meus olhos, como nunca, pura
A alma Vênus, a noite alumiando,
Em divindade manifesta brilha,
Tal qual sói aos celícolas mostrar-se;
E segurando em mim com rósea boca
625 Me atalha a genetriz: “Que mágoa, ó filho,
Que indômita paixão te desatina?
Que é dos nossos penhores? onde o idoso
Cansado pai largaste? onde o filhinho?
Vive ainda Creusa? Atroz caterva
630 Lhes volteia em redor; sem meus desvelos
Já tragado os houvera ou gládio ou fogo.
Páris não culpes e a Lacena odiosa;
Dos deuses sim, dos deuses a inclemência
É que abate e subverte a excelsa Tróia.
635 Repara: a nuvem que ora os mortais visos
Te embota úmida e baça, eu vou tirar-ta:
Sem temor obedece à voz materna.
Lá onde esparsas moles e arrancadas
Rochas a rochas vês, e undante fumo
640 E enovelado pó, Netuno a golpes
Do grã tridente os muros e alicerces
Alui, e do orbe desarreiga Tróia.
Sevíssima e em furor, de aceiro e malha,
Convoca Juno, ali nas portas Scéias,
645 Das naus os batalhões. Já sobre as torres,
Nota, sentada em lampejante nuvem,
Tritônia agita a Górgona terrível.
Jove mesmo acorçoa e esforça os Gregos,
Suscita os imortais contra Dardânia.
650 Foge, anda, filho meu, põe termo às lidas.
Em salvo ao pai te guio, eu não me aparto.”
Disse, e na sombra envolve-se. Aparecem
De infensos numes cataduras torvas:
Ílio esboroar em cinzas se me antolha,
655 Fundir-se toda a neptunina Tróia.
Assim nos altos montes orno antigo,
Se extirpá-lo a machado em crebro assalto
Lenhadores porfiam, nuta, ameaça,
Trêmula a coma, sacudido o cume,
660 Té que aos poucos cerceado, alfim gemendo,
Cai dos cabeços com ruidoso estrago.

Côo(12) entre o ferro e o fogo, a par de Vênus;
Recua o fogo e se desvia o ferro.
Chego à pátria morada, ao velho corro,
665 No Ida ampará-lo mais que tudo anelo;
Nega-se ele ao desterro, a vida enjeita
Sem Tróia: “Ó vós, nos clama, a quem robora
Viçoso inteiro sangue, afervorai-vos,
Parti. Se os deuses me quisessem vivo,
670 Conservavam-me agora o avito assento.
Sobra uma vez remanescido termos
Da cativa cidade após o excídio.
Dizei-me o adeus supremo, ah! despedi-vos
De um cadáver. A morte eu mesmo a apresso,
675 Ou dê-ma compassivo e me despoje
Qualquer Danao: que importa a sepultura?
Peso inútil, há muito o céu me odeia,
Dês que o divino padre, o rei dos homens,
Assombrou-me e tocou-me com seu raio.”
680 Com tal discurso, pertinaz resiste
Às lágrimas de Ascânio e de Creusa,
Às da família inteira, que lhe instamos
Pai não ajude a sorte a aniquilar-nos:
Quedo à tenção se amarra. Eu torno às armas,
685 Meu desejo é morrer. Que mais conselho,
Que alternativa há mais? “Ó crime... e cuidas
Que eu possa arredar pé, que te abandone?
Tu blasfemas, senhor? Se é lei superna
Que d’Ílio nada fique, e os teus pretendes
690 Juntar contigo à moribunda Tróia,
A estrada franca tens: não tarda Pirro,
Que, o sangue régio gotejando, à face
Do pai degole o filho e o pai nas aras.
Que? de lanças, de incêndios me resguardas,
695 Por que, ó madre, em meus lares o inimigo
Ante mim próprio imole a esposa minha,
E um no sangue do outro Iulo e Anquises?
Armas, armas, varões: para os vencidos
Acena o último dia: ah! consenti-me
700 Que volte aos Danaos, que a peleja instaure:
Nem todos hoje inultos morreremos.”
De novo empunho a espada, embraço o escudo,
E no ato de sair se me atravessa
À soleira Creusa, os pés me abraça,
705 E o meu tenrinho Ascânio me apresenta:
“Vais perecer? a transe igual nos leva;
Se inda em perícia e esforço te confias,
O que primeiro cumpre é defender-nos.
A quem teu pai, a quem teu filho entregas,
710 E esta que nomeavas tua esposa?”

Quando esturgia o teto em ais desfeita,
Ó prodígio estupendo! estando Iulo
De aflitos pais entre ósculos e abraços,
Um resplendor sutil, ígneo turbante,
715 Lhe coroa a cabeça, e em mole tato
Às fontes se apascenta e lambe as comas
A inócua flama. Trépidos de medo,
O flagrante cabelo sacudimos,
Jorros d’água a deitar no sacro lume.
720 Mas ledo o genitor na etérea corte
Fita os olhos, e orando as palmas tende:
“Júpiter sumo, se te abrandam preces,
Atende ao menos; se à piedade és grato,
Auxilia-nos, padre, o agouro assela.”

725 Com súbito fragor, mal finda o velho,
Toa à esquerda, e nas sombras deslizando
Pelo céu alva estrela acende a cauda;
Vemo-la a escorregar pelos telhados,
Na selva Idea a esteira assinalando,
730 Sumir-se: longo sulco abre em centelhas,
À larga odor sulfúreo exala e estende.
Meu pai rendido se ergue, invoca os deuses,
E adora o astro santo: “Ó pátrios numes,
Presto vos sigo o aceno; impulso é vosso:
735 Protegei, ressalvai-me o neto e a casa:
Tróia está sob a vossa potestade.
Nem mais recuso, filho, eu vou contigo.”

Nos muros claro então crepita o fogo,
De perto volve em ala e o esto esparge.
740 “Sus, meu pai, eu te ajudo, às nossas costas
Sobe-te, ó caro, não me agrava o peso:
Em sucesso qualquer, teremos ambos
A mesma salvação, comum perigo.
Ladeie-me o filhinho, e atrás Creusa
745 Não se afaste de mim. Sentido, ó servos:
Ao sair, num outeiro está de Ceres
Velho templo deserto, ao pé de antigo
Cipreste, com respeito religioso
Dos avós longamente conservado:
750 Por diverso caminho ali seremos.
Tu, padre, o que há sagrado e os pátrios divos
Toma: tinto em matança, ímpio é tocá-los,
Sem que eu me expurgue em vívida corrente.”

Nisto, o vestido pelos ombros dobro,
755 Envergo de um leão a fulva pele,
Curvo-me e o pai carrego: o tenro Iulo
Trava-me a destra, amiúda os curtos passos
Por alcançar os meus; não longe, a esposa
Nos vai na trilha por opacos sítios:
760 E eu, que há pouco arrostava hostes e dardos,
De um sopro agora tremo, um som me espanta,
Pela companha e carga temeroso.

Propínquo às portas, já me conto livre;
De repente um tropel ouvir cuidamos;
765 Na treva Anquises lobrigando: “Filho!
Grita; apressa-te, filho; ei-los: diviso
Broquéis ardentes, fulgurantes malhas.”
Não sei que nume infausto alucinou-me:
Por dévia estranha rota extraviado,
770 Ai! mísero perdi minha Creusa:
Se o fado ma roubou, se errou a estrada,
Ou lassa recostou-se, é duvidoso:
Nunca mais a avistei. Inadvertido
Pela ausência não dou, senão no outeiro,
775 Próximo ao templo já da prisca Ceres:
Aí feita a resenha, ela só falta,
Malogrando o marido e o filho e os sócios.
Que homem, que deus não acusei demente?
Que houve de mais cruel no excídio horrível?
780 Num fundo vale escondo, e aos companheiros
Os divos encomendo e Ascânio e Anquises.
Corro à cidade em refulgentes armas,
Firme em revirar Tróia e em novas lutas
Pôr a cabeça na arriscada empresa.
785 Lesto às muralhas, ao limiar escuro
Da porta volto que me deu passagem;
Retrocedendo(13), pela noite apalpo,
Os olhos canso em busca das pegadas:
Tudo aterra, o silêncio o pavor dobra.
790 Talvez, talvez regressaria à casa;
E lá me envio: os Danaos a invadiram,
Dominavam-na toda: o voraz fogo,
Dos ventos irritado, os altos ganha,
Rolando em labareda os ares cresta.
795 Prossigo; à régia e à cidadela passo:
E já nos vácuos pórticos, no asilo
De Juno, eleitos a velar na presa,
Se postam Fênix e o nefando Ulisses;
Os tesouros de Tróia em montões vejo,
800 De acesos tetos, saqueados templos,
Vasos de ouro maciço, alfaias, mesas,
Vestes sacerdotais: à roda em fila
Estão pávidas mães, tenros meninos.
Ousei bradar na treva, e mesto as ruas
805 Enchi de vozes; por demais gemendo,
Chamei, chamei e rechamei Creusa.

Furente as casas lustro, e saio e torno,
Quando a sombra da esposa, imagem triste,
Maior que dantes se me avulta aos olhos,
810 Pasmo, hirta a coma, a voz se apega às fauces.
Ei-la afável me alenta e assim me acalma:
“Que vale a dor sobeja, ó doce esposo?
Sem nume isto não é: levar Creusa
Te veda o fado, o regedor sublime
815 Do Olimpo o não consente. Em longo exílio
Tens de arar vasto pego até à Hespéria,
Onde entre pingues populosos campos
O lídio manso Tibre inclina a veia.
Com saudades não chores da consorte:
820 Um reino ali te espera e uma princesa.
Nem eu, Dardânida e de Vênus nora,
Irei servir as Téssalas altivas,
Nem dolopéias damas: cá me impede
A grande mãe Cibele. Adeus, Enéias;
825 Todo na prenda nossa o amor emprega.”
Nisto, o falar me corta, e às minhas lágrimas
Se furta, e se esvaece em tênues auras.
Três vezes fui lançar ao colo os braços;
Três presa embalde se desfez a imagem,
830 Igual ao vento leve ou sono alado.

Os sócios, gasta a noite, enfim revisto;
Dos que acho novos a afluência admiro:
Velhos e moços, donas e donzelas,
Vulgo infeliz, concorrem para o exílio
835 Com quanto salvam, pressurosos querem
Peregrinar comigo o mar e a terra.

A Alva, dos cimos do Ida ressurgindo,
Já traz o dia, e ocupa o Grego as portas;
Nem há mais de esperança um só vislumbre.
840 Cedo, e aos ombros meu pai, subo a montanha.

publicado por centrallgames às 00:43
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eneida de virgílio:obra completa(1)

LIVRO I

 

Eu, que entoava na delgada avena
Rudes canções, e egresso das florestas,
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
A avidez do colono, empresa grata
5 Aos aldeãos; de Marte ora as horríveis
Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
Prófugo, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
10 E o lembrado rancor da seva Juno;
Muito em guerras sofreu, na Ausônia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros vêm da sublimada Roma.

15 Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,
Ou por que mágoa a soberana déia
Compeliu na piedade o herói famoso
A lances tais passar, volver tais casos.
Pois tantas iras em celestes peitos!

20 Colônia tíria no ultramar, Cartago,
Do ítalo Tibre contraposta às fozes,
Houve, possante empório, antigo, aspérrimo
N’arte da guerra; ao qual, se conta, Juno
Até pospôs a predileta Samos:
25 Lá coche, armas lá teve; e, anua o fado,
No orbe entroná-la então já traça e tenta.
Porém de Teucro ouvira que a progênie,
Dos Penos subvertendo as fortalezas,
Viria a ser, desmoronada a Líbia,
30 À larga rei belipotente povo:
Que assim no fuso as Parcas o fiavam.
Satúrnia o teme, e a pró dos seus Aquivos
Recorda as lides que excitara em Tróia;
Nem d’alma agravos risca, dores cruas:
35 No íntimo impressa a decisão de Páris,
A injúria da beleza em menoscabo,
E a raça detestada e as honras duram
Do rapto Ganimedes. Nestes ódios
Sobreacesa, os da Grécia e ímite Aquiles
40 Salvos Troas, do Lácio ia alongando,
Por todo o plaino undíssono atirados;
E, em derredor vagando anos e anos,
De mar em mar a sorte os repulsava.
Tão grave era plantar de Roma a gente!

45 De Sicília amarando, mal velejam
Ledos e o cobre rompe a salsa espuma,
Juno, dentro guardada eterna chaga:
“Eu, diz consigo, desistir vencida!
Nem vedar posso a Itália ao rei dos Teucros!
50 Ah! tolhe-me o destino. A esquadra argiva
Não queimou Palas mesma, submergindo-os
Só de um Ajax Oileu por culpa e fúrias?
Do Tonante o corisco ela das nuvens
Darda, os baixéis desgarra, o ponto assanha;
55 Ao triste, que varado expira chamas,
Num torvelinho em rocha aguda o crava:
E eu, que rainha marcho ante as deidades,
Mulher e irmã de Jove, tantos anos
Guerreio um povo! E a Juno há quem adore,
60 Ou súplice inda a incense, a invoque e honre?”

No âmago isto fermenta, e a deusa à pátria
De austros furentes, de chuveiros prenhe,
À Eólia parte. Aqui num antro imenso
O rei preme, encarcera, algema, enfreia
65 Lutantes ventos, roncas tempestades.
Em torno aos claustros de indignados fremem
Com grã rumor do monte. Em celsa roca
Sentado Eolo, arvora o cetro, e as iras
Tempera e os amacia. Que o não faça,
70 Varridos mar e terra e o céu profundo
Lá se vão pelos ares. Cauto, em negras
Furnas o onipotente os aferrolha,
E, um cargo de montanhas sobrepondo,
Lhes deu rei, que mandado a ponto as bridas
75 Suster saiba ou laxar. Dest’arte Juno
O exora humilde: “Eolo, o pai dos divos
E rei dos homens te concede as ondas
Sublevar e amainá-las; gente imiga
Me sulca as do Tirreno, Ílio e os domados
80 Penates para Itália transportando:
Ventos açula, as popas mete a pique,
Ou dispersas no ponto as espedaça.
Catorze esbeltas ninfas me cortejam,
Das quais a mais formosa, Deiopéia,
85 Prometo unir contigo em jugo estável;
Que em paga para sempre a ti se vote,
Meiga te procriando egrégia prole.”

A quem Eolo: “Que o desejes basta;
Meu, rainha, é servir-te. Quanto valho
90 Tu mo granjeias, e este cetro e Jove;
Tu dás-me à diva mesa o recostar-me,
Ser em tufões potente e em tempestades.”

Disse; e um revés do conto a cava serra
A um lado impele: em turbilhão, cerrados
95 Num grupo os ventos, dada a porta, ruem,
As terras varejando. Ao mar carregam,
E horrísonos revolvem-lhe as entranhas
Noto mais Euro, e de borrascas fértil
Áfrico; às praias vastas ondas rolam.
100 Homens gritam, zunindo a enxárcia ringe.
Some-se ao nauta o céu, tolda-se o dia;
Pousa no pélago atra noite; os pôlos(1)
Toam, o éter fuzila em crebros raios:
Tudo ameaça aos varões presente a morte.
105 Frígido, arrepiado, Enéias geme,
E alça as palmas e exclama: “Afortunados
Oh! três e quatro vezes, d’Ílio às abas,
Os que aos olhos paternos feneceram!
Ó dos Danaos fortíssimo Tidides,
110 A alma em Tróia vertendo-me essa destra,
Não ficar eu nos campos, onde o bravo
Heitor d’Eacide às lançadas, onde
Sarpedon jaz magnânimo, onde o Simois
Corpos e elmos de heróis e escudos tantos
115 Arrebatados na corrente volve!”

Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas
Rasga o pano, e a mareta aos astros joga.
Remos estalam; cruza a proa, e o bordo
Rende; escarpado fluido monte empina-se.
120 As naus já no escarcéu pendem, já descem
Num sorvedouro à terra entre marouços:
Remoinha o esto na revolta areia.
Três rouba Noto e avexa nuns abrolhos,
Abrolhos sob o mar, que Ítalos aras
125 Nomeiam, dorso horrendo ao lume d’água;
Três no parcel (que lástima!) Euro esbarra,
Encalha em vaus, de marachões rodeia.
Uma, em que Oronte fido e os Lícios vinham,
Ante Enéias, d’avante úmido rolo,
130 Do maior pino desabando, em popa
Fere-a; do baque o prono mestre volto
Cai de cabeça. O vagalhão três vezes
Torce-a, revira, um vórtice a devora.
Raros no vasto pego a nadar surdem;
135 Tábuas e armas viris e alfaias tróicas,
Preia das ondas. A tormenta escala
A nau robusta de Ilioneu, de Abante,
As de Aletes grandevo e Acates forte:
Todas, frouxadas as junturas, sorvem
140 A inimiga torrente, e em fendas gretam.
Mugir seu reino e o temporal desfeito,
Caixões do imo a brotar, sentiu Netuno,
Torvo, abalado, e acode acima e exalta
A plácida cabeça. A frota esparsa
145 Vê soçobrando, opressos os Troianos
Da marejada e do ruído etéreo.
De Juno irosa o dolo o irmão percebe;
Euro e Zéfiro chama: “Herdastes, ventos,
Tal presunção, que sem meu nume, ousados,
150 Terra e céu confundis e equóreas brenhas?
Eu vos... Mas insta abonançar as vagas:
Caro mo pagareis, guardo o castigo.
Ao rei vosso intimai, já já, que em sorte
Não lhe coube este império, que o tridente
155 Fero é só meu. Tem ele enormes fragas,
Euro, vossas mansões: nessa aula ufano
Sobre enclaustrados ventos reine Eolo.”

Nem cessa, e o mar se lança, o tempo alimpa
E abre o Sol. Finca a espádua, e com Cimótoe
160 As naus Tritão do escolho desengasga;
Mesmo o padre as aliva(2) com seu cetro,
Amplas sirtes afunda, aplaca os mares,
Por cima em rodas se desliza leves.
Como, enraivado em popular tumulto,
165 Dispara ignóbil vulgo, e o facho e o canto
Já voa, as armas o furor ministra;
Mas, se um pio ancião preclaro assoma,
Calam, para escutar o ouvido afiam;
Ele os convence e os ânimos abranda:
170 Assim baixa o fragor e o pego amansa,
Quando olha o deus, que os brutos no ar sereno
Dobra, e dá loros ao ligeiro carro.

Da costa próxima em demanda, à Líbia
Os cansados Enéiadas aproam.
175 Num golfo ali secreto, com seus braços
Faz barra ilha fronteira, onde a mareta
Quebra e se escoa em sinuosas rugas:
Penedia em redondo, e ao céu minazes
Há dois picos irmãos, a cujo abrigo
180 Dorme difuso o mar; de coruscantes
Selvas prolonga-se eminente cena,
Descai de atra espessura hórrida sombra;
No topo há gruta em pêndulos cachopos,
Com doce fonte, e em viva rocha bancos
185 Das ninfas sede: aqui não prende amarra
Nem mordaz ferro adunco as lassas quilhas.
Com sete naus ao todo arriba Enéias;
E amorosos da terra, alvoroçados
Saltando os seus, do sal tábidos membros
190 Na areia espraiam. Lume eis fere Acates,
Toma em folhas, e em roda as acendalhas,
Nutre a faísca, e em lenha a chama ateia.
Mareados pães e cereais aprestos
Já desembarca a trabalhada chusma,
195 E os grãos põe-se a torrar e em pedra os pisa.

Trepa entanto um penhasco, e ao largo Enéias
Regira, a ver se undívagos alcança
Anteu ou Cápis, as birremes frígias,
Ou armas de Caíco em altas popas.
200 Baixel nenhum; avista só três cervos
Na praia errantes; segue atrás o armento,
E enfileirado pelos vales pasta.
Retém-se, e o arco aferra e as setas ágeis
Que armam Acates fido, e os guias logo,
205 De arbóreas pontas entonados, prostra;
Embrenha a demais turba e acossa a tiros,
Té que derriba sete ingentes corpos,
E iguala as naus. De volta, ele os divide.
E os barris que, à partida, o herói trinácrio
210 Bom de vinho atestara, aos seus largueia;
Dulcíloquo os mitiga: “Os males, sócios,
Nada estranhamos; oh! mais agros foram:
Deus porá termos a estes. Vós de Cila
De perto a raiva e escolhos ressonantes,
215 Vós ciclópeos rochedos afrontastes:
Ânimo! esse temor bani tristonho;
Talvez isto com gosto inda nos lembre.
Por vários casos, transes mil, nos vamos
Ao Lácio onde o repouso os fados mostram:
220 Ressurgir deve ali de Tróia o reino.
Tende-vos duros, da bonança à espera.”

Tal discursa, e afetando um ar seguro,
N’alma enferma sufoca a dor profunda.
Lestos à presa atiram-se: este esfola,
225 Aquele desentranha, outro esposteja;
Qual trementes no espeto enrosca os lombos,
Qual fogo atiça aos caldeirões na praia.
Fartos, na relva espalham-se, refeitos
De velho baco e veação opima.

230 Repleta a fome, e as mesas removidas,
Dúbios indagam, sobre os seus praticam
Entre medo e esperança: estão com vida?
Ou na extrema agonia ao brado surdos?
Mormente o pio rei de Amico chora
235 Ou de Lico o desastre, o ardido Oronte,
E o forte Gias e Cloanto forte.

Das alturas, no fim, Jove esguardando
O mar velívolo e as jacentes plagas
E amplas nações, no vértice do Olimpo
240 Quedo, os olhos fitou nos líbios reinos.
Quando o absorviam tais cuidados, Vênus
Triste, os gentis luzeiros orvalhando:
“Ó tu, queixou-se, que os mortais e os deuses
Reges eterno e horríssono fulminas,
245 O que te fez meu filho, o que os Troianos,
Que após tragos letais, não só d’Itália,
Do universo os cancelos se lhes fecham?
Roma deles tirar, deles os cabos
Que, eras volvendo, restaurado o sangue
250 De Teucro, o mar e a terra sofreassem,
Nos prometeste; quem mudou-te, ó padre?
Do ocaso ao menos e desgraças d’Ílio
Isto, uns fados com outros compensando,
Me consolava. Igual fortuna arrasta
255 Ora os varões a riscos e a trabalhos:
Quando os findas, grã rei? De Aqueus escapo,
Entrar salvo Antenor d’Ilíria(3) o seio
E internar-se em Libúrnia, e a fonte obteve
De Tímavo transpor, donde por bocas
260 Nove, a montanha a ribombar, despenha-se
Ruidoso mar que empola e o campo alaga.
Sentou Patávio aqui, deu casa a Teucros,
Nome à gente, e os brasões fixou de Tróia:
Descansa em doce paz. Nós tua estirpe,
265 Nós da celeste corte, as naus submersas,
Ah! de uma por furor, vítimas somos,
Longe expulsos d’Itália? Deste modo
Se honra a piedade, os cetros nos reservas?”

Sorrindo-se o autor de homens e numes,
270 C’um gesto que a tormenta e o céu serena,
Da filha ósculos liba, e assim pondera:
“Poupa esse medo, Cípria; imotos jazem
Dos teus os fados; nas lavínias torres
Hás de rever-te, e alar sobre as estrelas
275 Teu grande Enéias, Júpiter não muda.
O herói na Itália (esta ânsia te remorde,
Vou rasgar-te os arcanos do futuro)
Guerras tem de mover e amansar povos,
E instituir cidades e costumes,
280 Ao passo que reinando o vir no Lácio
Terceiro estio, e os Rútulos domados,
Forem-se três invernos. Posto ao leme
Ascânio, que hoje Iulo cognominam
(Ilo, enquanto florente Ílion se teve),
285 Cerrando os meses trinta largos giros,
Há de, a sede lavínia trasladada,
Alba longa munir e abastecê-la.
Os Hectóreos aqui trezentos anos
Já reinarão, quando a vestal princesa
290 Ília parir a Marte gêmea prole.
Da nutriz loba em fulva pele ovante,
Rômulo há de erigir mavórcios muros,
E à recebida gente impor seu nome.
Metas nem tempos aos de Roma assino;
295 O império dei sem fim. Té Juno acerba,
Que o mar ciosa e a terra e o céu fatiga,
Transmudada em melhor, tem de amparar-me
Do orbe os senhores e a nação togada.
Praz-me assim. Manem lustros, que inda a casa
300 De Assaraco há de ser de Pítia(4) e de Argos
Senhora, e agrilhoar Micenas clara.
D’Iulo garfo egrégio, em nome e glória
Sucedendo, as conquistas no oceano
César terminará, nos céus a fama.
305 Nos astros sim, de espólios do oriente
Onusto, o acolherás; e humanas preces
Têm de invocá-lo. Então, deposta a guerra,
Se amolgue a férrea idade; a encanecida
Fé com Vesta, os irmãos Quirino e Remo
310 Ditem leis; Jano trave as diras portas
Com trancas e aldrabões; sobre armas cruas
Dentro o ímpio Furor sentado, e roxos
Atrás os pulsos em cem nós de bronze,
Hediondo ruja com sangüínea boca.”

315 Não mais; e expede o gênito de Maia,
Por que a recém Cartago hospício aos Teucros
Franqueie, nem, do fado ínscia, a rainha
Os extermine. O Deus pelo ar patente
De asas remando, em Líbia o vôo abate;
320 Fiel às ordens, a fereza aos Penos
Despe; e Dido primeira em pró dos Frígios
Brandos afetos plácidos concebe.

Toda a noite pensoso o herói velando,
A alma luz mal branqueja, onde arribara
325 Dispõe sondar; e vendo incultas margens,
Inquirir quem as tem, se homens, se feras,
E aos seus noticiá-lo. As naus metidas
N’abra de uns bosques sob cavada penha,
Entre verde espessura e negras sombras,
330 Ele só, mais Acates, sai brandindo
Duas hastes que empunha de ancho ferro.
Da selva em meio a mãe se lhe apresenta,
Virgem no trajo e aspecto, em armas virgem
Lacena; ou qual Harpálice a treícia
335 Cansa os corcéis e o Euro vence alífugo:
Pois do ombro o arco destro, à caçadora,
Pendura, e às auras a madeixa entrega,
Dos joelhos nua e a falda em nó colhida.
Ei-la: “Ó jovens, errante aqui topastes
340 Irmã minha, a gritar quiçá no encalço
De javali sanhudo? A cinta aljava
Tem sobre a pele de um manchado lince.”

Isto Vênus; e o filho assim responde:
“Nenhuma ouvi nem vi das irmãs tuas,
345 Ó... quem direi? Não tens mortal semblante
Nem voz de humano som; és deusa, ó virgem:
Irmã de Febo ou ninfa? As nossas penas
Tu, por quem és, minora; e nos ensina,
Pois vagueamos sem saber por onde,
350 O país, clima ou povo, a que arrojou-nos
Vento e escarcéu medonho. Hóstias sem conto
Havemos de imolar nas aras tuas.”

“Não mereço honras tais, replica Vênus;
Usam de aljava, e ao bucho as virgens tírias
355 Atar das pernas borzeguim purpúreo.
Púnicos reinos e agenórios muros
Vês, nos confins da indômita e guerreira
Líbica raça. O império atém-se a Dido,
Que, por fugir do irmão, fugiu de Tiro.
360 É longa a injúria, tem rodeios longos;
Mas traçarei seu curso em breve suma.

Siqueu, fenício em lavras opulento,
Foi da mísera esposo, e muito amado:
Com bom presságio o pai lha dera intacta.
365 Pigmalião, façanhoso entre os malvados,
Bárbaro irmão, do estado se empossara.
Interveio o furor: de fome de ouro
Cego, e à paixão fraterna sem respeito,
Pérfido, ímpio, a Siqueu nas aras mata;
370 O fato encobre, e a crédula esperança
Da amante aflita largo espaço ilude
Com mil simulações. Mas do inumado
Consorte, com esgares espantosos,
Pálida em sonhos lhe aparece a imagem:
375 Da casa o crime e trama desenleia;
A ara homicida, os retalhados peitos
Desnuda, e à pátria intima-lhe que fuja:
Prata imensa e ouro velho, soterrados,
Para o exílio descobre. Ela, inquieta,
380 Apressa a fuga, e atrai os descontentes
Que ou rancor ao tirano ou medo instiga;
Acaso prestes naus, manda assaltá-las;
Dos tesouros do avaro carregadas
Empegam-se: a mulher conduz a empresa!
385 Chegam d’alta Cartago onde o castelo
Verás medrando agora e ingentes muros:
Mercam solo (do feito o alcunham Birsa)
Quanto um coiro taurino abranja em tiras.
Mas vós outros quem sois? donde é que vindes?
390 Que regiões buscais?” Ele às perguntas
Esta resposta suspirando arranca:
“Ó déia, se recorro à prima origem,
E anais de angústias não te pejam, Vésper
No Olimpo encerra o dia antes que eu finde.
395 Da antiga Tróia (se hás notícia dela),
Vagos no equóreo campo, arremessou-nos
Casual tempestade às líbias costas.
Enéias sou, com fama além dos astros,
Que livrei de hostil garra os meus penates,
400 E piedoso os transporto à pátria Ausônia;
Do sumo Jove a geração procuro.
Por guia a deusa mãe, submisso aos fados,
Em vinte naus cometo o frígio ponto;
Rotas do Euro e das ondas, restam sete.
405 Pobre, ignoto, percorro áfricos ermos,
D’Ásia e d’Europa excluso...” Nem mais Vênus
Lamentos comportou, na dor o atalha:

“Quem sejas, creio, não do céu malquisto,
Gozas d’aura vital, que a Tiro aportas.
410 Eia, ao régio palácio te encaminha.
Sem risco os sócios, ancorada a frota,
Com o rondar dos áquilos, te auguro,
Se em arte vã meus pais não me instruíram.
Atenta cisnes doze em bando alegres:
415 No espaço, o éter fendendo, os perseguia
A ave de Jove; num cordão agora
Ou tem no pouso a mira, ou vão pousando;
Juntos batendo as estridentes asas,
Brincam cingindo o pólo, a salvo cantam:
420 Bem como os teus as popas atracaram,
Ou de vela enfunada a foz embocam.
Sus, ali te dirige, a estrada é esta.”

Dá costas, e a cerviz rosada fulge,
De ambrosia odor celeste a coma expira;
425 A veste escoa aos pés; no andar se ostenta
Vera deusa. Ele atrás da mãe fuginte,
Reconhecendo-a, brada: “Por que o filho
Com tais ficções, cruel, enganas tanto?
Ligar destra com destra, ouvir-te às claras,
430 Conversar-te em pessoa me é defeso?”
Tal a argúi, e às muralhas se endereça.

Ela porém de ar fusco os viandantes
Tapa e os embuça em névoa, que enxergá-los
Ou tocar ninguém possa, nem detê-los
435 Ou da vinda informar-se. A deusa a Pafos
Remonta, a espairecer no sítio ameno
Onde o sabeu perfume arde em cem aras,
E recentes festões seu templo aromam.

Eis da azinhaga pela trilha cortam.
440 E um teso galgam já, que olha iminente
A fronteira torrígera cidade.
Palhais dantes, a mole admira Enéias,
Admira o estrondo e as portas e as calçadas.
Tiro aferventa-se, a lançar os muros,
445 A avultar o castelo, e a rolar pedras.
Parte com sulcos marca os edifícios;
Santo augusto senado, e o foro e a cúria,
Se cria e elege: aqui se escavam portos;
Fundam-se ali magníficos teatros,
450 De mármor colossais talham colunas,
Pompa e decoro das futuras cenas.
Quais abelhas ao sol por flóreos prados
Lidam na primavera, quando ensaiam
O adulto enxame; ou doce fluido espessam,
455 Do néctar flavo retesando as celas;
Ou quando a carga das que vêm recebem;
Ou em batalha expulsam da colmeia
Os zangãos, gente ignava. A obra ferve,
E a tomilho recende o mel fragrante.

460 “Ditoso quem seus tetos já levanta!”
Exclama o herói, e os coruchéus contempla.
Na cidade não visto, ó maravilha!
Se mistura enublado. Em meio havia
Luco umbroso e fresquíssimo, onde os Penos,
465 De ondas jogados e tufões, cavaram
O testo de um corcel, de Juno régia
Mostra e penhor que o povo, asado à glória,
Pugnaz e duro, insultaria os evos:
Lá punha Dido a Juno insigne templo,
470 Que dons e a rica efígie realçavam:
No brônzeo limiar da brônzea escada,
Craveja o bronze as traves, e a couceira
Range em portões de bronze. Um novo objeto
Neste bosque a lenir entra os receios;
475 Aqui primeiro ousou fiar-se Enéias
E prometer-se alívio em seus pesares:
Pois quando, à espera da rainha, o templo
Nota peça por peça, quando o enlevam
De Cartago a fortuna, o gosto fino,
480 O artifício, o primor, acha em pintura
A fio as guerras d’Ílion, pelo orbe
Já soadas; o Atrida, o rei troiano,
E terror de ambos sobressai Aquiles.
Pára, em lágrimas diz: “Que sítio ou clima
485 Cheio, Acates, não é dos nossos males?
Eis Príamo! o louvor tem cá seus prêmios,
Dói mágoa alheia, e remanesce o pranto.
Coragem! que em teu bem conspira a fama.”

Disse, e em vãos quadros se apascenta, e as faces
490 Gemebundo umedece em largo arroio.
Vê de Pérgamo em roda a hoste graia
Do frígio ardor fugir, fugir a teucra
Do instante carro do emplumado Aquiles.
Ai! perto a Reso por traição Tidides,
495 No primo sono, arrasa as níveas tendas,
De carnagem cruento; e os acres brutos
Volve ao seu campo, sem gostado haverem
De Tróia os pastos, nem bebido o Xanto.
Triste! as armas perdendo, além, Troílo,
500 Que arrostou-se menino ao próprio Aquiles,
É dos corcéis tirado, e ressupino,
Mas tendo os loros, do vazio carro
Pende; e a cerviz no pó, de rojo a coma,
Virada a lança hostil na areia escreve.
505 Em cabelo, as Ilíades aflitas
Ao templo iam também da iníqua Palas,
O peplo humildes ofertando, e os peitos
Com punhadas ferindo: aversa a déia
Olhos no chão pregava. A Heitor Pelides
510 Três vezes arrastara em torno aos muros,
De ouro a peso vendia-lhe o cadáver.
Do imo um gemido grande Enéias solta,
No olhar o espólio, o coche, o amigo exânime;
E a Príamo estendendo as mãos inermes,
515 A si se reconhece entre os mais chefes.
Do negro rei do eôo(5) a turma e as armas
À testa de milhares de amazonas
Com lunados broquéis, Pentesiléia
Se abrasa em fúria, belicosa atando
520 Sob a despida mama um cinto de ouro,
E virgem com varões brigar se atreve.

Quando extático(6) o herói se embebe e enleia,
Ao templo a formosíssima rainha
Marcha, de jovens com loução cortejo.
525 Qual nas ribas do Eurotas ou do Cinto
Pelos serros Diana exerce os coros,
E, de infindas Oreadas seguida,
Carcás ao ombro, em garbo as sobreleva;
Rega-se em gozo tácito Latona:
530 Tal era Dido, airosa e prazenteira,
Do seu reino a grandeza apressurando.
No ádito sacro, em meio do zimbório,
De armas cercada, em sólio majestoso
Senta-se. Os pleitos julga e leis prescreve,
535 Regra ou sorteia os públicos trabalhos.

Súbito Enéias no tropel divisa
A Cloanto brioso, Anteu, Sergesto,
E os mais que atra borrasca a longes costas
Remessara dispersos. Ele e Acates
540 Varados ficam de alegria e susto,
Ávidos ardem por travar as destras;
Força ignota os perturba. Dissimulam;
Qual a sorte dos seus do encerro espreitam
Nebuloso, e onde surta a frota seja,
545 E com que fim das naus os mais conspícuos
Clamando, a pedir vênia, ao templo acodem.

Introduzidos, quando a vez tiveram,
Rompe o idoso Ilioneu, facundo e grave:
“Rainha, ó tu que por favor supremo
550 Ergues nova cidade, e justa enfreias
Soberbas gentes, os Troianos ouve,
Que, dos ventos ludíbrio, os mares cruzam:
Livra do infando incêndio a pia armada,
Poupa inocentes, nossa causa atende.
555 Nem vimos nós talar com ferro e fogo,
Nem saquear os líbicos penates:
A vencidos não cabe audácia tanta.
País antigo existe, em grego Hespéria,
Armipotente e ubérrimo, colônia
560 Já de enótrios varões; agora é fama
Que, de um seu capitão, se diz Itália:
Esta era a nossa rota; eis que em vaus cegos
Deu conosco de salto Orion chuvoso,
E, em sanha o pélago e os protervos austros,
565 Nos derramou por ondas e ínvias fragas:
Poucos ganhámos pé nas vossas praias.
Pátria e raça feroz! bárbara usança!
Pisar em terra mãos hostis nos vedam;
Da areia o asilo a náufragos proíbem.
570 Se as armas desprezais e as leis humanas,
O céu mede as ações, premeia e pune.
Rei nosso Enéias é, que a ninguém cede,
Pio e inteiro, valente e belicoso:
Se aura etérea o sustenta e o guarda o fado,
575 Se os manes o não têm, sem medo somos,
De o penhorar primeira não te peses.
Cidades em Sicília e campos temos,
E do sangue troiano o claro Acestes.
Amarrar nos permite a lassa frota,
580 Mastros, remos cortar, falcar antenas;
Com que ledos, se Itália nos espera.
Os sócios e o rei salvo, ao Lácio vamos:
Mas, se te há consumido o líbio pego,
Ótimo pai dos Teucros, nem d’Iulo
585 Nos resta a segurança, ao porto embora,
Donde arribámos, a lograr voltemos
A apercebida sícula hospedagem,
E o régio amparo.” O Dárdano termina.
Lavra entre os seus aprovador sussurro.

590 O rosto abaixa Dido, e foi sucinta:
“Sus, Teucros, esforçai. Recente o estado
Ao rigor me constrange, e a defender-nos
Guarnecendo as fronteiras. Quem de Enéias
Desconhece a prosápia, e as guerras d’Ílio,
595 Seu valor, seus heróis, seu vasto incêndio?
Nem somos nós tão broncos, nem de Tiro
Tão desviado o Sol junge os cavalos.
Quer da satúrnia Hespéria, quer as margens
D’Erix opteis, em que domina Acestes,
600 Contai com meu auxílio e salvaguarda.
Folgais de aqui ficar? Esta cidade
Que erijo, é vossa; as naus que se aproximem:
Não farei distinção de Frígio a Peno.
Fosse o rei vosso à Líbia compelido
605 Do mesmo Noto! O litoral já mando
E os sertões perlustrar; se é que o naufrágio
Em povoado ou brenha o traz perdido.”

Ambos alerta, o padre e o companheiro
Há muito almejam por quebrar a nuvem.
610 A Enéias se antecipa o forte Acates:
“Nado de Vênus, que tenção meditas?
Tens a frota em seguro, os teus benquistos;
Um só que falta, soçobrar o vimos:
Aos que a mãe te esboçou quadra o mais tudo.”

615 Mal acabava, a nuvem circunfusa
Se rompe e funde nos delgados ares.
Um deus na espalda e vulto, à claridade
Resplende Enéias; que num sopro a deusa
Ao filho a cabeleira em fulgor banha,
620 Em luz purpúrea o juvenil semblante,
Em vivo terno agrado os olhos belos:
Qual, pela indústria, com entalhos de ouro
Pário mármore, ou prata, ou marfim brilha.

De improviso à rainha e a todos clama:
625 “Eis quem buscais, dos líbios vaus escapo,
Enéias sou. Ó tu que só tens mágoa
De tanto horror, que a nós de Tróia restos,
Da Grécia escárnio, em terra e mar batidos,
Falhos de tudo, exaustos, em teu reino,
630 Em casa, nos recolhes e associas!
Nem pagar-te as finezas dignamente
Podemos, Dido, nem os Frígios todos
Quantos pelo universo peregrinam.
Se para os bons há numes, é(7) justiça,
635 Pague-te o céu e a própria consciência.
Que século feliz, que pais ditosos
Te houveram filha? Enquanto os vagos rios
Forem-se ao mar, enquanto em giro a sombra
Vier do monte ao vale, enquanto o pólo
640 Pascer os astros, onde quer que eu viva
Viverá com louvor teu nome e fama.”

Disse; a destra oferece ao velho amigo,
A sinistra a Seresto, e uns após outros,
A Gias, a Cloanto, e aos mais guerreiros.

645 Da presença do herói pasma a Fenisa,
Tal sucesso a comove, e assim se exprime:
“Que fado te urge, ó filho da alma Vênus,
A árduos perigos e a bravias plagas?
És o Enéias que a deusa ao nobre Anquises
650 Gerou de Simoente às frígias margens?
Bem me lembra que Teucro, expatriado,
Veio a Sidônia, para um novo assento,
Pedir a Belo ajuda: a opima Chipre
Já vencedor meu pai vastara e tinha.
655 De Tróia os casos desde então conheço,
Teu nome, e os reis pelasgos. Sempre ufano
Da anciã linhagem teucra, ele ofendido
Com entusiasmo elogiava os Teucros.
Eia, à minha morada, ó moços, vinde.
660 Por transes mil trazida, iguais destinos
Cá me fixaram. Não do mal ignara
A socorrer os míseros aprendo.”

Isto a Enéias memora, e o guia aos paços,
E em solene festejo ocupa as aras.
665 Nem de enviar aos nautas se descuida
Touros vinte, co’as mães cem gordos anhos,
Cem corpulentos sedeúdos porcos,
E o doce mimo do jocoso Brômio.

Luxo esplende real no interno alcáçar,
670 E opíparos banquetes se adereçam:
Primoroso o tapiz, de ostro soberbo;
Nas mesas prataria; em ouro a história
Pátria esculpida, sucessão longuíssima
De uns a outros varões desde alta origem.

675 Saudoso, impaciente, o pai de Ascânio
Todo em seu filho está; para informá-lo
E o conduzir de bordo, expede Acates.
Do tróico exício as preservadas prendas
Venham também: de escamas de ouro um manto
680 Brocado, um véu com orlas e recamos
De cróceo acanto, ornatos peregrinos,
Dons maternos de Leda à bela Argiva,
Que a Pérgamo os trouxera de Micenas
À incasta boda; e o cetro que Ilione,
685 Filha a maior de Príamo, hasteava,
E engranzado colar de perlas finas,
E áurea coroa de engastadas gemas.
Executivo às naus caminha Acates.

Nova traça urde a Cípria, alvitres novos;
690 Que Amor, no meigo Iulo transformado,
Com os dons nos ossos à rainha infiltre
Insano fogo. A estância ambígua, os Tírios
Bilíngües teme; Juno atroz a inflama;
Tresnoitada a pensar, por fim conjura
695 O alígero Cupido: “Ó filho, esteio
Único e meu poder, filho, que em pouco
Tens as tiféias soberanas armas,
És meu refúgio, teu socorro imploro.
Sabes que a teu irmão de praia em praia
700 Flutívago arremessa a iníqua Juno,
E dói-te a nossa dor. Com mil carícias
Tem-no a Sidônia Dido; e o paradeiro
Dos junônios hospícios mal enxergo:
O ensejo é de tentá-la. Eu receosa
705 Previno os dolos, acender projeto
A rainha; que um nume a não transtorne,
Mas firme, quanto eu mesma, a Enéias ame.
Ouve o como há de ser. O infante régio,
Desvelo meu, do genitor chamado,
710 Levar a Birsa as dádivas propõe-se,
Das vagas restos e das teucras chamas.
Sopito em sono o esconderei no idálio
Jardim sacro, ou nos bosques de Citera,
Por que os ardis não turbe inopinado.
715 Tu nele te disfarça uma só noite,
Do menino as feições veste menino;
E, entre o lieu licor e as reais mesas,
Quando em seu grêmio Dido, em cabo leda,
Amplexos te imprimir e doces beijos,
720 Fogo lhe inspires e sutil veneno.”

À voz da cara mãe depondo as asas,
Finge gozoso Amor de Iulo o porte.
Ela em sono abebera o neto amado;
No colo amima e o sobe ao luco idálio,
725 Onde mole e suave mangerona,
Entre flores o abraça e fresca sombra.
E obediente os régios dons Cupido
Leva aos Tírios, folgando após Acates.

Já d’áurea tela em suntuoso leito
730 Acha a Dido, bizarra entre os magnatas.
Com séquito luzido o herói concorre;
Tomam seu posto em púrpura excelente.
Dá-se água às mãos, em canistréis vem Ceres,
Toalhas servem de tosada felpa.
735 Cinqüenta moças frutas e viandas
Arrumam dentro, aos divos turificam;
Cem outras e iguais moços põem nas mesas
A baixela, a bebida e as iguarias.
Em mó nas salas festivais, os Tírios
740 De ordem recostam-se em coxins lavrados.
O padre, o falso Ascânio, o vulto admiram
Flagrante e a voz do deus; o manto, as jóias,
De cróceo acanto o véu. Não farta a mente
A mísera Fenisa, à mortal peste
745 Votada, e mais e mais se abrasa olhando
O menino e seus dons. O pai fingido
Ele nos braços, do pescoço apenso,
Mal sacia-lhe o amor, vai-se à rainha.
Com olhos e alma se lhe apega Dido,
750 No colo o assenta, sem saber, coitada!
Que deus afaga. O aluno de Acidália
Siqueu aos poucos remover começa,
E intenso ardor insinuar procura
Num coração já frio e há muito esquivo.

755 A primeira coberta alçada, os vinhos
Bolham, coroados, em bojudas copas.
Retumba o teto, o estrépito por amplos
Átrios reboa; de áureas arquitraves
Pendentes lustres e os brandões acesos
760 A noite vencem. Grave de ouro e gemas
Pede-a logo a rainha, e do mais puro
Enche a taça, que desde Belo usaram
Seus avós. Nos salões tudo em silêncio:
“Júpiter, se é que aos hóspedes legislas,
765 Tão fausto alegre dia aos meus e aos Frígios
Faze aos vindouros memorável: Baco
Porta-júbilo assista, e a boa Juno;
Vós o convite celebrai-me, ó Tírios.”

Em honra então na mesa o vinho entorna,
770 Com seus lábios o toca, e o dá libado
A Bícias provocando: ele aguçoso
Empina a espúmea taça, em trasbordante
Ouro se ensopa: toda a corte o imita.
Logo entoa as lições do sábio Atlante
775 Em áurea cítara o crinito Iopas:
Canta a solar fadiga, a Lua instável;
Donde homens e animais, bulcões e raios;
Donde o nimboso Arcturo, e os Triões gêmeos
E as Híadas provêm; como apressados
780 Se tingem no oceano os sóis hibernos,
Ou que demora estorva as tardas noites.
Penos e Troas à porfia o aplaudem.

O serão entretida ia estirando
A infeliz Dido, e longo o amor bebia,
785 Muito de Príamo, inquirindo muito
De Heitor; que armas da Aurora o filho tinha,
Diomedes que frisões; quejando Aquiles.

“Do princípio antes, hóspede, as insídias
Graias, disse, nos conta, e o pátrio excídio,
790 E errores teus; que já seteno estio
De praia em praia todo o mar volteias.”

publicado por centrallgames às 00:42
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eneida de virgílio:obra completa(introdução)

eBookLibris

ENEIDA
Publio Virgilio Maronis


ENEIDA
Publio Virgilio Maronis (70 AC-19 AC)

Tradução
Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
Clássicos Jackson, Vol. III
Digitalização confrontada com a edição de 1854, disponível na web em rtf no “Projeto Odorico Mendes”
www.unicamp.br/iel/projetos/OdoricoMendes

Capa: Le récit d’Enée - Charles Antoine Herault (Paris, 1644 - 1718)

© 2005 — Publio Virgilio Maronis


ENEIDA

VIRGÍLIO


INDEX

Nota do Editor

ENEIDA BRASILEIRA
Ou Tradução Poética da Epopéia de Publio Virgílio Maro
Por Manuel Odorico Mendes

Ao Público
Advertência

ENEIDA
Livro I
Notas
Livro II
Notas
Livro III
Notas
Livro IV
Notas
Livro V
Notas
Livro VI
Notas
Livro VII
Notas
Livro VIII
Notas
Livro IX
Notas
Livro X
Notas
Livro XI
Notas
Livro XII
Notas

Notas desta edição


 

Nota do Editor

 

De início, pretendia, simplesmente, digitalizar e converter para diversos formatos de eBook o texto da edição dos Clássicos Jackson (Volume III), na tradução de Manuel Odorico Mendes.

Mas, como sempre faço, dei uma pesquisada na rede para verificar da existência, ou não, do texto já digitalizado. Grata surpresa! Na Unicamp, mais precisamente no Instituto de Estudos da Linguagem, me deparei com o Projeto “Odorico Mendes”: [http:// www.unicamp.br/ iel/ projetos/ OdoricoMendes/]

Um projeto sério, seríssimo, que, em julho de 2.000, era composto por André Albino de Almeida, Aristóteles Angheben Predebon, Carolina Ferreira, Daniel Rossi, Isabella Tardin Cardoso, Josiane T. Martinez, Júlio M. Carmo Neto, Leandro Vendemiatti, Maria Célia C. Nobre, Matheus Trevizam, Patrícia Prata, Paulo Sérgio de Vasconcellos, Robson Tadeu Cesila e Sidney Calheiros de Lima, sob a coordenação de Paulo Sérgio de Vasconcellos e Trajano Augusto Ricca Vieira.

Disponibilizaram para o mundo, em rtf, a primeira edição (1854) da Eneida Brazileira de Odorico Mendes, em texto digitado (isso mesmo, di-gi-ta-do!) por Leandro Abel Vendemiatti e revisado por Paulo Sérgio de Vasconcellos.

E mais fizeram: colocaram no site o texto latino estampado na edição de 1858 do Virgilio Brazileiro ao lado da tradução de Odorico Mendes, digitalizado por Robson Tadeu Cesila, com revisão final de Paulo Sérgio de Vasconcellos, também em rtf.

Sem mais delongas, enviei e-mail para o responsável pelo projeto, solicitando autorização para utilizar o código fonte. Gentilmente, no melhor espírito acadêmico, obtive a autorização, com as observações de praxe sobre o “fair use”: menção da fonte, não uso comercial, consignação dos devidos créditos.

Isso há mais de um ano.

O texto digitalizado dos Clássicos Jackson e os arquivos em rtf capturados ficaram dormitando em uma pasta por mais de ano, até que, finalmente, agora, criei coragem e toquei em frente a empreitada.

Créditos devidos sejam dados: essa edição, em sua forma atual, teria sido impossível sem o trabalho prévio da dedicada equipe da Unicamp capitaneada por Paulo Sérgio de Vasconcellos.

Aqui só estaria o texto da Jackson, que foi o que li e o de que dispunha. Mas se perderia, por exemplo, um comentário como esse:

Eu digo: “O poeta não deve imitar, mas traduzir o poema; do contrário, seria mais fácil uma versão poética do que em prosa.” Traduções livres são cômodas; porque, se o autor sabe traduzir a passagem, fá-lo, e se não sabe, lança-se em uma vaga imitação: assim, nem tem o mérito da invenção, nem o de vencer as dificuldades em se transformando no original.*

E depoimentos sobre o Brasil de sua época, como em nota antiescravista** que termina com as ainda atuais palavras: Ó meu país! quando serão livres todos os que repirarem no teu seio!

Preguiçoso como sou, para evitar o trabalho de trazer para o português do Brasil de hoje o texto disponibilizado pela equipe da Unicamp, tomei por base de trabalho o texto já digitalizado dos Clássicos Jackson, em português de Portugal. Verti para o português do Brasil, mantendo os diacríticos do pretérito, que conservámos.

Na edição da Jackson, porém, foram omitidas, talvez para economizar papel, os textos iniciais de Odorico Mendes (Ao Público, Advertência) e as notas do tradutor, bem como a numeração dos versos. Recuperei-as a partir dos textos em rtf da equipe de Unicamp. Dúvidas foram, na medida da minha capacidade, solucionadas confrontando texto da Jackson com o da edição de 1854, com outras edições, traduções e o texto em latim.

Acredito, assim, que a edição que agora é colocada nas estantes virtuais do eBooksBrasil.com, em seu conteúdo, recupera o texto integral da tradução de Odorico Mendes, da cidade de S. Luiz do Maranhão, publicada em Paris, na Typographia de Rignoux, rua Monsieur-le-Prince, 31, em 1854. Mas com o texto no português do Brasil de hoje, para benefício dos leitores de hoje, principalmente daqueles que não tiveram a oportunidade de estudar Latim no “ginásio”.

Muitas dúvidas que surgiram foram solucionadas com a auxílio do Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI - Versão 3.0 - Novembro de 1999. Para solucionar outras, utilizei regras gramaticais de acentuação, como, por exemplo, na acentuação de topônimos, palavra que em si só é um bom exemplo, posto que, em Português de Portugal, grafar-se-ia topónimo. Em caso de dúvida irresoluta, irresoluto eu mesmo, deixei como estava.

Mas os problemas de atualizar vocábulos são infindáveis, mormente em poesia, como bem se pode ver com o próprio Camões, no sítio do Instituto Camões, Portugal, em www.instituto-camoes.pt/ escritores/ camoes/ texto.htm

Por isso, algumas notas editorais, poucas, foram introduzidas e estão entre parênteses.

Sobre a importância deste título e de seu autor, pouco é preciso dizer. Basta, para quem não sabe e espero que sejam poucos, que serviu de inspiração ao bardo maior da Língua, Camões, para Os Lusíadas.

Finalmente, mas não de menor importância, é preciso salientar que esta edição visa o público em geral. Os latinistas e estudantes das letras pátrias serão melhor servidos pelo texto disponibilizado na rede no sítio da Equipe da Unicamp, já citado.

A ela, com agradecimento especial a Paulo Sérgio de Vasconcellos, é dedicado o que de melhor houver nesta edição, que lhes é devido. Os erros, equívocos e deslizes devem-se às limitações do Editor.

A tradução de Annibal Caro para o italiano, mencionada por Odorico Mendes, está disponível na web, na Liber Liber: www.liberliber.it, com a seguinte e importante observação: “L’opera di Virgilio qui pubblicata è stata tradotta da Annibal Caro (1507-1566) che volontariamente ha stravolto l’originale (nei vv. 772-782), inserendo nel testo un episodio legato alle satire dei villani”.

Para os mais estudiosos, altamente indicado é o L’Eneida louvaniste - uma nova tradução, comentada por Anne-Marie Boxus e Jacques Poucet - disponível na Bibliotheca Classica Selecta: http:// bcs.fltr.ucl.ac.be/ Virg/ VirgIntro.html

Uma palavra final sobre a diagramação: as notas do Tradutor que, na edição de 1854, conforme o arquivo em rtf já mencionado, vinham após cada Livro foram deslocadas para o fim e agrupadas; preferi, para facilitar a leitura nos diversos formatos de eBook, em vez de indentar os versos, separá-los com espaços; e a numeração dos versos foi deslocada para a esquerda.

Teotonio Simões — eBooksBrasil — Verão de 2005.


ENEIDA BRAZILEIRA


OU


TRADUCÇÃO POETICA


DA EPOPEA


DE PUBLIO VIRGILIO MARO



Por Manuel Odorico MENDES

da cidade de S. Luiz do Maranhão





PARÍS
NA TYPOGRAPHIA DE RIGNOUX
rue Monsieur - le - Prince, 31

1854


 

AO PÚBLICO.

Sumite materiam vestris, qui scribitis, aequam
Viribus... — (HORAT.)

 

Não possuindo o engenho indispensável para empreender uma obra original ao menos de segunda ordem, persuadido porém de que o estudo da língua e a freqüente lição da poesia me habilitavam para verter em português a epopéia mais do meu gosto; anos há, com a Eneida me tenho ocupado. Por contente me dou se obtenho um lugar ao pé de Annibal Caro, Pope, Monti, Francisco Manuel, e de outros bons tradutores poetas; e, a ser-me isto vedado, consolo-me com o prazer bebido nas ficções de Virgílio; cujos versos, à medida que os ia passando, me transportavam ao tempo em que, aprendendo o latim sob o meu saudoso amigo Fr. Ignacio Caetano de Vilhena Ribeiro, vivi na pátria com os condiscípulos, sem cuidados nem dissabores. Este prazer, em verdade, foi o que me sustentou em tão árdua e longa tarefa, ainda mais que o desejo de louvores; os quais todavia agradam ao nosso amor próprio, e folgarei de os merecer.

 

M. O. M.


 

ADVERTÊNCIA

 

Em as notas, que ajunto no fim de cada livro, há dois números: um indica o verso do original; o segundo, o da tradução. Quando cito um só número, entenda-se que é do original. Sigo o texto de Carlos de La Rue. Começo a contar desde Ille ego qui quondam, etc., em razão do que declaro na primeira nota do livro primeiro.*

Adotei algumas palavras do latim e compus não poucas por me parecerem necessárias na ocasião. De algumas faço menção nas notas; de outras não tratei, por ser óbvio o sentido em que as tomo.


P. VIRGILIO MARONIS

ENEIDA

publicado por centrallgames às 00:39
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